Ignorar o sábado é, na verdade, recusar-se a adorar a Deus, rejeitando-O como nosso Originador

Nos Salmos, nos deparamos com o povo de Israel em adoração. Sua adoração principal ocorria no sábado, “um santuário no tempo”.1 Esse conceito, de santuário no tempo, em vez de um lugar, representa uma reestruturação radical da cosmologia pagã. Os deuses pagãos se revelavam em lugares e pelos elementos da natureza. Porém o Deus de Israel é santo, qadosh, que significa “separado”. Ele é separado, independente de toda a realidade criada. E o lugar de Seu encontro com os seres humanos é no tempo, no sábado, e na História. Como Abraham Heschel, acertadamente, destaca: “Quando a História começou, havia apenas uma santidade no mundo, a santidade do tempo.”2

Na verdade, a primazia do tempo sobre o espaço como lugar de culto pode ser inferida também da construção do tabernáculo (espaço sagrado), a qual foi precedida pela lembrança de se manter a santidade do sábado (Êx 35:2). O sábado também precede a ordem para reverenciar o santuário (Lv 19:30; 26:2). Esse privilégio conferido ao tempo desvaloriza ou dessacraliza o espaço.
Elementos da natureza se tornam matéria, meros objetos, a criação de Deus. Eles deixam de ser deuses ou médiuns do divino. Dessacralizados, eles passam a ser capazes de “à sua própria maneira, em uma língua que não é nem perceptível para o ouvido nem compreensível para os seres humanos”,3 declarar a glória de Deus e se proclamarem como obra das Suas mãos (veja Sl 19:1).

Na verdade, quando lemos no Salmo 19 que “os céus declaram a glória de Deus”, é como se estivéssemos ouvindo uma voz “que zomba das crenças dos egípcios e babilônios”,especialmente sua exaltação do sol, da lua e das estrelas. Não somente isso, mas nos versículos 7-11 o salmo conscientemente transfere para a Torá os poderes jurídico-morais que os egípcios e babilônios atribuíam ao sol.

Também é fascinante que na tríplice mensagem angélica de Apocalipse 14, esses princípios básicos ressurjam em meio ao conflito final da história terrestre.

A ordem moral

Embora a natureza proclame a glória divina de maneira majestosa, a natureza – quer no céu ou na Terra – não pode prover valores morais nem direção espiritual para os seres humanos. A amoralidade da natureza é a razão pela qual o Salmo 19:7-11 se refere à lei divina (Torá) para nossa direção moral. Todas as competências jurídico-morais e até mesmo a terminologia empregada na Torá ecoam numa adoração aos astros, porém “o vocabulário não tem conotação pagã e assume uma nova dimensão. Não é YHWH, o Deus de Israel, contra o deus do sol, mas Sua lei, que é o foco do contraste”.5

Em outras palavras, a polêmica contra o paganismo é na realidade sobre a lei de Deus e sua soberania sobre o ser humano. No versículo 11, o salmista se apresenta como servo de Deus e submisso à soberania da lei do Senhor.

Para entender o que essa submissão implicava, devemos lembrar que a entrega da lei no Sinai foi precedida por “um duplo êxodo – o dos patriarcas quando deixaram a Mesopotâmia e o grande êxodo do Egito”. Ambos foram “um veemente repúdio às versões egípcia e mesopotâmica da ordem cósmica”.6 Assim, no Sinai, vemos Deus estabelecendo uma ordem social para a nação israelita que espelhava a modalidade estrutural da criação. Em Gênesis 1 observamos que Deus criou o mundo por meio de um processo de separação e distinção. Ele separou a luz das trevas, os céus da terra, a terra da água, e os encheu de espécies distintas de plantas e animais. Criou Adão, e depois Eva de uma costela separada de Adão. Coroando tudo isso, Ele separou o sétimo dia de outros dias, e fez o santo sábado.

A história da criação termina com o sábado. O decálogo se refere explicitamente à criação no quarto mandamento (Êx 20:11). Portanto, o sábado é a ligação histórica entre a criação e o decálogo ou o Sinai e o concerto divino, apontando para Deus como originador de ambos. Na verdade, a frase “Lembra-te do dia de sábado” assume que o sábado teria sido uma prática corrente antes do Sinai. Então, novamente, a menção explícita de que “em seis dias o Senhor fez os céus e a Terra, o mar, e tudo o que neles há” (v. 11) alude diretamente às separações e distinções utilizadas por Deus na criação, as quais Ele empregou novamente no Sinai.

Santo versus profano

A intenção divina foi estabelecer uma nova ordem moral, plena em santidade. É por isso que em Levítico, cujo tema central é a santidade, as separações se estendem às atividades mundanas. “Não acasalar diferentes espécies de animais.” “Não plantar dois tipos diferentes de semente.” “Não usar vestuário de dois tipos de material” (Lv 19:19). O ponto crucial aqui, como Lucien Scubla observou, é que “os homens não devem unir as coisas que Deus separou. Há uma estreita relação entre a criação do mundo em Gênesis e as proibições em Levítico e Deuteronômio.[…] A criação divina é um processo que vai da desordem para a ordem. Portanto, essas declarações nos proíbem de retornar à desordem , misturando coisas que o próprio Deus separou”.7

Na verdade, o paganismo de imoralidades e monstruosidades grotescas decorre da mistura do sagrado com o profano, do humano com o divino, do natural com o sobrenatural. Em resumo, isso é uma inversão da ordem da criação. Ao misturar as coisas que Deus separou, ele recria o caos primitivo o qual influencia a esfera moral. Sem distinções entre o sagrado e o profano, tudo é aceito como sagrado e moral. Iniquidade é apresentada como piedade. Obliterar as distinções entre o sagrado e o profano leva à maldade desenfreada. “Seus sacerdotes cometem violência contra a Minha lei e profanam Minhas ofertas sagradas; não fazem distinção entre o sagrado e o comum; ensinam que não existe nenhuma diferença entre o puro e o impuro; e fecham os olhos quanto à guarda dos Meus sábados, de maneira que sou desonrado no meio deles. Seus oficiais são como lobos que despedaçam suas presas; derramam sangue e matam gente para obter ganhos injustos. Seus profetas disfarçam esses feitos enganando o povo com visões falsas e adivinhações […] O povo da terra pratica extorsão e comete roubos; oprime os pobres e os necessitados e maltrata os estrangeiros, negando-lhes justiça” (Ez 22:26-29).

Assim, ignorar o sábado é, na verdade, recusar-se a adorar a Deus, rejeitando-O como nosso Originador. “A reivindicação divina à reverência e culto acima dos deuses dos gentios tem por base o fato de que Ele é o Criador, e que a Ele todos os outros seres devem sua existência.”8 “O quarto mandamento é o único de todos os dez em que se encontra tanto o nome quanto o título do Legislador.”9 O sábado nos mostra que Deus é o legítimo Proprietário da Terra; portanto, negar isso é usurpar as prerrogativas divinas.

O caráter inclusivo do sábado é demonstrado em Isaías 56. Estrangeiros e eunucos que se apegavam à aliança divina e aceitavam a santidade do sábado se tornavam membros efetivos na congregação de Israel, desfrutando suas bênçãos espirituais: “Pois a Minha casa será chamada casa de oração para todos os povos” (v. 7). Isso lembra a promessa abraâmica de bênção universal (Gn 12:3). Essa promessa encontra seu cumprimento em Apocalipse 14:6, 7 na proclamação do evangelho eterno a toda nação, tribo, língua e povo. Na adoração todos se tornam um. Assim como a promessa de Abraão era uma negação implícita do totalitarismo de Babel, edificada para formar uma unidade contra Deus, a mensagem do primeiro anjo nega a oferta semelhante de Babilônia, a Grande (v. 8).

As três mensagens angélicas

Significativamente, o sábado é o ponto crucial desta negação. “O paralelismo verbal entre Apocalipse 14:7: ‘fez os céus, a Terra, o mar’ com Êxodo 20:11: ‘fez os céus e a Terra, o mar’ […] juntamente com paralelos temáticos e estruturais, mostra que a porção posterior da fala do primeiro anjo constitui uma alusão clara e direta ao quarto mandamento de Êxodo 20:11.”10 E o quarto mandamento, por sua vez, se refere diretamente à criação; às distintas ordens divinas que se contrapõem ao abrangente universo pagão, com sua confusão do humano com o divino, do material com o espiritual, e do religioso com o político.

A íntima ligação entre o sábado e a santidade é o que faz do sábado o teste da verdade na batalha final entre o bem e o mal, entre Cristo e o anticristo. Com efeito, uma vez que “o mundo todo está sob o poder do Maligno” (1Jo 5:19, NVI), celebrar o sábado é passar de um universo amoral para seu oposto. Recusar-se a mover é recusar adorar o Deus Criador. É por isso que as três mensagens angélicas são apresentadas no contexto do julgamento, acompanhadas pelo terrível aviso do derramamento iminente da ira de Deus. Esse aviso é um ato de misericórdia – para que possamos escapar do “fogo eterno, preparado para o Diabo e os seus anjos” (Mt 25:41). 

Referências:

  • 1 Abraham Joshua Heschel, The Sabbath: Its Meaning for Modern Man (Nova York: Farrar, Straus and Giroux, 1951), p. 29.
  • 2 Ibid., p. 9.
  • 3 Nahum M. Sarna, On the Book of Psalms: Exploring the Prayers of Ancient Israel (Nova York: Schocken Books, 1993), p. 80.
  • 4 Henri Frankfort et al., The Intellectual Adventure of Ancient Man: An Essay on Speculative Thought of the Ancient Near East (Chicago, IL: University of Chicago Press, 1964), p. 363.
  • 5 Ibid., p. 92.
  • 6 Peter L. Berger, The Sacred Canopy: Elements of a Sociological Theory of Religion (Nova York: Anchor Books, 1967), p. 115.
  • 7 Lucien Scubla, Contagion: Journal of Violence, Mimesis, and Culture , v. 12, 13 (2006), p. 16.
  • 8 Ellen G. White, Patriarcas e Profetas, p. 239.
  • 9 Ibid., p. 216.
  • 10 John T. Baldwin, Creation, Catastrophe and Calvary (Hagerstown, MD: Review and Herald, 2000), p. 19.