Poucas doutrinas bíblicas têm estado sob constante fogo cruzado através da história cristã como a doutrina do sábado. Em seus dois volumes bibliográficos a respeito da questão sábado/domingo, da Reforma até 1860, J. A Hessey relaciona cerca de mil tratados.’ No último século um número ainda maior de pesquisas sobre o mesmo assunto foi publicado. Na verdade, podemos dizer que o sábado não tem descanso.

Em tempos recentes, a controvérsia reacendeu através de três fatos: numerosos artigos e dissertações doutorais, escritos por eruditos guardadores do domingo argumentam favoravelmente à origem apostólica desse dia e a ab-rogação do sábado; o abandono da guarda do sábado por organizações como a Igreja Mundial de Deus; e a Carta Apostólica Dies Domini, do papa João Paulo II, publicada em julho do ano passado, na qual ele conclama os fiéis a um reavivamento da observância do domingo.

O presente artigo focaliza esses fatos recentes dentro de um mais amplo contexto histórico da origem e desenvolvimento de uma teologia contrária à observância do sábado.

Teologia anti-sabática

As idéias contrárias à observância do sábado remontam ao tempo de Adriano, imperador romano que promulgou uma legislação antijudaica em 135 d.C., proibindo categoricamente as práticas do judaísmo em geral e a guarda do sábado em particular. Seu objetivo era liquidar o judaísmo num tempo em que os judeus estavam experimentando um ressurgimento das expectativas messiânicas, traduzidas em insurreições em vários pontos do império, especialmente a Palestina.

Nessa época, bastante crítica, os autores romanos produziram um vasto corpo de literatura anti-semítica atacando os judeus tanto no sentido étnico como religioso. Os autores cristãos entraram na briga produzindo suas polêmicas antijudaicas pessoais. Por exemplo, o autor da Epístola de Barnabé (130-138) difama os judeus como “homens desprezíveis” (16:1) abandonados por Deus devido à sua velha idolatria (5:14), e rejeita qualquer validade histórica de suas práticas religiosas tais como a guarda do sábado (15:1-8).

Por volta desse mesmo tempo, Justino Mártir desenvolveu uma teologia “cristã” do sábado menosprezando os judeus e tornando o sábado uma ordenança mosaica temporária, exclusivamente para os judeus, “um sinal para identificá-los como punição merecida por causa de suas infidelidades”.2 Justino argumenta que o Novo Concerto “não requer abstinência de trabalho um dia na semana” mas “observância de um sábado perpétuo” através da abstinência do pecado.3

A teologia anti-sabática de Justino tem sido proposta de diferentes maneiras através dos séculos. Ultimamente, os dispensacionalistas e aqueles que possuem uma visão errônea a respeito do Novo Concerto mantêm essencialmente o mesmo ponto de vista: o sábado é uma ordenança mosaica temporária, apenas para os judeus, e assim não se relaciona aos cristãos, que observam o dia espiritualmente por aceitarem o repouso da salvação, sem deixar de trabalhar no sétimo dia.

No segundo século, os cristãos foram obrigados a passar o dia de sábado jejuando, uma prática introduzida provavelmente pelo gnóstico Marcião, conhecido por seus ensinos contra o judaísmo e o sábado. O jejum sabático foi promovido por decreto papal com o objetivo de mostrar, como disse o papa Silvestre (314-335), separação dos judeus e menosprezo por eles.4

A Igreja Católica obrigou essa prática por séculos. Na verdade, durante o século ll. o papa Léo IX tentou impor o jejum sabático às igrejas gregas orientais, que se recusaram aceitá-lo. Isso contribuiu para o rompimento histórico entre as igrejas latinas e orientais, em 1054 d.C.

Na Idade Média

Um fato novo ocorreu na esteira da lei dominical de Constantino, em 321 d.C.

A ausência de qualquer mandamento de Cristo ou dos apóstolos relacionado com a observância do domingo fez com que os líderes da igreja o defendessem recorrendo ao quarto mandamento. O aspecto moral foi entendido como a ordenança, na Criação, de se observar um dia em sete. O aspecto cerimonial foi interpretado como a especificação mosaica do sétimo dia. Assim o sábado, como o princípio de “um dia em sete”, dizia respeito aos cristãos; mas como especificação do “sétimo dia” foi representado como sendo abolido por Cristo, em virtude de que foi, como se afirmava, designado para auxiliar os judeus na comemoração da Criação e para que experimentassem repouso espiritual.

Essa distinção artificial, articulada especialmente por Tomás de Aquino (1225-1274), tornou-se o padrão racional para defender o direito de a Igreja introduzir e regulamentar a observância do domingo e dias santificados. O resultado foi a elaboração de um sistema legalístico de guarda do domingo semelhante ao sábado rabínico.5

Na Reforma

Os reformadores do século 16 propuseram com novas qualificações as distinções entre os aspectos moral e cerimonial do sábado. Martinho Lutero, defendeu uma distinção radical entre o Velho e o Novo Concerto. Tal como Marcião e Justino Mártir, ele atacou o sábado como uma instituição mosaica “especificamente dada ao povo judeu”.6 No Grande Catecismo. em 1529, Lutero explicou que o sábado é um assunto superficial, como outras ordenanças do Velho Testamento. Ele colocou o sábado como parte dos costumes judeus dos quais Cristo nos libertara.7

A distinção luterana entre o Velho e o Novo Concerto, ou a lei e o evangelho, foi adotada e desenvolvida por muitas denominações contemporâneas, incluindo a Igreja Mundial de Deus. Essas igrejas geralmente ensinam que o sétimo dia é uma instituição mosaica abolida por Cristo. Conseqüentemente, os cristãos do Novo Concerto estão livre de sua atual observância.

Calvino rejeitou a antítese de Lutero entre a lei e o evangelho. Em seu esforço para manter a unidade básica do Velho e do Novo Testamento, Calvino cristianizou a lei, espiritualizando, pelo menos em parte, o mandamento do sábado. Ele aceitou o sábado como uma ordenança, desde a Criação, para a humanidade; mas apesar disso manteve que com “o advento de nosso Senhor Jesus Cristo, a parte cerimonial do mandamento foi abolida”.A visão calvinista é adotada por igrejas protestantes tradicionais como os presbiterianos, congregacionalistas, metodistas e batistas.

As contradições entre os aspectos moral e cerimonial do quarto mandamento têm gerado duas principais visões opostas sobre o relacionamento entre a observância do domingo e o mandamento do sábado. Por um lado, as tradições católica e luterana enfatizam o alegado aspecto cerimonial do quarto mandamento, supostamente abolido por Cristo. Conseqüentemente, elas divorciam grandemente a guarda do domingo do mandamento do sábado, tratando o domingo como uma ordenança eclesiástica, instituída primariamente para habilitar o povo a assistir aos serviços religiosos semanais.

Por outro lado, as igrejas protestantes tradicionais dão realce ao aspecto moral do mandamento do sábado, vendo-o como um dia de louvor e repouso, instituído na Criação para toda a humanidade. Conseqüentemente, eles promovem a guarda do domingo como sendo uma legítima substituição e continuação do sábado do Velho Testamento.

Nos dias atuais

Essas duas visões são refletidas em publicações recentes. A visão luterana, abolindo o sábado do sétimo dia, é desposada num material editado por Donald Carson em 1982, intitulado From Sabbath, to Lords Day (Do Sábado ao Dia do Senhor), e noutra obra, de Willy Rordorf, Sunday: The History of the Day of Rest and Worship ín the Earliest Centuries of the Christian Church (Domingo: A História do Dia de Repouso e Culto nos Primeiros Séculos da Igreja Cristã), publicada em 1968. Os dois estudos defendem a tese de que a guarda do sábado não é uma ordenança da Criação relacionada aos cristãos, mas uma instituição mosaica anulada por Cristo. Conseqüentemente, o domingo não é visto como um sábado cristão, mas uma exclusiva criação cristã, introduzida para comemorar a ressurreição de Cristo tal como a Ceia do Senhor.

Recentemente, a visão da ab-rogação do sábado vem sendo adotada com algumas modificações pela Igreja Mundial de Deus, cujos líderes declararam em 1995 que o sábado é uma instituição do Velho Concerto, mosaica, que terminou na cruz. A mesma visão é apresentada em The Sabbath ín Crisis (O Sábado em Crise), de Dale Ratzlaff, um ex-pastor adventista. A crença da Igreja Mundial de Deus e de Ratzlaff é que o Novo Concerto não manda observar qualquer dia. Argumentam que o repouso sabático foi cumprido em Cristo, que diariamente oferece a tantos que O aceitam o repouso da Sua salvação.

A tradição protestante, que vê o domingo como o sábado cristão, é refletida no estudo de Roger T. Beckwith e William Stott, de 1978, intitulado This is the Day: The Biblical Doctrine of the Christian Sunday (Este é o Dia: A Doutrina Bíblica do Domingo Cristão). Os autores argumentam que os apóstolos usaram o sábado para emoldurar o domingo como seu novo dia de repouso e culto.9 E concluem que “à luz do Novo Testamento como um todo, o Dia do Senhor pode ser claramente visto como um sábado cristão – o cumprimento no Novo Testamento daquilo que o Velho Testamento apontava”.10

A implicação prática dessa conclusão é que o domingo poderia ser observado meramente em parte, mas como “um dia completo, separado para um festival santo… para culto, repouso e obras de misericórdia”.11 A Aliança do Dia do Senhor promove ativamente esse ponto de vista através de sua revista oficial, Sunday, e outros veículos.

Dies Domini

Após a precedente análise da controvérsia sobre o sábado e o domingo, chegamos a um histórico documento, digno de reflexão: a Carta Apostólica Dies Domini, de João Paulo II. Dois aspectos significativos daquele documento são a conexão teológica entre o sábado e o domingo, e o requerimento de uma legislação civil que facilite a guarda desse dia.

Uma faceta supreendente dessa carta papal é a maneira como João Paulo desenvolve o fundamento teológico da observância do domingo. Ele apela para a continuidade do mandamento sabático, em lugar da tradicional distinção entre os aspectos moral e cerimonial do mandamento. O papa destaca corretamente o desenvolvimento teológico do sábado, desde a Criação (Gên. 2:1-3; Êxo. 20:8-11) ao repouso da redenção (Deut. 5:12-15). Descreve o sábado como um “tipo de sagrada arquitetura do tempo que marca a revelação bíblica. Ele recorda que o Universo e a História pertencem a Deus; e sem constante conscientização dessa verdade, a humanidade não pode servir no mundo como cooperadora do Criador”.

Contrário aos dispensacionalistas, que enfatizam a revogação do sábado na cruz, o papa afirma a sua continuidade na observância do domingo, que personifica e preserva a teologia e prática do sábado. O papa declara: “Mais que uma substituição do sábado, portanto, o domingo é seu cumprimento, em certo sentido sua extensão e expressão completa no encomendado desenvolvimento da história da salvação, que alcança sua culminância em Cristo.”

O papa mantém que os cristãos do Novo Testamento “fizeram do primeiro dia depois do sábado um dia festivo” porque descobriram que os méritos criativos e redentivos celebrados pelo sábado encontraram sua “completa expressão na morte e ressurreição de Cristo, embora seu cumprimento definitivo não aconteça até a Parousia. quando Ele retornar em glória”.

O problema, entretanto, é que, de uma perspectiva bíblica, não há indicações de que os cristãos do Novo Testamento sempre interpretaram o dia da ressurreição de Cristo como representando o cumprimento e “completa expressão” do sábado. Na verdade, o Novo Testamento não atribui nenhum significado litúrgico ao dia da ressurreição, simplesmente porque esse acontecimento foi visto como uma realidade existencial experimentada pelo poder do vitorioso Salvador ressurreto. Não foi uma prática litúrgica, associada com o culto dominical.

Nenhuma das alocuções do Salvador ressurreto revela alguma intenção de instituir o domingo como o novo dia cristão de repouso e culto. Instituições bíblicas tais como sábado, batismo e ceia têm sua origem em um ato divino que as estabeleceu. Mas não existe ato semelhante para sancionar um domingo semanal como memorial da ressurreição.

Legislação civil e domingo

Em sua carta pastoral, o papa devota um dos cinco capítulos (o quarto) para enfatizar tanto a obrigação moral de observância do domingo como a necessidade de uma legislação que facilite o cumprimento dessa obrigação. O papa encontra “razões subjacentes para guardar o santo Dia do Senhor inscrito solenemente nos Dez Mandamentos”. Evoca o mandamento do sábado, não os concílios de sua Igreja, para justificar a obrigação moral de guardar o domingo, porque reconhece que o quarto mandamento provê a mais poderosa convicção moral que os cristãos necessitam para santificar o Dia do Senhor.

O problema, no entanto, nesse raciocínio é que o domingo não é o sábado. Os dois dias são diferentes não apenas em sua nomenclatura ou seu número de ordem, mas também em sua origem, seu significado e sua experiência.

Em termos de experiência, por exemplo, a essência da guarda do sábado é consagração do tempo ao Senhor, dando-Lhe prioridade nos pensamentos e na conduta, durante as 24 horas do sábado. Ao contrário, a essência da guarda do domingo, tal como aparece na carta pastoral do papa é assistir aos serviços religiosos. O domingo, segundo a Apologia 67. de Justino Mártir, deveria originalmente ter uma hora de culto, seguida por atividades seculares normais. Apesar dos esforços feitos por Constantino, pelos concílios da Igreja e pelos puritanos no sentido de tornar o domingo um dia santo, ele continua sendo largamente limitado a uma hora de culto, não sendo o dia de repouso e louvor.

O reconhecimento dessa realidade histórica fez possível em tempos recentes antecipar a obrigação do culto dominical para a tarde de sábado, uma crescente prática comum não apenas entre católicos, mas também entre os protestantes, em muitos lugares.

Para facilitar a submissão à obrigação moral de observar o domingo, o papa convoca os cristãos “para garantir que uma legislação civil respeite seu dever de guardar o dia santo”. No entanto, leis dominicais não têm favorecido a assistência às igrejas. Na Europa ocidental, elas fizeram efeito durante muitos anos, mas a assistência aos cultos é mais baixa que nos Estados Unidos. Depois, uma legislação dominical é supérflua atualmente, porque uma semana reduzida para cinco dias de trabalho já torna possível a qualquer pessoa cultuar tanto no sábado como no domingo.

Uma solução possível para a crise de declínio da freqüência à igreja é concebida na carta papal. Ela intima os cristãos para viver de acordo com os princípios dos Dez Mandamentos. O quarto mandamento é caracterizado pela sua ordem específica para que os cristãos lembrem-se do que têm esquecido: que o sétimo dia é santo ao Senhor nosso Deus (Êxo. 20:8-11).

Um fato importante que leva muitos cristãos a se esquecerem da observância do sábado é a teologia anti-sabática que os tem privado da convicção moral necessária, lembrando que o sábado é o dia santo instituído por Deus.

O sábado ainda está sob fogo cruzado, mas isso vitima aqueles para quem ele foi feito e se recusam a aceitá-lo, privando-os da renovação física, mental e espiritual. Em um tempo quando muitos estão buscando repouso e liberdade, o sábado ainda nos convida a parar nossas atividades seculares por um dia, e experimentar mais plena e livremente a presença, a paz, e o repouso de Cristo em nossa vida (Heb. 4:10).

Referências

1J. A. Hessey. Sunday. Its Origin, History and Present Obligation. Londres: Murray Pub. Co., 1860.

2 Justino Mártir. Dialogue With Trypho 23. The Writings of Justin Martyr. T. B. Falis, tr. Nova York; Christian Heritage. 1948. pág. 182.

3 Justino Mártir. Dialogue With Trypho 12. Writings of Justin Martyr, pág. 166.

4 S. R. E. Humbert, Adversus Graecorum Calumnias 6. Patrologie Latina, ed. J. P. Migne, Paris; Garnier Fratres. 1844. págs. 143 e 937.

5 L. L. McReavy, Clergy Review 9. 1935. pág. 279: Paul K. Jewett. The Lords Day. Grand Rapids; Eerdmans. 1972. págs. 128-169.

6 Luther’s Works. 1958. 40:93; Richard Muller, Adventisten-Sabbat-Reformation. Lund: Studia Theologica Lundensia. 1979. págs. 32-60.

7 Concordia or Book of Concord. The Symbols of the Evangelical Lutheran Church. St. Louis: Concordia Publishing House, 1957. pág. 1974.

8 João Calvino. Institutes of the Christian Religion, tr. Henry Beveridge. Grand Rapids; Eerdmans. 1972, 1:341.

9 Ibid.. 26: cf. 2-12.

10 Ibid.. 45 e 46.

11 Ibid.. 141.

SAMUELE BACCHIOCCHI, Ph.D., professor de História da Igreja e de Teologia, na Universidade Andrews, Estados Unidos