O senhorio de Cristo supera todas as tentativas humanas para exercitar o domínio próprio

Não faz muito tempo, estudamos na Escola Sabatina uma lição com o tema deste artigo. E acreditamos ser conveniente fornecer informações adicionais sobre o assunto, em benefício dos leitores de Ministério. Ao criar o ser humano, o Senhor lhe presenteou algumas necessidades bá-sicas. Por exemplo, necessitamos nos alimentar, para continuar vivendo e, pela mesma razão, precisamos beber água. Também precisamos nos reproduzir, para a perpetuação da espécie. Nesse sentido, disse Deus a Adão e Eva: “Sede fecundos, multiplicai-vos, enchei a Terra…” (Gên. 1:28).

Tais necessidades determinam desejos como a vontade de comer e beber. E também temos desejos sexuais. Submetidos ao senhorio de Jesus, esses desejos são santos, justos e bons, não possuindo, absolutamente, nada de mau em si mesmos. No entanto, com sua natureza pecaminosa, o ser humano os distorce e perverte, transformando-os em objeto de prejuízo ao próprio corpo, mente e espírito. O apetite converte-se em gula, que é responsável por várias doenças. A vontade distorcida de beber induz ao consumo de bebidas estimulantes, até alcoólicas, levando o homem a ser escravo do vício.

Desejos distorcidos, insubmissos ao Senhor, produzem necessidades artificiais, fictícias, que exigem pronta satisfação e acabam acarretando grandes males. Sem controle, o sexo leva à fornicação, adultério e homossexualidade, com suas conseqüências às vezes trágicas. Portanto, convém submetermos nossos desejos ao Senhor. Somente assim eles serão mantidos e satisfeitos dentro dos limites assinalados por Sua vontade, o que nos trará grandes bênçãos. Mas a significativa pergunta é: Como tornar isso possível?

Tentativas humanas

No curso da História, os seres humanos têm sido conscientizados desse problema e têm recorrido a uma série de expedientes em busca de solução. Na Idade Média, por exemplo, muitos crentes, homens e mulheres, recolhiam-se em conventos, na tentativa de dominar os desejos, atrás dos muros desses edifícios e das férreas cláusulas de votos monacais. A fim de combater a gula, praticavam jejuns freqüentes e prolongados. Buscando subjugar a sede, abstinham-se de beber. Para mortificar o corpo, sub-metiam-se a vigílias prolongadas e flagelavam-se ao ponto de sangrarem. Foi nessa época que surgiu a prática do celibato, como recurso controlador dos desejos sexuais.

Ainda que a Idade Média seja história, em alguns círculos cristãos essas tentativas continuam tendo lugar. Qual tem sido o resultado? Quase nenhum; porque tudo o que têm alcançado é muito sofrimento. Desejos e apetites continuam vivos e ativos, para grande frustração dos que imaginavam alcançar plena santidade através das vãs tentativas de controle.

A origem

A fórmula medieval de combate aos desejos não tem fundamento bíblico. Como, então, teria surgido? Para responder a essa pergunta temos que recorrer à História. Em sua busca de expansão pelo Império Romano, a Igreja cristã primitiva teve de enfrentar a cultura greco-romana e experimentou um êxito descomunal. Tanto foi assim que, em poucas décadas, o cristianismo destronou a religião pagã e ocupou seu lugar. Quando Constantino (280-377 d. C.) promoveu o cristianismo à religião do Império, não fez nada além de reconhecer um fato evidente: o cristianismo exercera profunda influência sobre a civilização da época e a modificara irreversivelmente.

Porém, o que nem sempre é dito é que, por sua vez, a civilização greco-romana exerceu profunda influência sobre a Igreja cristã, modificando especialmente seu corpo doutrinário, a tal ponto que, já no século 4, ainda que conservasse o nome de cristã, a Igreja não era nem sombra da comunidade fundada por Cristo e difundida pelos apóstolos. As mudanças foram muitas, e vamos limitar-nos àquelas que estão relacionadas com o assunto da sujeição dos desejos.

A palavra dos filósofos

A civilização greco-romana era sustentada por dois pilares: a religião e a filosofia. Mesmo no cristianismo da Idade Média, observamos mais que vestígios da religião pagã; a influência maior foi exercida pela filosofia grega. Houve muitos filósofos gregos na Antiguidade, mas destacamos três deles: Sócrates (469-399 a. C.), Platão (427-367 a. C.) e Aristóteles (388-322 a. C.). Certamente, esses eram gigantes intelectuais que discorreram sobre muitos assuntos. No que tange à sujeição dos desejos, eles ensinaram que os seres humanos estão constituídos por dois elementos completamente distintos, antagônicos e perfeitamente separáveis, ou seja, alma e corpo.

Segundo esses filósofos, todo mal observado no mundo e na natureza humana tem origem na matéria, que é má e sem remédio. Sendo o corpo matéria, também é mau. A alma é espiritual e boa, está vocacionada à perfeição, deseja ascender às mais elevadas alturas, porém encontra-se presa no cárcere do corpo. Ainda de acordo com esses pensadores, o corpo está inclinado à baixeza e abriga todo mau que se manifesta na vida de uma pessoa: gula, lascívia, pensamentos e desejos maus.

Pensamento gnóstico

Nos séculos 1 e 2 da Era Cristã, no próprio seio da cristandade, surgiu um grupo imbuído das idéias filosóficas pagãs. Esse grupo é conhecido como os gnósticos, palavra derivada do termo grego gnose, sujo significado é “conhecimento”, “ciência”. Os gnósticos pretendiam ter, por disposição divina, um conhecimento especial que supostamente lhes fora revelado pelo Espírito Santo. Segundo eles, Jeová, o Deus do Antigo Testamento, criador da matéria, era um deus de segunda classe ao qual chamavam Demiurgo. Era inimigo do verdadeiro Deus, que eles diziam conhecer e a quem representavam.

Os gnósticos já haviam feito incursões nas fileiras do cristianismo, durante o primeiro século, mas foram combatidos pelos apóstolos. O apóstolo Paulo se refere a eles, quando escreveu: “E tu, ó Timóteo, guarda o que te foi confiado, evitando os falatórios inúteis e profanos, e as contradições do saber [gnose], como falsamente lhe chamam” (I Tim. 6:20).

João também adverte seus leitores, tendo em mente os gnósticos: “Nisto reconheceis o Espírito de Deus: todo espírito que confessa que Jesus Cristo veio em carne é de Deus; e todo espírito que não confessa a Jesus não procede de Deus; pelo contrário, este é o espírito do anticristo, a respeito do qual tendes ouvido que vem e, presentemente, já está no mundo” (I João 4:2 e 3). E acrescenta: “Porque muitos enganadores têm saído pelo mundo fora, os quais não confessam Jesus Cristo vindo em carne; assim é o enganador e o anticristo” (II João 7).

Presumidamente seguidores de Jesus, os gnósticos não admitiam que Ele tivesse vindo em carne, ou seja, em corpo humano. Argumentavam que, se assim tivesse sido, Cristo não poderia ser o Santo capaz de levar o plano de salvação ao clímax; afinal, o corpo é matéria; portanto, incuravel-mente mau. Ensinavam que Jesus tinha apenas “aparência” de corpo humano.

É interessante notar que João atribui essas idéias ao anticristo, que os cristãos primitivos sabiam que deveria vir. Devemos nos lembrar de que o prefixo “anti”, no grego, não significa necessariamente “contra alguém”, mas “em lugar de alguém”. Com isso em mente, entenderemos melhor que as doutrinas gnósticas tenham sido aceitas, pelo menos em parte, pela Igreja apóstata, que pretendería ocupar o lugar de Cristo no plano da salvação, usurpando Sua autoridade para perdoar pecados e oferecer salvação.

Gnosticismo e cristianismo medieval

Não podemos detectar rastros dos gnósticos muito aquém do século 2, pois eles finalmente desapareceram. Mas suas idéias perduraram e foram incorporadas ao conjunto de doutrinas da Igreja oficial da Idade Média, nos séculos posteriores. Se fizéssemos uma lista de algumas dessas doutrinas gnósticas poderiamos mencionar, entre outras, as seguintes:

A idéia de que os seres humanos são compostos de um corpo mau e uma alma boa, que deve ser salva.

A idéia de que, para mortificar o corpo, é preciso subjugar desejos e apetites, mesmo em detrimento da saúde. É preferível que o corpo morra para que a alma seja salva. Isso explica os flagelos, jejuns e vigílias prolongados.

A idéia de que a pior coisa do corpo é a sexualidade, que deve ser reprimida sem misericórdia. Daí o culto à virgindade a ao celibato.

Carne e espírito

Porém, aqui surge um problema. No Novo Testamento, encontramos as expressões “carne” e “espírito”. Com efeito, Cristo disse a Nicodemos: “O que é nascido da carne é carne; e o que é nascido do Espírito é espírito” (João 3:6). Seria essa declaração uma base bíblica para os ensinamentos dos filósofos gregos e dos gnósticos? Certamente, não. As doutrinas gnósticas carecem de respaldo bíblico. As Escrituras apresentam Deus como criador de tudo o que existe, incluindo a matéria. O mundo, cuja criação é descrita nos primeiros capítulos de Gênesis, era material. Adão e Eva possuíam um corpo criado por Deus. Quando o Senhor qualificou Sua criação, “viu … que tudo era muito bom” (Gên 1:31).

No Novo Testamento, encontramos estas afirmações: “Acaso não sabeis que vosso corpo é o santuário do Espírito Santo, que está em vós, o qual tendes da parte de Deus, e que não sois de vós mesmos?” (I Cor. 6:19). Em lugar de ser a prisão indesejável da alma boa, o corpo é o templo do Espírito Santo. Referindo-se à ressurreição, escreveu o apóstolo: “Semeia-se corpo natural, ressuscita corpo espiritual…” (1 Cor. 15:44). Isso era um contra-senso para os filósofos e os gnósticos. Na compreensão deles, esses termos eram antagônicos e excludentes. Porém, não é assim para os que têm a mente de Cristo.

Então, a que se referem as Escrituras, quando mencionam “carne” e “espírito”? A expressão “carne” (sarkós, em grego) é um termo que poderia ser qualificado de técnico. Jesus e o apóstolo o empregam em referência à natureza pecaminosa, adquirida pelo ser humano quando este pecou, e transmitida aos seus descendentes. É essa natureza que distorce os desejos e os converte em pecaminosos e prejudiciais.

Por outro lado, a palavra “espírito” (pneumatos) refere-se à natureza regenerada pela graça de Deus, recebida no momento da justificação, e que é consolidada dia a dia, mediante o processo de santificação. Diz mais o apóstolo Paulo: “Ora, as obras da carne são conhecidas e são: prostituição, impureza, lascívia”. Tudo isso está relacionado com a distorção dos desejos sexuais. Mas o apóstolo continua: “idolatria, feitiçarias, inimizades, porfias, ciúmes, iras, discórdias, dissensões, facções, invejas, bebedices, glutonarias…” (Gál. 5:19-21). Esses são pecados que têm que ver com a distorção de relacionamentos, adoração e da necessidade de comer e beber.

Já “o fruto do Espírito é: amor, alegria, paz, longanimidade, benignidade, bondade, fidelidade, mansidão, domínio próprio…” (Gál. 5:22 e 23). O domínio próprio, ou temperança, por definição é o uso moderado do que é bom e abstinência do que é mau. Portanto, os nascidos do Espírito têm desejos normais, não distorcidos pela natureza pecaminosa.

Corpo, mente, espírito

De acordo com as Escrituras, os seres humanos não são constituídos pelos dois clássicos elementos dos filósofos gregos – corpo e alma -, mas de três aspectos que formam uma unidade indivisível: corpo, mente e espírito. Paulo apresenta o fundamento bíblico para esse conceito: “O mesmo Deus vos santifique em tudo; e o vosso espírito, alma e corpo sejam conservados íntegros e irrepreensíveis na vinda de nosso Senhor Jesus Cristo” (I Tess. 5:23). As palavras gregas das quais foram traduzidos os termos “espírito, alma e corpo” são, respectivamente, pneuma, psuchê e soma.

Ao criar o homem, Deus o fez do pó da terra, soprou em suas narinas o fôlego de vida, e o homem passou a ser alma vivente. Deus criou um ser total: corpo, mente e espírito, e não um corpo com alma. Esses três fatores são inseparáveis. Destruindo-se um, são destruídos simultaneamente os demais. A alma imortal dos filósofos e gnósticos não existe nas Escrituras Sagradas. Portanto, não existe algo como destruir o corpo para, desse modo, tentar salvar a alma. Essa não é a forma de controlar os desejos de um ser humano.

A solução

Se nem jejuns, vigílias, flagelos nem celibato são úteis para dominar os desejos do corpo e mente carnais, qual é o método bíblico para alcançar tal experiência? A resposta é: única e exclusivamente o poder de Deus, infundido na alma de todo aquele que aceita a Jesus como Salvador pessoal. Quando acontece tal experiência, o Espírito Santo toma posse do espírito humano e o transforma milagrosamente. Esse é o novo nascimento, descrito em João 3, e a nova criatura, mencionada em II Coríntios 5:17.

O homem carnal, dominado por sua natureza pecaminosa, não pode controlar seus desejos. Não importa o que faça por si mesmo, jamais o conseguirá. Por isso, monges, freiras e ermitões da Idade Média fracassaram; assim como fracassarão todos os que, ainda hoje, tentarem se valer desses métodos. Martinho Lutero foi um dos que mais se esforçaram nesse sentido. E somente conseguiu quando descobriu o evangelho, “poder de Deus para salvação de todo aquele que crê”. Esse poder continua sendo o único método eficaz para vencermos quaisquer obstáculos em nossa vida espiritual. Ele tem origem divina – Jesus Cristo, o Senhor de tudo, incluindo nossos desejos.

Gaston Clouzet, pastor jubilado, reside em Libertador San Martin, Entre Rios, Argentina