A qualidade da comunhão, amor e amizade existentes na congregação diz muito sobre a saúde espiritual da igreja

O modelo de discipulado desenvolvido por Jesus não era absolutamente inédito. Filósofos gregos já o praticavam com muito sucesso. Platão (428 a.C.-348 a.C.), considerado o maior filósofo da antiguidade, parece ter sido o mais dedicado e também o mais ardoroso discípulo de Sócrates, e principal divulgador de suas ideias.1

“Ao longo de todo o período greco-romano, várias figuras filosóficas e religiosas reuniram ao seu redor pessoas que poderiam ser classificadas como seguidores, partidários, estudantes ou discípulos. Tais públicos receptivos sorviam e cultivavam os ensinamentos de seu líder, iniciando assim a formação de várias tradições intelectuais ou religiosas, que eram então transmitidas de geração em geração.”2 Algumas dessas “escolas” atravessaram séculos e ainda são reconhecidas hoje: pitagóricos, platônicos, aristotélicos, epicuristas, estoicos, escola de Qumran, casa de Hilel, escola de Filon.3 Condições socioeconômicas, culturais, intelectuais e mesmo políticas faziam o lastro desse modelo filosófico-pedagógico de ensino relacional.

Ao estudar essas escolas do período greco-romano, R. Alan Culpepper identificou algumas características, entre as quais duas soam muito peculiares ao cristianismo. Primeira característica: ênfase na amizade e no companheirismo. Segunda, a prática de tomar refeições juntos.4 Tratando dessas características, Keith Philip destacou o seguinte: “Jesus usou relacionamento semelhante com os homens que Ele treinou para difundir o reino de Deus. Seus discípulos estiveram com Ele dia e noite, durante três anos, ouviam Seus sermões e memorizavam Seus ensinamentos. Viram-
nO viver a vida que Ele ensinava.”5

Fundamento das relações cristãs

Entretanto, havia algo diferente, peculiar, pessoal, relacional, no método de Cristo. O discipulado de Jesus não estava fundamentado na disciplina, na filosofia, nem no tecnicismo. Alicerçava-se no amor. Na verdade, e para ser mais específico, estava fundamentado numa grande amizade entre Ele e os discípulos, aos quais chamou de “amigos” (Jo 15:15). A amizade entre Cristo e Seus discípulos tinha como fundamento o conhecimento da verdade (Jo 15:16), o amor entre eles (Jo 15:17), a comunhão com o Pai, o Filho (Jo 17:21) e, evidentemente, o Espírito Santo (1Co 12:13).

Relacionamentos horizontais – entre pessoas – dependem muito do relacionamento vertical – entre pessoas e Deus. Essa relação entre pessoas e Deus é não somente oportuna, mas também necessária. Haddon Robinson criou uma máxima ao dizer que “é mais difícil construir pontes do que paredes. Mas isso não altera uma realidade: os não cristãos são atraídos pelos cristãos e depois por Cristo”.6

“A qualidade da comunhão, amor e amizade existentes na congregação diz muito sobre a saúde espiritual da igreja. Quando a igreja é fria e carente de uma comunhão efetiva, ela não pode experimentar crescimento real. Jesus afirmou: ‘Com isso todos saberão que vocês são Meus discípulos, se vocês se amarem uns aos outros’ (Jo 13:35).”7

A pedagogia do Espírito

É oportuno lembrar que a palavra “pedagogia”, tão fundamental nas relações pessoais do discipulado, teve origem na Grécia clássica, sendo composta de duas outras palavras gregas: paidós (criança) e agogé (condução). O termo “pedagogo”, como é evidente, surgiu naquele período de efervescência intelectual, da palavra paidagogós, cujo significado é preceptor, mestre, guia, aquele que conduz. Essa era a palavra que identificava o escravo que conduzia os meninos até o paedagogium, local de ensino.

Como parece claro, a relação vertical-pessoal é fundamental para desenvolver as relações pessoais-horizontais, que derivam da primeira. Pois, se de um lado somos o paidagogós no papel de fazer discípulos, por outro, o Espírito Santo é nosso Paidagogós em Seu papel de nos tornar discípulos. Ele é nosso Mestre e guia. Jesus garantiu: “O Conselheiro, o Espírito Santo … lhes ensinará todas as coisas e lhes fará lembrar tudo o que Eu lhes disse” (Jo 14:26).

Nesse texto, João utilizou pelo menos duas palavras pedagógicas: “ensinar” (didaxei) e lembrar (hupomnesei). Outra palavra bem próxima a hupomnesei é hupomone, que significa paciência ou perseverança, usada num contexto escatológico, em Apocalipse 14:12. Observe que o Espírito Santo trabalha conosco com os mesmos verbos com que trabalhamos com nossos alunos ou discípulos: lembrar, ensinar, perseverar.

O apóstolo Paulo destacou que o Espírito de Deus “testifica com o nosso espírito (Rm 8:16). Portanto, se acreditarmos, se permitirmos, nossa relação com o Espírito Santo será muito próxima e muito real. O papel do Espírito Santo, também chamado de “Ensinador de justiça” (versão King James), é muito responsável no propósito de nos levar à comunhão mais profunda com Deus.

“O Espírito Santo é um divino professor. Se prestarmos atenção às Suas lições, nos tornaremos sábios para a salvação… Prestem atenção aos ensinos do Espírito Santo. Caso isso seja feito, eles serão constantemente repetidos até as impressões estarem como se fossem ‘gravadas na rocha para sempre’.”8

O evangelismo não prescinde do relacionamento pessoal, presencial e, finalmente, comunal. Existem hoje várias e excelentes ferramentas não pessoais para iniciar e desenvolver a evangelização. Porém, sua consolidação somente é possível quando se estabelece um relacionamento pessoal. Campanhas de evangelismo que começam no contexto impessoal precisam de cuidados especiais em sua transição para o contexto pessoal, a fim de se evitar perdas e frustrações. É necessário ter atenção especial a esse quesito, principalmente neste mundo pós-moderno em que existe a tendência para relações impessoais, cada vez mais empregadas na evangelização.

Simplicidade versus tecnicismo

Talvez em função de uma vasta pluralidade de recursos e informações disponíveis, os métodos de evangelização podem parecer complicados para os membros da igreja, que são a força-tarefa do evangelismo. A utilização de um tecnicismo exacerbado poderá confundir mais que propriamente orientar a irmandade que, por sua vez, será tentada a ver essa tarefa como trabalho para profissionais.

Especialidade, sofisticação e tecnicismo poderão tomar o lugar da simplicidade do evangelho, conforme anunciado por Jesus Cristo e pelos apóstolos. Sobre essa questão, ao mesmo tempo em que Aldrich declara que “a maioria dos treinamentos evangelísticos envolve ajudar as pessoas a aprender a ‘dizer palavras’ do evangelho”, ele também afirma que “pouca atenção é dispensada para se desenvolver uma filosofia bíblica do ministério que mude a vida coletiva da igreja, de fealdade para beleza”.9

Em outras palavras, ele defende que, mesmo sendo importante, tem havido muita ênfase no treinamento, quando deveríamos nos preocupar um pouco mais com a beleza do evangelho e sua divulgação, tornando essa tarefa mais agradável e mais pessoal. É necessário fazer uso de uma linguagem simples, que possa alcançar os membros da igreja. Por exemplo, evitar linguagem teológica e acima da capacidade de compreensão dos membros leigos. O uso desse tipo de linguagem pode deixá-los receosos de responder aos apelos do treinamento.

Muitos podem considerar utópico apresentar o modelo de vida apostólica para uma igreja que vive dois mil anos depois, num estilo pós-moderno de vida. Embora esquecido, esse também pode ser um caminho de liberdade para um mundo doente e dependente de um estilo de vida que não foi escolhido, mas imposto por meios e poderes desconhecidos. Além disso, a grande marca proposta por Jesus aos apóstolos foi o amor fraternal. “Como Eu os amei, vocês devem amar-se uns aos outros” (Jo 13:34).

O contato pessoal, relacional, comunal que deve marcar o testemunho evangelístico precisa estar acompanhado das marcas pessoais deixadas pelo Espírito Santo na vida de quem testemunha o poder do evangelho. Essas marcas podem se expressar por meio de três características simples: sentimento (o amor exige sentimento, emoção ternura), simpatia (um rosto amável, feliz, sorridente, combina mais com o cristianismo) e sinceridade (a sinceridade cria a possibilidade de todo cristão poder testemunhar).

Comunhão e persuasão

À medida que o tempo passa, o ser humano vai se diluindo em um mar de estatísticas e, aos poucos, vai deixando de ser uma pessoa para ser um número; vai deixando de ser alguém para ser mais um.

Nas igrejas atuais, especialmente nas grandes congregações, esse é um risco calculado. Inúmeros membros flutuam num oceano de cabeças erguidas e olhares distantes, na expectativa de ser vistos como pessoas que precisam de ajuda, como pessoas à procura de alguém que se pareça com Jesus. Entretanto, eles mesmos poderiam fazer muito para melhorar esse quadro, participando de um pequeno grupo. Se um membro pertence a um pequeno grupo, ele não mais está sozinho; também não mais se sentirá sozinho.

À semelhanhça do antigo Israel (Êx 12:1-4), a igreja cristã primitiva viveu seus melhores momentos de consagração, comunhão e amor fraternos (At 2–4) enquanto experimentou os benefícios dos relacionamentos em pequenos grupos. A antiga estratégia deu resultado e a igreja crescia e se multiplicava não somente em número, mas também em qualidade, sendo “um o coração e a alma dos que criam” (At 4:32). E perseveravam “unânimes… partindo o pão de casa em casa” (At 2:46).

Os conceitos em torno da palavra “persuasão” são amplos, assim como pode ser a importância dessa palavra. Pastores, anciãos e demais líderes da igreja, normalmente, são vistos pela comunidade e por seus amigos como alguém próximo de Deus, que tem algo a dizer acerca de Jesus Cristo e da salvação. Esses pastores e líderes poderão aproveitar melhor sua condição socioeclesiástica, com o propósito de, sob a direção do Espírito Santo, persuadir pessoas amigas e da comunidade a aceitar Cristo.

Certo pastor visitou uma igreja na qual era bastante conhecido. Depois do sermão, enquanto despedia os irmãos, encontrou-se com um homem com o qual já havia conversado sobre a salvação. E lhe perguntou: “Você já foi batizado?” Diante da resposta negativa, o pastor prometeu voltar àquela igreja, para batizá-lo. A filha do homem, que ouvia o diálogo, informou que também não era batizada, e o pastor a incluiu em seu apelo. Quase sempre esse “ataque direto” proporciona resultado positivo e até surpeendente.

“O discipulado de Cristo não estava fundamentado na disciplina, na filosofia nem no tecnicismo, mas no amor”

O plano de Deus

Joseph Aldrich relata uma interessante lenda10 a respeito do retorno de Jesus ao Céu, depois de haver concluído Seu ministério terrestre. De acordo com essa lenda, ao chegar ao Céu, Jesus foi abordado por um anjo:

“Mestre”, disse anjo, “Tu deves ter sofrido terrivelmente na Terra!”

“Sim, de fato”, Cristo teria respondido, e o anjo continuou:

“Sabem eles tudo a respeito do Teu amor por eles e o que fizeste em favor deles?”

“Oh, não!”, disse Jesus, “ainda não. Neste momento, apenas poucas pessoas na Palestina sabem disso.”

O anjo se mostrou perplexo:

“Então, o que fizeste para que todos saibam desse amor?”

“Pedi a Pedro, Tiago, João e a mais alguns amigos que contem às outras pessoas a Meu respeito. Aqueles a quem Minha história for contada dirão a outras pessoas. Assim, a história será espalhada por todo o mundo. Finalmente, toda humanidade saberá a respeito da Minha vida e de tudo o que fiz.”

Demonstrando perplexidade, o anjo retrucou:

“E se Pedro, Tiago e João se cansarem? E se lá no século 21 as pessoas simplesmente não contarem a história a outras? Tens um plano alternativo?”

“Não”, respondeu Jesus, “não tenho outro plano.”

É difícil imaginar que o Céu e todos os seus poderes dependam do ser humano para levar adiante a história da redenção. Isso parece reduzir o poder de Deus e o extraordinário drama do Calvário. Porém, Deus precisa mesmo de cada um dos Seus filhos redimidos. Precisa de pessoas para salvar outras pessoas. Pessoas entendem suas necessidades mútuas e comuns, podem entender as dores, carências, angústias e frustrações de outras pessoas. Por essa razão, deve ser criado um laço de simpatia, em toda oportunidade que o cristão tiver de se relacionar com os semelhantes.

Talvez Deus não tenha ninguém além de você e eu, para salvar aquela pessoa diante da qual Ele nos colocou naquele dia, naquela hora, naquele lugar, naquele encontro…

Referência:

  • 1 Keith Philip, A Formação de um Discípulo (São Paulo: Vida, 2001), p. 19.
  • 2 Julio Fontana, Revista de Teologia & Cultura, nº 1, julho-setembro 2055, seção 3, p. 3.
  • 3 Wayne A. Meeks, O Mundo Moral dos Primeiros Cristãos (São Paulo: Paulus, 1996), p. 35-113.
  • 4 R. Alan Culpepper, The Johannine School (Missoula, MT: Scholars, 1975), p. 258, 259.
  • 5 Keith Philip, Ibid.
  • 6 Joseph C. Aldrich, Amizade, a Chave Para a Evangelização (São Paulo: Vida Nova, 1992), p. 12.
  • 7 Emílio Abdala, Diagnose (Artur Nogueira, SP: União Central Brasileira, 2013), p. 68.
  • 8 Ellen G. White, E Recebereis Poder [MM 1999], p. 164.
  • 9 Joseph C. Aldrich, Op. Cit., p. 18.
  • 10 Joseph C. Aldrich, Op. Cit., p. 13.