Um veterano administrador denominacional analisa o papel da disciplina na igreja, mostrando como equilibrar a justiça e a misericórdia e como distinguir a conduta sujeita a disciplina.
Até mesmo começar a formular uma resposta a essa pergunta envolve outro problema: Quão importante é que a igreja seja pura e unida? A resposta é evidente noutra pergunta: Quão importantes para Deus são a pureza e a unidade? Pois Deus tenciona que a igreja seja moldada pelo Seu próprio caráter.
Qual é o caráter de Deus? Deus é santo. Deus é justo. Deus é um. Ele quer, portanto, que Sua igreja seja pura, impoluta e unida. Quando a igreja é corrupta ou desunida, ela nega o caráter de Deus. E a igreja perde o poder divino em seu desempenho na proporção em que se acha desprovida do caráter de Deus.
Certamente uma igreja contendedora e desunida projeta uma imagem de Deus que tende a repelir as pessoas. Estas creem em amor, pureza e unidade quando vêem e experimentam tais coisas. Quando a igreja transige com o mal e se toma hipócrita na doutrina ou na vida, dissipa-se o seu poder. Então o testemunho da igreja perante o mundo torna-se ineficaz e é frustrado o seu desígnio de prover um círculo familiar (Koinonia) no qual os membros possam crescer até a maturidade de Cristo (Efés. 4:11-16). Quando há falta de amor ou disciplina, a missão da igreja é defeituosa em seu próprio âmago.
Deparamos assim face a face com um problema fundamental: Como pode a igreja equilibrar a justiça e a misericórdia, a disciplina e a boa acolhida? Como pode a igreja manter ao mesmo tempo a unidade e a pureza?
A palavra-chave é equilíbrio, que não é fácil de ser alcançado. Parece que precisamos contender continuamente, por um lado, com os ardentes unificadores, e, por outro lado, com os purificadores profissionais. A polarizada tendência humana consiste em unir a todo custo, não importa quão errônea seja a doutrina e/ou a conduta, ou em começar a separar o trigo do joio agora!
Na realidade, a separação, até certo ponto, é essencial à santidade. Há, porém, uma separação profana — uma separação que negligencia o amor e a misericórdia, e degenera inevitavelmente em julgamentalismo e cisma. Outrossim, a unidade é boa — é o traço fundamenta] da Divindade e deve refletir-se na vida da igreja. No entanto, há uma unidade profana quando ela ocorre em resultado de infidelidade, transigência e corrupção doutrinária.
Que dilema! Há, porém, uma solução: é o exercício da correta disciplina da igreja. E a Bíblia ensina claramente tal espécie de disciplina. Em derradeira instância, a disciplina separa as pessoas da qualidade de membro da igreja. O Novo Testamento delineia um padrão para a devida disciplina eclesiástica. O próprio Mestre esclareceu quem deve ser disciplinado, e por que razão e como. Volver os olhos para esse padrão nos habilitará a evitar extremos e alcançar equilíbrio disciplinar.
Quem Deve ser Disciplinado?
O Novo Testamento toma claro que se a pessoa é culpada de impenitente e declarada delinqüência moral, deve ser disciplinada. “Expulsai, pois, de entre vós o malfeitor”, aconselhou o apóstolo Paulo em I Coríntios 5:13. Os apóstolos requeriam o mesmo tratamento rigoroso para os que fossem culpados de ensinar heresias: “Se alguém vos prega evangelho que vá além daquele que recebestes, seja anátema”. Gál. 1:9. João chegou a dizer dos fomentadores de heresia: “Se alguém vem ter convosco e não traz esta doutrina, não o recebais em casa, nem lhe deis as boas-vindas. Porquanto aquele que lhe dá boas-vindas faz-se cúmplice das suas obras más”. II S. João 10 e 11.
Cumpre notar que a disciplina recomendada nesses dois casos faz alguma concessão àquele que cai nalgum pecado do espírito ou que peca e se arrepende (ver I S. João 5:13-18). Entretanto, deve ser imposta a disciplina mais rigorosa àquele que peca deliberadamente e prossegue de modo impenitente na aberta violação da lei de Deus. Também é importante notar que a disciplina em questões de fé não é para alguém cuja debilidade se restringe a interrogações e dúvidas pessoais. Judas escreveu a esse respeito: “Compadecei-vos de alguns que estão na dúvida — salvai-os, arrebatando-os do fogo”. S. Judas 22. Quando, porém, as dúvidas pessoais são nutridas e expressas de tal modo que sejam proclamados ensinos contrários aos princípios fundamentais do evangelho, a disciplina da igreja é indispensável.
Quando a igreja deixa de disciplinar em casos de impenitente e manifesta delinquência moral e ensino.de heresias, toma-se culpada do pecado da impureza e de unidade profana, e encontra-se sob a condenação de Deus. Por outro lado, quando a separação é determinada por outras razões que não sejam a incúria moral ou o ensino de heresias, a igreja toma-se culpada de separação profana e do pecado do cisma, que também a coloca sob a condenação de Deus.
Talvez o problema mais difícil em relação a isso seja determinar o que constitui heresia disciplinável. Os princípios bíblicos indicam que essa heresia tem que ver com as partes essenciais da fé cristã, as doutrinas fundamentais da igreja. Ensinar crenças contrárias a tais pontos básicos, de modo que se chegue a participar de divisória ou desleal oposição à igreja, é heresia. Uma prova segura de heresia consistiria na falta de um membro submeter-se à autoridade e disciplina da igreja.
Por que a Igreja Deve Disciplinar?
O objetivo primordial da disciplina é salvar ou restaurar a pessoa que pecou. A disciplina no tempo de Paulo era “a fim de que o espírito seja salvo no dia do Senhor” (I Cor. 5:5). Por meio da disciplina, os homens deviam aprender a não ser blasfemos (Ver I Tim. 1:20).
Paulo escreveu à igreja de Tessalônica: “Irmãos, não vos canseis de fazer o bem. Caso alguém não preste obediência à nossa palavra dada por esta epístola, notai-o; nem vos associeis com ele, para que fique envergonhado. Todavia, não o considereis por inimigo, mas adverti-o como irmão”.’ II Tess. 3:13-15.
Em suma, a disciplina da igreja destina-se a ser um meio de graça, e não de destruição; uma evidência de amor, e não de ódio ou temor.
O segundo motivo da disciplina da igreja é advertir a outros. A disciplina, neste sentido, é uma repressão ao pecado. “Quanto aos que vivem no pecado, repreende-os na presença de todos, para que também os demais temam”. I Tim. 5:20.
Percebe-se na disciplina apostólica um terceiro motivo legítimo: a disciplina da igreja pode ser útil para resguardar a reputação de Cristo e da igreja. O bom nome da igreja e do cristão merecem proteção contra o descrédito público. A igreja deve ser sensível a esse requisito. A proteção estende-se igualmente aos membros da igreja. A corrupção não deve ter livre curso. É significativo que o motivo da proteção se encontra em segundo plano no ensino do Novo Testamento. A proteção é insinuada, mas isso não constitui evidentemente o motivo primordial na mente do apóstolo. O nome de Cristo e a igreja são forte e suficientemente capazes de sobreviver aos fracassos humanos. E o mesmo acontece com o cristão individual que confia em Deus. Dar-se-ia o caso de existir o receio de que se a proteção se tornasse o motivo primordial, em lugar do amor pelo pecador, a disciplina degenerasse rapidamente em formas de inquisição?
Importa notar que o objetivo da disciplina da igreja jamais deve ser punitivo. Nosso Deus reserva a punição para Si mesmo. “Não vos vingueis a vós mesmos, amados — escreveu o apóstolo Paulo aos Romanos — mas dai lugar à ira; porque está escrito: A Mim Me pertence a vingança; Eu retribuirei, diz o Senhor”. Cap. 12:19.
Em poucas palavras, o ensino bíblico exclui todo legalismo, espírito de vingança, medo, orgulho ou presunção humana no exercício da disciplina da igreja.
Na igreja, só Deus pode ser o juiz supremo. Somos uma comunidade de recebedores de misericórdia.
Como Deve ser Administrada a Disciplina da Igreja?
O primeiro passo no exercício da disciplina é a oração e o exame de consciência. Disse o Mestre: “Tira primeiro a trave do teu olho e então verás claramente para tirar o argueiro do olho de teu irmão”. S. Mat. 7:5. Paulo estabeleceu sólidas regras que excluíam a presunção, a rivalidade, a inveja e a injustiça. “Se alguém for surpreendido nalguma falta — disse ele — vós, que sois espirituais, corrigi-o, com o espírito de brandura; e guarda-te para que não sejas também tentado. Levai as cargas uns dos outros”. Gál. 6:1 e 2.
“Enquanto não vos sentirdes dispostos a sacrificar o amor-próprio e mesmo dar a própria vida para salvar um irmão em erro, não tirastes a trave do próprio olho de maneira a estar preparados para ajudar a um irmão. Quando assim fizerdes, podeis aproximar-vos dele, e tocar-lhe o coração. Pessoa alguma já foi conquistada de um caminho errado por meio de censura e exprobra-ções; mas muitos têm sido afastados de Cristo, e levados a cerrar o coração contra a convicção da culpa. Um espírito brando, uma suave e cativante atitude, pode salvar o errado, e cobrir uma multidão de pecados”. — O Maior Discurso de Cristo, p. 112.
Aquele que não examinou cuidadosamente sua própria vida acha-se desqualificado para ser o agente de Deus na disciplina.
O padrão do Novo Testamento para a disciplina da igreja é delineado pelo próprio Mestre (ver S. Mat. 18:15-18).
O primeiro passo é ir ter com o irmão e aconselhá-lo pessoalmente. “Se teu irmão pecar, vai argüí-lo entre ti e ele só. Se ele te ouvir, ganhaste a teu irmão”. Verso 15.
Paulo salienta a importância desse primeiro passo (ver Gálatas 6:1 e 2; Rom. 15:1). Para ele, era cismático e mau ir primeiro a qualquer outra pes-soa. Quando alguém fala primeiro com outros, logo começam a propalar-se pela igreja boatos desfavoráveis. O caso é contado a uma pessoa, a outra e a outra mais, até que a salvação do pecador quase se toma impossível.
O segundo passo, se o primeiro não surtir efeito, é levar junto consigo ou-tros membros de índole espiritual para aconselhar o culpado. “Se, porém, não te ouvir, toma ainda contigo uma ou duas pessoas, para que, pelo depoimento de duas ou três testemunhas, toda palavra se estabeça”. S. Mat. 19: 16.
Evidentemente, Paulo empregou esse método ao requerer que se evitasse o homem faccioso, “depois de admoestá-lo primeira e segunda vez, pois … tal pessoa está pervertida e vive pecando, e por si mesma está condenada” (Tito 3:10 e 11). Ele disse também que não se deveria aceitar uma denúncia contra um ancião, “senão exclusivamente sob o depoimento de duas ou três testemunhas” (I Tim. 5: 19).
Como passo final, vem então a disciplina coletiva pela igreja. “Se ele [o culpado] não os atender, dize-o à igreja; e, se recusar ouvir também a igreja, considera-o como gentio e publicano”. S. Mat. 18:17.
Cumpre notar, em conexão com esse procedimento, que a disciplina da igreja é efetuada com maior proveito por disciplinadores que, além da preparação espiritual, podem falar autorizadamente em nome da comunidade da igreja. É perigoso e, às vezes, embaraçoso assumir a responsabilidade de administrar disciplina independentemente de relações de responsabilidade na igreja.
A análise deste assunto me impele a fazer as seguintes observações:
1. O mundo secular parece tornar-se cada vez mais negligente em assuntos morais e na observância dos mandamentos de Deus. Em tal tempo como este, a igreja não deve transigir nos pontos absolutos estabelecidos por Deus. A correta disciplina da igreja requer ação imediata e decisiva. Por outro lado, as normas proclamadas na Palavra de Deus e adotadas pela igreja não devem ser substituídas por normas particulares. Nenhum ministro, igreja individual ou associação tem autoridade para estabelecer provas de comunhão para a Igreja mundial.
2. Se os membros faltosos precisam ser separados da comunhão da igreja, isso deve ser efetuado de acordo com o modelo apostólico. Como sabeis, há muitas outras maneiras, além desta, de romper a comunhão ou de separar, magoar, castigar ou punir o culpado. Recorre-se ocasionalmente a críticas, pressões indevidas do púlpito ou pela pena e outros meios antiescriturísticos. O resultado, com freqüência, é o pecado do cisma, que Deus não encara levianamente. Paulo coloca as porfias, ciúmes, facções, divisões e intrigas junto com outras obras da carne (ver Gál. 5:19-21).
3. O equilíbrio de Deus em justiça, amor e fidelidade é o método do Calvário, por cujo intermédio é impossível ter demasiado amor, fidelidade ou justiça. É bem possível, porém, que à parte do sublime amor revelado no Calvário a infidelidade se disfarce em amor, e a falta de amor em fidelidade.
Retomamos, portanto, ao ponto de partida: O caráter de Deus deve refletir-se em Seu povo hoje em dia, pois Ele tenciona que a igreja seja moldada pelo Seu próprio caráter. A disciplina da igreja é a instrumentalidade humana usada por Deus para cumprir o Seu desígnio.
Qual é o caráter de Deus? Deus é santo. Deus é justo. Deus é um. Ele quer, portanto, que Sua igreja seja pura, impoluta e unida.
Em todo momento e em todo lugar, o ministro recordará que é um subpastor, representando com suas palavras, conduta, aparência pessoal e comportamento o “Supremo Pastor”.
“Os ministros de Cristo são os guardas espirituais do povo confiado ao seu cuidado”.
Walter R. Beach, Ex-Secretário da Associação Geral. Agora está jubilado e reside em Loma Linda, Califórnia.