Uma definição de predestinação diz que, “em sentido amplo, predestinação é a predeterminação do desígnio ou fins específicos universais de Deus; e, em senti-do mais restrito, é a decisão eterna, tomada nos insondáveis conselhos de Deus por um decreto imutável, de reservar certo número de indivíduos para a salvação eterna, chamada de escolha, e certo número deles para a destruição eterna, denominada de rejeição”.1 Esse conceito de predestinação é encontrado em muitos teólogos, mesmo aqueles que são considerados reformadores e, principalmente, Calvino. Um biógrafo desse reformador resume o seu pensamento, dizendo que ele considerava todos os homens merecedores do inferno, e que “a maioria deles vai para lá”. É somente pela graça de Deus, “e não pelos atos dos homens, que uns poucos são mandados para o Céu. São os eleitos, escolhidos por Deus, na Sua sabedoria, muito antes de nascerem. Têm por destino glorioso, sem que nenhuma virtude sua concorra para tal, o serem bafejados pelo sorriso de Deus”,2 escreve o biógrafo.
O mesmo escritor, que talvez não seja dos mais confiáveis, continua dizendo que Calvino recomendava aos seus discípulos não cruzarem os braços, só porque a recompensa ou o castigo de um homem depende de um poder exterior. Dizia-lhes que ninguém pode saber se é eleito ou não, a não ser por um sinal interior de Deus. Cada indivíduo devia esperar esse sinal enquanto vivesse. A esperança do sinal interior devia levar cada homem a viver corretamente.
O Dr. Herbert Kiesler, autor de recente publicação editada pelos adventistas,3 explica como o conceito de dupla predestinação foi introduzido na Igreja Cristã, tomando-se uma questão séria. Agostinho (354-430), Bispo de Hipona, no Norte da África, ensinava que Deus só concede Sua graça aos eleitos, ou seja, àqueles que devem receber o Seu imerecido favor, de acordo com a Sua decisão arbitrária. Tal graça é irresistível; portanto, os eleitos serão salvos. Os que não são assim escolhidos, continuam em seus pecados, e estão condenados para sempre. Kiesler explica, ainda, que Lutero e Calvino adotaram esse conceito de predestinação, no século dezesseis.
Com o esclarecimento adicional de que na questão que estamos examinando “os adven-tistas do sétimo dia são arminianos”, o Dr. Herbert Kiesler lembra quem foi Jacques Armínio (1550-1609), um célebre teólogo holandês, que combateu vigorosamente a doutrina da predestinação, defendida por reformadores que o antecederam. Cada indivíduo, segundo Armínio, recebeu o poder de escolher ou rejeitar a Cristo. Os que, de acordo com a previsão de Deus, rejeitaram a Cristo, foram destinados para a morte. A graça e a justiça de Deus são concedidas aos que escolhem crer.
Em Jesus Cristo
Essa maneira de procurar resolver o tão delicado assunto da predestinação satisfaz, até certo ponto, as inquietações que ele apresenta. Não há dúvida de que é tranqüilizador saber que Deus, em Sua onisciência, tinha já conhecimento de quem deveria crer em Cristo, e de quem deixaria de aceitá-Lo. Isso, entretanto, ainda se confunde um pouco com o ensino calvinista, segundo o qual a pessoa poderá ouvir o evangelho e até interessar-se pela sua mensagem, mas não será salva, pois está predestinada para a perdição.
Por esse motivo, há, na Epístola aos Efésios, algo que, acredito, poderá solucionar a questão. De acordo com esse ponto de vista, nada muda no plano da salvação. Deus continua sendo onisciente como sempre foi, Cristo é, ainda, o mesmo Salvador do homem, e este possui, como desde o momento em que foi criado, o direito de escolha.
Em que consiste, então, a solução apresentada por Paulo aos efésios? Esta se encontraria não no homem, mas em Cristo. Isto é, não é o homem a pessoa escolhida, mas nosso Senhor Jesus Cristo. Ele foi a pessoa escolhida para efetuar a salvação da raça humana, antes da fundação do mundo. Em lugar de uma escolha caprichosa da parte de Deus, em que uns são aceitos em detrimento de outros, a escolha repousa sobre Cristo Jesus; e, aos indivíduos, é facultado o direito de aceitar ou não o Seu sacrifício.
A Epístola aos Efésios está fundamentada, basicamente, em duas palavras, a saber, a expressão “em Cristo”. O apóstolo Paulo usou essa expressão mais de vinte vezes, só nessa carta, para falar das bênçãos com as quais fomos abençoados (1:3). Às vezes essa expressão é substituída pela contração da preposição em com o pronome pessoal da terceira pessoa do singular Ele, mas se subentende com facilidade que o escritor está falando de Cristo. As-sim, quando ele diz que Deus “nos abençoou com todas as bênçãos espirituais nos lugares celestiais em Cristo; como também nos elegeu nEle antes da fundação do mundo”,4 está utilizando as duas formas que mencionamos acima. Excepcionalmente, Paulo chama a Jesus de Amado (1:6), e diz que nEle (o Amado) Deus nos fez agradáveis a Si.
Pois bem, usando uma dessas maneiras de expressar-se, Paulo fala, primeiramente, de escolha: “Como também nos elegeu nEle antes da fundação do mundo” (v. 4). E, junto com a eleição, fala (v. 5) sobre predestinação. Dessa forma, a eleição e predestinação tomaram-se realidade em Cristo antes da fundação do mundo. Nós sequer existíamos, mas Cristo já existia; e nEle se tomaram realidade escolha e predestinação. Quer dizer, Ele fora escolhido e predestinado para efetuar a salvação; e os que, utilizando-se de seu direito de escolha, O aceitam, são salvos; o mesmo não acontecendo com aqueles que O rejeitam. Assim sendo, ninguém é escolhido; mas o próprio indivíduo é quem escolhe ou rejeita a si mesmo, quando aceita ou rejeita a salvação que lhe é oferecida.
É provável que essa maneira de encarar a predestinação, nos deixe um tanto receosos, visto estarmos acostumados com a forma tradicional de examiná-la. Poderemos perguntar como nos é possível estar certos de que as coisas funcionam dessa maneira. O próprio uso da expressão “em Cristo”, relacionado com outras bênçãos de que fala o apóstolo, que nos foram concedidas, contribui para melhor compreensão do assunto.
Em Efésios 2:6, por exemplo, Paulo fala das mudanças que sofremos, ao passarmos da condição de mortos em nossos delitos, para o estado de vivificados. Declara ele que Deus nos ressuscitou juntamente com Cristo e “nos fez assentar nos lugares celestiais, em Cristo Jesus”.
A expressão “lugares celestiais” aparece três vezes na Epístola aos Efésios (1:3; 2:6; 6:12). Há diferentes interpretações quanto ao verdadeiro local no qual estariam situados esses lugares celestiais, achando uns que é no Céu, e outros que é aqui mesmo na Terra, onde temos que lutar contra “os príncipes das trevas deste século, contra as hostes espirituais da maldade”.
Contudo, segundo o capítulo 2:6, os lugares celestiais são o lugar onde Cristo está assentado, e onde Deus nos fez assentar também. Observemos que o contexto nos fala dos três passos seguidos por Deus, em relação a Cristo: vivificação, ressurreição e entronização. Segundo Paulo, acompanhamos a Jesus nestes três passos. E onde foi Jesus entronizado, depois de vivificado e ressuscitado? Por certo, no Céu. O capítulo 1:20 diz exatamente isso. Diz que Deus ressuscitou dos mortos a Jesus e O fez assentar à Sua direita nos Céus.
Ora, nenhum de nós, por mais espiritual que se considere, haverá de imaginar que já se encontra em pessoa nos Céus, onde Cristo Se acha neste momento. Concluirá, porém, que ali está “em Cristo”. Isto é, deduzirá que, em tendo aceito a Jesus como seu Salvador pessoal, e nEle tendo depositado suas esperanças de vida eterna, mantém essa fé e essas esperanças firmadas em Cristo, onde quer que Ele esteja. E, como Ele Se encontra à direita de Deus nos Céus, ali também estamos. Nosso Senhor Se tomou o nosso representante junto ao trono do Pai. Pessoalmente, poderemos estar a grandes distâncias de onde Ele Se acha; mediante a fé nEle, porém, estamos presentes nos lugares celestiais.
Com respeito à predestinação, o raciocínio é o mesmo. Somos predestinados para a salvação, porque Cristo o foi, antes que o mundo existisse. Sem que O aceitemos pela fé, não adquirimos essa predestinação. Não somos melhores do que quaisquer outros indivíduos.
Se observarmos bem, é exatamente isso o que os mais belos e confortadores versos bíblicos, como João 3:16 e Tito 2:11, querem dizer. Esses dois versos nos ensinam a universalidade do plano salvador de Deus. “Todos os homens” são favorecidos por Deus com o direito à salvação por meio de Cristo Jesus. Como diz Paulo, escrevendo aos Colossenses,5 grego e judeu, circunciso e incircunciso, bárbaro e cita, servo e livre todos são nivelados em Cristo.
Na defesa que faz da justificação pela fé, Paulo salienta essa igualdade do homem, no que tange à sua falta de justiça. “Não há diferença”, argumenta ele, “porque todos pecaram e destituídos estão da glória de Deus”.6 Ele declara que a justiça de Deus só se toma possível “pela fé em Jesus Cristo”. E é precisamente essa fé em Jesus Cristo, o qual Se encontra assentado junto ao trono de Deus, depois de ter feito expiação pelos nos-sos pecados, o que nos toma predestinados para a salvação. A fé “em Cristo”, um Ser predestinado por Deus para efetuar a nossa salvação, predestina também o que nEle crê.
Videira e varas
Jesus explicou aos discípulos, por meio de uma conhecida figura, o efeito de alguém estar nEle, ou de estar dEle separado.7 Após dizer-lhes que estivessem nEle, explicou-lhes que da mesma forma que “a vara de si mesma não pode dar fruto, se não estiver na videira”, assim também eles se não estivessem nEle. E acrescentou: “Eu sou a videira, vós as varas.”
Na alegoria da videira, o fruto é uma conseqüência de o ramo estar ligado ao tronco. Separada deste, a vara ou ramo não pode continuar apresentando o verdor e fruto. Logo murchará, e estará pronta para ser consumida pelo fogo. O mesmo acontece com aquele que não está em Cristo. Com certeza perecerá.
A predestinação que nos vem pelo fato de termos sido escolhidos por Deus em Alguém a quem Ele escolheu, também é uma conseqüência. É a conseqüência de estarmos em Cristo. Como o fruto deve continuar no ramo, recebendo os nutrientes, até que esteja maduro e pronto para ser colhido, o crente deve estar em Cristo até o seu amadurecimento espiritual, ou até que Cristo venha buscá-lo em Seu retomo.
Pelo fato de ser a videira que determina as características do fruto, poderá parecer que seja também Deus quem escolhe e predestina o indivíduo. Contudo, a condição para que haja fruto e para que este possua os seus característicos, é estar na videira. Para o crente, a condição é estar em Cristo. A escolha e a predestinação não lhe pertencem por direito; são-lhe atribuídas porque o foram a Cristo, antes que o mundo existisse, e só aceitando a Jesus e nEle permanecendo, é possível alcançá-las.
Qualquer que seja o estágio do processo salvífico do homem, sempre terá que ser alcançado em Cristo. O que se poderia chamar de “produto final”, não depende mais do concurso dessas duas palavras, do que as fases intermediárias pelas quais todo o processo deve passar. A escolha e a predestinação à sombra das quais estivermos finalmente abrigados, deverão ter sido fruídas em Cris-to, do mesmo modo que outra qualquer etapa de nossa experiência religiosa.
Em conclusão a várias explicações dadas aos cristãos de Corinto, o apóstolo Paulo usou estas palavras que inúmeras vezes têm sido recitadas por aqueles que amam ao Senhor: “Assim que, se alguém está em Cristo, nova criatura é: as coisas velhas já passaram; eis que tudo se fez novo.”8
Na batalha que se trava para fazer com que “as coisas velhas” se tomem fatos do passado, freqüentes são as derrotas, quando o empenho é feito por esforço pessoal. Em Cristo, porém, desponta a nova criatura. E se esta não se afastar do caminho que leva à vida, desfrutará da bênção da eleição que lhe é assegurada na pessoa de Cristo Jesus.
Jesus, o Eleito
Como foi dito, os eleitos e predestinados o são porque Jesus foi eleito antes deles. Tal afirmação possui base bíblica. Muitas passagens das Escrituras o dizem, tanto no Antigo como no Novo Testamento, e vale a pena lembrar algumas delas.
Além do texto de Efésios, citado no início dessas considerações, e que afirma ter Deus nos escolhido em Cristo antes da fundação do mundo, podemos mencionar por exemplo a citação que o apóstolo Pedro faz do livro de Isaías, em I Ped. 2:6: “Pelo que também na Escritura se contém: Eis que ponho em Sião a pedra principal da esquina, eleita e preciosa; e quem nela crer não será confundido.” Esse mesmo texto, lembrado aos judeus pelo próprio Cristo como uma referência a Ele, fala a Seu respeito como a Pedra escolhida. Para com Deus, Jesus era a Pedra eleita e preciosa.
“Com infinita sabedoria, escolheu Deus a pedra fundamental, e a colocou Ele mesmo. Chamou-a ‘firme’. O mundo inteiro pode depor sobre ela seus fardos e pesares; pode suportá-los a todos… Cristo é uma ‘pedra já provada’. Aqueles que nEle confiam, Ele nunca decepcionará. Suportou todas as provas. Resistiu à pressão da culpa de Adão e da de sua posteridade, e saiu mais que vencedor dos poderes do mal. Tem suportado os fardos sobre Ele lançados por todo pecador arrependido. Em Cristo tem encontrado alívio o coração culpado… Todos quantos fazem dEle sua confiança, descansam em segurança perfeita.”9
Grande estudioso das profecias messiânicas, o evangelista Mateus cita, como cumprimento de uma dessas predições, o que escreveu Isaías, mais de setecentos anos antes de Cristo: “Eis aqui o Meu Servo, que escolhí, o Meu Amado, em quem a Minha alma se compraz; porei sobre Ele o Meu Espírito, e anunciará aos gentios o juízo.”10 Por certo, essa escolha de Deus não se limita ao tempo, apenas, mas à eternidade também. Não diz respeito só à ocasião em que Jesus aqui esteve, mas a toda a Sua existência. Foi uma escolha feita antes da fundação do mundo. 1 2 3
Ao falar aos atenienses sobre a necessidade de arrependimento por parte de todos os homens, o apóstolo Paulo justificou o apelo que fazia: “porquanto tem determinado um dia em que com justiça há de julgar o mundo por meio do Varão que destinou: e disso deu certeza a todos, ressuscitando-O dos mortos.”12
A ressurreição de Cristo, segundo Paulo, era como se fosse o recibo passado por Deus a to-dos os homens, garantindo-lhes que havia destinado a Jesus para julgar o mundo. Jesus está destinado ou escolhido por Deus a fim de julgar o mundo – uma escolha que se deu, por certo, antes da fundação do mundo, que irá julgar.
Assim, esse Jesus que foi escolhido por Deus “com infinita sabedoria”, e de quem Deus deu “certeza a todos, ressuscitando-O dos mortos”, certeza de que O destinou para julgar o mundo, tomou-Se Aquele em quem se tomam eleitos e predestinados todos os que crêem. O evangelista João, depois de ter vivido com Jesus vários anos e ter entendido como poucos o fizeram o problema de estar ou não “em Cristo”, decide a questão: “Quem crê nEle não é condenado; mas quem não crê já está condenado.”13
É preciso lembrar, portanto, que a predestinação é uma conseqüencia; não um ato caprichoso de Deus; não é uma imposição dAquele que nos trouxe a este planeta, mas o resultado de uma decisão de nossa parte ao aceitarmos o plano da redenção.
Sem contradições
Naturalmente, poderá surgir a indagação: E o que fazer com tantas declarações bíblicas que afirmam que Deus escolhe os que irão estar no Seu reino? Não dizem as Escrituras que foi Deus quem endureceu o coração de Faraó, e que os irmãos Esaú e Jacó se portaram como o fizeram por interferência divina?
As declarações bíblicas que tratam da eleição efetuada por Deus, não são incompatíveis com a eleição e predestinação “em Cristo”. As Escrituras são coerentes. Se foi Deus quem escolheu a Cristo, para que nEle os indivíduos, mediante decisão pessoal, tornem-se escolhidos ou não, tudo acontece como se Deus estivesse escolhendo tais pessoas. Além do mais, o fato de colocar Deus todos os meios à disposição do ser humano, para que este aceite o convite de Sua misericórdia, torna-O, de certo modo, o responsável pela eleição. O homem, porém, é quem decide.
Com relação a Faraó, é bom lembrar que o Egito faz parte do globo terrestre, palco no qual ocorreu o drama da cruz. Faraó poderia ter crido no evangelho pregado através de símbolos. Bem que o sangue do Cordeiro lhe foi oferecido, como a todos os israelitas e egípcios da sua época; mas foi rejeitado. A eleição “em Cristo” não encontrou nele resposta positiva.
“O endurecimento do coração de Faraó se tem provado problema obcecante, se não real pedra de tropeço, para muitos leitores da narrativa vetero-testamentária. Tem-se pressuposto que Deus endureceu o coração de Faraó e, então, justamente, puniu-o por seu empedernimento.
“Entretanto, dever-se-ia observar, primeiro, que se diz que Deus endureceu o coração de Faraó, diz-se também com igual clareza que Faraó endureceu o próprio coração. Segundo, Deus estava operando à base de leis naturais e o coração de Faraó foi endurecido como conseqüência de suas decisões e ações livres, desafiantes e cruéis.”14
Ficam aqui, portanto, essas considerações sobre o polêmico assunto da predestinação. Que não tenham servido para aumentar as dúvidas já existentes; antes, sejam elas uma contribuição aos que têm estado a indagar qual a situação em que se encontram.