• I. Introdução

Há os que se sentem tão felizes e orgulhosos com sua fé que pensam ter a resposta para todas as interrogações. Como crêem estar com a verdade, ocorre-lhes talvez que tenham condições de tudo explicar e até derrotar a qualquer adversário, não importa sua ideologia ou posição. E na verdade, a doutrina bíblica é uma doutrina sólida. Na Palavra de Deus pode-se encontrar a resposta a todas as interrogações que necessitem ser respondidas. Contudo às vezes passa-se por alto nesta análise a um aspecto vital do qual partem todas as demais diferenças para com aqueles que não possuem fé. Se não fosse olvidado, poder-se-ia ir ao fundo do problema sem necessidade de envolver-se em discussões e rodeios. E poder-se-ia também compreender melhor o quanto se depende de Deus para crer, pois a fé é um dom que recebemos de Deus, não por alguma faculdade especial do homem, mas por graça divina.

O terreno natural ao qual se costuma levar o crente por parte de um cético é a um tempo racional e teórico. Muitos pensam que nesse terreno se utiliza um critério científico, mas como cristãos podemos pôr em dúvida quanto de científico ou racional resulta dessa maneira de enfocar as coisas, e o máximo que podemos alcançar é um ponto zero. Podemos extremar o ceticismo de nosso antagonista e levá-lo a uma total incerteza, depois de chegar a admitir que até para as coisas mais simples necessitamos de fé, mesmo para a assim chamada maneira científica de analisar as coisas. Sem embargo, o máximo que se pode alcançar com este sistema, se é que não se tenha entrado numa controvérsia, é demonstrar quão insuficiente e miserável vem a ser a razão humana, destituída de outro elemento superior. E na realidade, quando tomamos a razão como ponto de apoio único e exclusivo, ficamos com a impressão de que esta flutua sobre o nada.

  • II. Um Deus Inútil

Ainda assim há os crentes, os quais pensam que podem demonstrar a existência de Deus. Apoiados em Rom. 1:20 e outros textos, mostram a Natureza, os céus, a ordem do Universo e a conseqüente lógica de uma ordenação universal a que chamam Deus. Deste modo uma grande porcentagem de cristãos até consideram irracionais os que se crêem racionais em seu ceticismo. Mas se fizermos uma análise honesta, estes argumentos em geral não só não convertem a ninguém, mas chegam a congelar mais ainda o incrédulo em sua posição. Podem plantar-se interrogações de índole racional desta forma, mas dificilmente um cético irá querer aceitar um Deus pessoal por estes meios. Muitos ateus quando muito chegam a admitir um princípio primário incompreensível, no transcurso de um diálogo. Vale dizer, a existência de um motor estacionário que faz que todos os demais motores se movimentem. Mas todo aspecto pessoal se lhes resulta inconcebível. Os arrazoados desta classe não favorecem, na verdade, o caminho ao Deus pessoal da Bíblia. Por este mesmo caminho muita gente tem acabado por endeusar a Natureza acima do Criador.1

Este Deus intelectual acaba por ser na prática um jogo da razão para encher um vazio que lhe infere um teorema. É um Deus de quadro-negro, desenhado em branco e preto. É um Deus abstrato, concebido por nossa mente, mas impotente para agir, um Deus inútil e desnaturalizado, ao qual se cortaram os braços e ao qual a miúdo se tem confundido com a Natureza. Daí a acusação ao panteísmo de ser um ateísmo disfarçado. Quando permitimos que se nos leve para este terreno mediante discussões filosóficas, o que fazemos em grande medida é fundamentar esta posição. Dificilmente podemos tirar nosso ouvinte desta linha de raciocínio. As armas que utilizamos não dão para mais. Já o disse Paulo: “Na sabedoria de Deus, o mundo não O conheceu”.3

  • III. Deus Se Demonstra ou Se Revela?

O problema de Deus encarado desta maneira especulativa começou com os antigos filósofos gregos, e entrou no cristianismo com a maior força por intermédio de Tomás de Aquino, monge dominicano da idade medieval, admirador de Aristóteles. Tomás dizia que pela fé Deus Se nos revela, e que pela razão O demonstramos. Disse ainda que esta última via é suficiente para chegar-se ao conhecimento de Deus, embora admitisse que o conhecimento que se obtém pela revelação é mais completo.4 Com base neste princípio, verteu o seu pensamento num estilo silogístico, tentando tirar conclusões de diferentes problemas na base de premissas em geral aceitáveis. Claro que ele não sabia que este princípio levado às últimas conseqüências iria parar num racionalismo insípido, que tiraria pela borda toda idéia de Deus. As conclusões a que se chegaram posteriormente foram então muito diferentes das suas. Alguns séculos depois, mediante o racionalismo procurou-se solapar todo fundamento da fé, e isto culminou com o completo endeusamento da razão.

Descartes, iniciador da filosofia moderna, procurou encontrar um ponto de apoio para a razão, descartando a fé. Não negou a fé, mas como ocorreu com Tomás, pensou que poderia prescindir dela. Deste modo a filosofia começou girar nos séculos subseqüentes em torno do valor, alcance e fundamento da razão. Descartes alegou que ninguém poderia negar o fato do pensamento, e que este fato demonstrava a existência. Em seu afã de encontrar um ponto de partida mais sólido para sua filosofia, valeu-se da razão para chegar a conclusão de que ninguém lhe podia negar que era um ser pensante. Mas como ele mesmo teve de admitir, embora parcialmente, não podia ir muito além de figuras geométricas e linhas vazias. Contudo tentou também demonstrar a existência de Deus, embora o seu procedimento nunca satisfizesse a todos. A partir daí empiristas e idealistas continuaram debatendo para saber de onde a razão obtinha o conhecimento, se da experiência ou de si mesma.

Embora hajam-se passado vários séculos e se vejam ainda hoje os seus efeitos fortemente arraigados, nota-se em muitas correntes filosóficas atuais um cansaço por estas linhas abstratas de pensamento. Muitas correntes dão antes por assentado a existência deste veículo natural pelo qual pensamos, e lhe assinalam um fim utilitário que o comum do povo costuma aceitar quase como dogmático. Deixam este aspecto sem resolver ou como resolvido, e analisam toda outra ideologia de acordo com os fins que perseguem. Esta linha de pensamento tampouco é mais favorável na verdade ao caminho para o Deus pessoal bíblico. Não é só que para assuntos de religião em geral mantêm o esquema racional ateu em pé, mas seus fins diferem essencialmente de nossa fé em que se centraliza tudo no homem, e descartam igualmente a fé em Deus. Não lutam pela glória de Deus, mas pela glória do homem, e distante dEle só conseguem miséria e ruína. Não se esforçam por uma coroa incorruptível, mas por uma que perece. Os fins destas correntes, de um ao outro extremo, continuam procurando de uma ou de outra forma o endeusamento do homem. O problema continua sendo o mesmo: ceticismo pelas coisas de Deus.

Em geral, os reformadores puseram de lado este conceito de razão suficiente. Calvino, talvez o mais agudo dos reformadores, previu algo de tudo isto. Disse que é em vão que a criação exiba tantos luzeiros acesos para demonstrar a glória do seu Autor. São totalmente insuficientes para conduzir à senda correta. Admitiu que lançam algumas chispas de luz, mas acrescentou que são apagadas antes que possam proporcionar brilho mais refulgente. Conquanto a divindade esteja representada na Natureza, disse que nossos olhos não o percebem, a menos que sejam iluminados por Deus mediante a fé.

Ellen G. White também declara a impossibilidade de conhecer a Deus mediante a razão humana somente. E na realidade, não podemos demonstrar a um cético nossa fé, visto que demonstrando-a a fazemos desnecessária. “Os mais profundos estudantes da ciência são constrangidos a reconhecer na Natureza a operação de um poder infinito. Ora, para a razão humana, destituída de auxílio, o ensino da Natureza não poderá deixar de ser senão contraditório e enganador. Unicamente à luz da revelação poderá ele ser interpretado corretamente. ‘Pela fé entendemos’ ”.6

Se considerarmos a Palavra de Deus, veremos que a Bíblia tampouco argumenta desta maneira. Não procura demonstrar a existência de Deus, senão que a dá por decidida, e se entrega à tarefa de guiar o homem a um conhecimento direto e pessoal dEle. E mais, adverte contra esta maneira de discutir. Paulo aconselhou a Timóteo que exortasse a não contenderem sobre palavras que para nada aproveitavam, e que resultavam em perdição dos ouvintes, levando cada vez a maior impiedade.7 Em sua primeira carta ele havia já advertido que “se alguém ensina outra coisa, e não se conforma com as sãs palavras de nosso Senhor Jesus Cristo, e com o ensino segundo a piedade, é enfatuado, nada entende, mas tem mania por questões e contendas de palavras, de que nascem inveja, provocação, difamação, suspeitas malignas”, etc.8 Aos efésios ele escreveu: “Não mais andeis como também andam os gentios, na vaidade dos seus próprios pensamentos, obscurecidos de entendimento, alheios à vida de Deus por causa da ignorância em que vivem”.9 E aos Colossenses: “Cuidado que ninguém vos venha a enredar com sua filosofia e vãs subtilezas (…) conforme os rudimentos do mundo, e não segundo Cristo”.10

  • IV. Qual É o Problema?

A raiz do problema está em que nossa fé não se baseia na razão, mas que esta é um veículo que deve ser guiado pela revelação que Deus nos dá de Si mediante a fé. Vez após vez, com tristeza de alma se tem visto quão inútil é convencer ou ganhar alguém discutindo

intelectualmente sobre quão racional é uma posição ou outra. Os que se apóiam na “vaidade dos seus próprios pensamentos”, para não crer, não podem ver diferente, porque não estão possuídos de um poder superior que lhes abra os olhos. A nós outros, que temos visto e ouvido, custa-nos entender como é que eles não podem ver. Mas se é certo que não há pior cego do que o que não quer ver, há também os que não podem ver. Nossa fé não se baseia na razão, não se fundamenta em lucubrações abstratas ou “científicas”, mas em evidências sustentadas pelo Espírito de Deus. Daí o tremendo abismo que há entre um incrédulo e um religioso. Se o Espírito Santo não realiza o milagre da conversão, que poderá nossa argumentação fazer? “O que não nascer de novo não pode ver o reino de Deus”.11

É fora de dúvida que até mesmo entre os crentes deve haver um novo nascimento para maior compreensão. Mas isto é mais verdade em relação a um cético. Cristo e os apóstolos reconheceram este abismo de diferença. “O que é nascido da carne”, disse Jesus, “é carne; e o que é nascido do Espírito, é Espírito”.12 Nosso Senhor viu que era inútil demonstrar a Nicodemos o que lhe falava, visto que até entre os maiores sinais que realizara, o único vínculo que poderia levá-lo ao conhecimento pleno do reino de Deus era a fé. “Se tratando de coisas terrenas não me credes, como crereis, se vos falar das celestiais?”13 Em outras palavras, o que não tem o dom da fé, não pode ir além das coisas tangíveis deste mundo.

Nossa fé é algo de vivência. O fundamento de nossa fé se encontra na experiência vivificada pelo Espírito Santo e alimentada pela Palavra de Deus. De modo que tudo que podemos fazer ante um cético é dar um testemunho desta experiência. A este testemunho Paulo chamou “a loucura da pregação”. Não temos por que nos deixar levar por “filosofias” e “vãs subtilezas”. Podemos manter-nos em um terreno mais seguro. Assim se manteve Cristo quando disse a Nicodemos: “Nós dizemos o que sabemos e testificamos o que temos visto”; mas acrescentou: “Contudo não aceitais o nosso testemunho”.14

Paulo se encontrava nesta mesma situação em suas pregações. “O mundo não conheceu a Deus mediante a sabedoria”, escreveu aos corinhos, “porque os judeus pedem sinal e os gregos buscam sabedoria, mas nós pregamos a Cristo crucificado, que é escândalo para os judeus e loucura para os gentios, mas para os que foram chamados, tanto judeus como gregos, pregamos a Cristo, poder de Deus e sabedoria de Deus”.15

As interrogações que os gregos antigos faziam aos crentes, como as de hoje em dia, foram respondidas desse modo pelo mais erudito dos apóstolos. Judeus e gregos de diferentes modos mostravam incredulidade. E para mostrar como deviam proceder os cristãos Coríntios, recordou-lhes como havia ele feito quando lhes levou o evangelho. Não se dirigiu a eles argumentando silogisticamente. “Quando fui ter convosco, anunciando-vos o testemunho de Deus, não o fiz com ostentação de linguagem, ou de sabedoria”, disse. “Porque decidi nada saber entre vós, senão a Jesus Cristo, e este crucificado (…), para que a vossa fé não se apoiasse em sabedoria humana, e sim, no poder de Deus”.16

Os judeus, demonstrando incredulidade, também haviam pedido sinal a Cristo. “Esses sinais não eram, todavia, aquilo de que os judeus necessitavam. Nenhuma prova meramente externa lhes poderia aproveitar. O que precisavam, não era iluminação intelectual, mas renovação espiritual. (…) Na pregação da Palavra de Deus, o sinal que se devia manifestar então e sempre, é a presença do Espírito Santo a fim de tornar a palavra uma força regeneradora para os que a ouvem. Esta é a testemunha de Deus perante o mundo, quanto à divina missão de Seu Filho”.17

Se nos rebaixamos a argumentar racionalmente, estamos perdendo o tempo. “O homem natural não compreende as coisas do Espírito de Deus, porque lhe parecem loucura, e não as pode entender, porque se discernem espiritualmente”.18 Não é questão de ganhar um debate nem de demonstrar quão bem fundamentados estamos racionalmente, embora às vezes não seja mau demonstrar que não somos irracionais. Paulo dizia isto por experiência própria, e estes argumentos dão apoio a nossa fé: “E alguns dos filósofos epicureus e estóicos contendiam com ele, havendo quem perguntasse: Que quer dizer esse tagarela?” E quando quis levá-los daí para um terreno de fé, zombaram, dizendo: “A respeito disto, te ouviremos noutra ocasião”.19

  • V. Conclusão

Que podemos, pois, fazer com alguém que não tem fé nem crê em Deus, e contudo nos pergunta como é que podemos crer? Podemos dizer, naturalmente, que é por experiência pessoal. Mas, nos perguntam em que consiste essa experiência, qual o testemunho que estaremos em condições de dar? Não correremos o risco de passar por “tagarelas?” Se realmente temos nossa experiência em dia, não nos faltarão as palavras para dar um verdadeiro testemunho de nossa fé. Um testemunho vivo é o que mais confunde a um cético, e o que melhor responde a interrogações. São raros os indivíduos que despertam para a fé por interrogações que alguém lhes inspire como resposta ou argumentos, se é que chegam a inspirar-se. Tais pessoas quase não existem. Sim, é fora de dúvida que não há nada mais eficaz para avivar as consciências do que o testemunho vivo do Espírito de Deus.

Só quando carecemos desta experiência viva com Deus, conseguimos justificar nossa fé mediante argumentos filosóficos ou científicos. Muitos destes argumentos não são maus. A uma alma predisposta para a fé, mas que se encontra confundida pelas interrogações que lhe sugere um mundo cético, tais argumentos podem ajudar alguma coisa. Contudo, nunca constituirá o caminho para Deus o conhecimento adquirido totalmente às expensas da revelação que Deus mesmo nos tenha dado.

Quantos de nós estamos em condições de trazer uma alma incrédula, para que venha e veja, como Filipe trouxe a Natanael? Quantos podemos com toda confiança, trazê-los a um lugar à parte e apresentar-lhes a Deus com humildade, para que Deus lhes revele o Seu poder? E se nem ainda testemunhando ou orando conseguimos que o reino de Deus se abra aos céticos, que mais podemos fazer? Seremos por eles menoscabado em nossa fé? Acaso nossa fé se baseia na aceitação ou não aceitação de outros? Graças a Deus pela obra silenciosa de Seu Espírito. “Assim é que não depende do que quer, nem do que corre, mas de Deus, que tem misericórdia”.20 A fé não é um dom nosso, mas de Deus. Ele é o “Autor de nossa fé”. Ele no-la outorga mediante a terceira Pessoa da divindade. E essa fé que todos podem receber mediante o assentimento ao chamado do Espírito de Deus, só pode ser mantida mediante a aceitação humilde da disciplina de Deus. •

  • 1. Ver Test. Seletos, Vol. 3, pp. 259 e 260.
  • 2. Id. p. 270.
  • 3. I Cor. 1:21.
  • 4. Ver Historia de la Iglesia Cristiana, de Willinston Walker, p. 271.
  • 5.  Institutes, p. 62.
  • 6. Educação, pp. 133 e 134.
  • 7. II Tim. 2:14 e 16.
  • 8. I Tim. 6:3 e 4.
  • 9. Efés. 4:17 e 18.
  • 10. Col. 2:8.
  • 11. S. João 3:3.
  • 12. S. João 12:6.
  • 13. S. João 12:12.
  • 14. S. João 12:11. ’
  • 15. I Cor. 1:21-24.
  • 16. I Cor. 2:1, 4 e 5.
  • 17. O Desejado de Todas as Nações, pp. 304 e 305.
  • 18. I Cor. 2:14.
  • 19. Atos 17:18 e 32.
  • 20. Rom. 9:16.