Crendo, como os adventistas crêem, na inconsciência do homem na morte, como explicais a declaração de nosso Senhor acerca do rico e Lázaro? Se isto não ensina que os homens entram de posse de sua recompensa ao morrer, que ensina, então? Qual o propósito da narrativa? Por favor defini vossa atitude.

O COMENTÁRIO teológico acerca da estória do rico e Lázaro tem diferido através dos séculos, com doutos e piedosos mestres de ambos os lados da questão. A maioria, porém, tem considerado a narrativa como parábola, ao passo que outros a têm aceito como relato histórico. Os adventistas, por numerosas razões, consideram-na parábola.

A palavra “parábola” vem do grego parabole, que quer dizer “colocar ao lado”, ou “traçar ao lado de”. Jesus servia-Se de parábolas para revelar grandes verdades. Punha ao lado de uma simples estória uma verdade profunda, e esta era iluminada pela estória simples.

I. Contexto e Intento da Parábola

A estória do rico e Lázaro faz parte de um grupo de parábolas dirigidas particularmente aos fariseus, embora se achassem presentes também “publicanos e pecadores”. O falar Jesus com os párias da sociedade e os pecadores, trouxe-Lhe viva censura dos escribas e fariseus. Murmuravam, dizendo: “Este recebe pecadores e come com eles”. S. Luc. 15:2. Sua atitude deu ocasião a uma série de narrativas comoventes, uma das quais é a parábola do rico e Lázaro. A primeira delas é a estória da ovelha perdida, seguindo-se a da moeda perdida, depois a do filho pródigo e então a do administrador infiel.

Conquanto cada um desses relatos acentue pontos vitais do evangelho de nosso Senhor, a lição a tirar-se delas é a mesma. Ao chegar ao ponto culminante da estória da ovelha perdida, nosso Senhor diz: “Digo-vos que assim haverá maior júbilo no Céu por um pecador que se arrepende, do que por noventa e nove justos que não necessitam de arrependimento”. S. Luc. 15:7. Não se pode deixar de ver uma segunda intenção em Sua referência aos “noventa e nove justos”. Salienta Ele o mesmo pensamento na conclusão da narrativa da moeda perdida, como também na do filho perdido. Em todas elas houve regozijo pela restauração do que se perdera. Tanto os fariseus como a multidão apreenderam a veracidade de Suas palavras, mas os fariseus resistiram a Sua mensagem.

Em Seu empenho de desdobrar Sua mensagem de amor, Jesus ilustrou o reino de Deus de muitas maneiras. Mais de cem vezes encontramos nos evangelhos a expressão “o reino de Deus”, ou “o reino dos Céus”, e Jesus sempre inculcou o pensamento de que Seu reino é presidido pela alegria e regozijo. Aqueles fariseus, porém, dominados como se achavam por tradições, regras e regulamentos absurdos, não encontra-vam em sua religião lugar para a alegria — quanto menos para a restauração dos perdidos. Com efeito, seu orgulho afastava-os daqueles que deviam ser objeto de compaixão.

Assim, para impressionar aqueles homens de justiça própria com a lição do reino, Jesus expôs a parábola do mordomo infiel. Referiu-Se a certo homem abastado, que tinha um mordomo infiel. Este havia esbanjado os bens de seu Senhor e foi por isso chamado a contas. Injusto como era, ele enveredou por um procedimento reprovável. Estava solícito quanto ao futuro, e assim, num empenho por cair nas graças daqueles a quem tinha servido, visitou-os um a um e com eles negociou.

Aos que deviam ao seu senhor, sugeriu ele este método de ajuste: Se alguém devia cem medidas de trigo, o mordomo aconselhava-o a escrever cinqüenta. Isto, naturalmente, era desonesto, fraudulento. Mas como era homem sagaz, desse modo granjeava amigos para o futura. Ninguém quererá afirmar que, nesta parábola, Jesus passasse por alto a desonestidade e artifício do mordomo. Tirava, porém, magistral lição da argúcia daquele homem. Até mesmo o ímpio toma providências para seu futuro terrestre; quanto mais importante é que o filho de Deus tome em conta a vida por vir! Então o Mestre dos mestres acrescenta: “Os filhos do mundo são mais hábeis na sua própria geração do que os filhos da luz”. S. Luc. 16:8.

Essas lições não foram bem acolhidas pelos fariseus, porque “eram avarentos”, e quando ouviram essas palavras “O ridiculizavam”. S. Luc. 16:14. Isto é, procuravam tornar desprezíveis os ensinos de Cristo. Suas ações custaram-lhes severa repreensão de nosso Senhor: “Vós sois os que vos justificais a vós mesmos diante dos homens, mas Deus conhece os vossos corações; pois aquilo que é elevado entre homens, é abominação diante de Deus”. V. 15. Foi nessa ocasião que Jesus pronunciou uma das mais elucidativas declarações de todos os Seus ensinamentos. Disse Ele: “A lei e os profetas vigoraram até João; desde esse tempo vem sendo anunciado o evangelho do reino de Deus, e todo homem se esforça por entrar nele”. V. 16.

O evangelho de Cristo é vasto como o mundo, e em Seu reino todos podem encontrar acolhida, independente de sua posição social, educação, nacionalidade ou situação financeira. Quão diverso dos ensinamentos dos escribas e dos fariseus! Mantinham eles que a pobreza era sinal da maldição de Deus, enquanto as riquezas eram passaporte para a glória. A mensagem de nosso Senhor encontrou pronto acolhimento por parte das multidões, especialmente dentre os que eram desprezados pelos fariseus. Lemos: “A grande multidão O ouvia com prazer”. S. Mar. 12:37. Pessoas de todas as classes da sociedade; os membros oprimidos, assim como muitos dos privilegiados — esforçavam-se por entrar no reino de Deus. Os fariseus, porém, por sua própria atitude para com o grande Mestre e para com os que criam em Sua mensagem, realmente se excluíam do reino.

Para esses disse Jesus: “Ai de vós, escribas e fariseus, hipócritas! Porque fechais o reino dos Céus diante dos homens; pois, vós não entrais, nem deixais entrar os que estão entrando”. S. Mat. 23:13. E outra vez: “Publicanos e meretrizes vos precedem no reino de Deus”. S Mat. 21:31. Os desprezados, sem conhecimento da lei e dos profetas, esforçavam-se por entrai no reino de Deus, mas esses que conheciam as Sagradas Letras — delas distinguiam todos os jotas e tis — recusavam as boas-novas da salvação.

Jesus, em Suas parábolas, denunciou o egoísmo e a avareza, tão dominantes entre os religionistas daqueles dias. Os fariseus eram cobiçosos, e a cobiça vem do egoísmo. Provém do desejo de obter alguma coisa a expensas de outros. Envilece e escraviza a alma. Destrói o são juízo e leva os homens a atos errados, que prejudicam os semelhantes. Fingir justiça para chegar a fins ímpios, é extremamente diabólico.

E era isso, exatamente, o que esses homens faziam. Dominava-os o orgulho e a cobiça, e entretanto estavam ansiosos por justificar-se diante dos homens. Simultaneamente, desprezavam o maior Mestre de todos os tempos. Tinham nas mãos a lei de Deus, mas a lei do pecado estava em seu coração. Conheciam perfeitamente as minúcias da Palavra escrita, mas desconheciam a Palavra viva, o Autor de toda a verdade. Malgrado sua piedade exterior, estavam na realidade rejeitando o Santo de Deus. Sua religião era toda externa, e sua atitude levou o Senhor a proferir aquelas censuras candentes. Em vez de lhes ser a religião uma alegria, tornavam-na uma carga pesada. Em vez de reconhecerem que o reino de Deus estava ao alcance de todos, faziam dele uma herança exclusiva de uns poucos de favorecidos.

Apesar de sua professa piedade, esses mesmos mestres eram em extremo frouxos no que se refere à moral. O divórcio era sancionado pelos rabis, por motivos os mais insignificantes. Hillel, pai de Gamaliel, ensinava que o esposo podia divorciar-se da esposa por motivos banais como deixar queimar a comida, ou mesmo salgar demais a sopa. (Ver o Talmude Gittin 90.a). A flagrante violação, por parte dos fariseus, dos eternos princípios da grande lei moral, levou nosso Senhor a dizer: “É mais fácil passar o céu e a Terra, do que cair um til sequer da lei. Quem repudiar sua mulher e casar com outra, comete adultério; e aquele que casar com a mulher repudiada pelo marido, também comete adultério”. S. Luc. 16:17 e 18.

Quando Jesus proferiu estas palavras, estava perto o fim de Seu ministério público. Fazia o Salvador Seus derradeiros apelos. Tinha a Sua frente publicanos e pecadores, fariseus e a multidão. Como anelava que todos fossem ter com Ele, alcançando a salvação! O propósito especial dessa série de parábolas era mostrar que o reino ao qual Se referia era mais do que simples formalidade cerimonial; era a comunhão com Deus e os homens.

Na narrativa da ovelha perdida, ilustra-se de modo muito lindo o amor do pastor pelas ovelhas extraviadas, ao passo que a diligente procura da moeda de prata por parte da mulher, incutia a lição de que, o que se havia perdido era de real valor. Mas nenhuma narrativa é tão comovente como a do filho pródigo, pois nela vemos o paternal amor de Deus. E é idêntico o ponto culminante de cada uma delas: houve grande regozijo pela recuperação do que se perdera. O relato do mordomo infiel, conquanto mais difícil de compreender, continha uma grande lição, especialmente para os fariseus, pois muitos deles eram argutos comerciantes.

Mas agora o Mestre acentua outra grande verdade: a necessidade de se estar preparado para o dia da morte. Para ensinar essa lição, referiu Ele a conhecida parábola do rico e Lázaro, cujo propósito era acentuar a vital verdade de que as riquezas, em vez de levar o homem para as eternas habitações dos remidos, podem mostrar-se um empecilho para a salvação

A maioria dos comentaristas concorda em que essa original parábola do rico e Lázaro, está com muita lógica colocada depois da narrativa do mordomo infiel. A descrição do homem rico foi por nosso Senhor feita com muita habilidade. Não há indício de coisa nenhuma reprovável em sua vida exterior. Não é ele descrito como sensual, injusto ou viciado. Era abastado e morava numa bela mansão. Além do mais, era tolerante, pois permitia mesmo que Lázaro mendigasse a sua porta. O lugar desse rico, segundo o conceito social dos fariseus, estava-lhe garantido. Como filho de Abraão, o rico sem dúvida muito se orgulhava de sua linhagem. Mas quando terminou o registo de sua vida, um grande abismo separava-o de Abraão — abismo intransponível. Jesus mostrou que sua vida toda passara-a ele numa intuição falsa de segurança. Sendo filho de Abraão, o homem naturalmente se julgava pertencendo ao reino de Deus. Jesus, porém, revelou o fato de que ele não só estava fora do reino eterno, mas fora estava para sempre. Este é o ponto principal da parábola.

II. Análise da Parábola

1. DIFICULDADE DE UMA INTERPRETAÇÃO LITERAL. — O cenário da parábola situa-se em hades, equivalente grego do hebraico sheol. O caso é muitas vezes citado para provar o conceito popular da imortalidade inata da alma. Esses proponentes pretendem que isso lhes dê um vislumbre autorizado da vida futura, provido pelo próprio Cristo, e que descerre o véu do mundo invisível.1

Notemos agora alguns dos problemas que confrontam aos que mantêm esse ponto de vista. Segundo a narrativa, tanto o rico como Lázaro, haviam morrido, tendo sido o rico sepultado na terra, com o cerimonial devido. Embora nada se diga acerca de uma alma intangível e imortal deixar o corpo por ocasião da morte, esses dois personagens são muitas vezes considerados como espíritos desencorporados — duas sombras ou fantasmas, sentindo, respectivamente, miséria e felicidade, cada qual expressando verbalmente sua situação.

O rico, freqüentemente chamado Dives, do adjetivo latino para “rico”, em tormento é descrito na parábola como vendo Lázaro a distância, no “seio de Abraão” — conceito comum — e rogando a Abraão que envie Lázaro para lhe aliviar o tormento, refrigerando-lhe a língua com uma gota de água. Mas, em resposta, é ele lembrado do abismo intransponível que existe entre os dois.

Este é o quadro: o abismo entre o Céu e o inferno, realisticamente demasiado largo para se poder atravessar de um lado para outro, mas suficientemente estreito para permitir que conversem. Ora, a ser literal o relato, as habitações dos remidos e as dos perdidos estão sempre ao alcance da vista mútua, apesar de intransponível o espaço entre ambos. Foi este conceito que deu origem à estranha idéia de Jonatã Edwards, de que a vista das agonias dos condenados enseje a beatitude dos remidos!

Não se deve passar por alto que Lázaro foi levado para o “seio de Abraão”, e não para a presença de Deus. (Ver Parte III.) Abraão é aqui o personagem principal — e cada um dos personagens é apresentado sem que tenha havido ressurreição. Desse conceito resulta, porém, uma série de absurdos e contradições. Cria uma mistura confusa do literal com o figurado, violentando as singelas declarações da Escritura. — Seventh-day Adventists Answer Questions on Doctrine, pp. 544-552. (Continua no próximo número.)

* Assim Pool (comentário sobre S. Luc. 16:22) in siste em que a parábola ensine a existência da alma independente do corpo, tendo a alma dos bons e dos maus passado para o estado de eterna bem-aventurança ou miséria  sem fim. Van Oosterzee (Comentário) também sustenta que a parábola ensine que a vida tanto dos bons como dos maus continue ininterruptamente após a morte — sendo assim a palavra morte sinônima de vida após túmulo.