O uso e o abuso da religião na doença deveriam ser a preocupação de todos os que labutam em profissões relacionadas com a arte de curar. Numa aula que eu estava tendo na Universidade do Sul da Califórnia, encontrei-me com uma senhora de meia-idade, procedente de Singapura, que estava de licença. Depois da aula, falamos de nossos interesses e de nosso trabalho. Quando descobriu que eu era um adventista do sétimo dia ligado a uma instituição médica, ela sorriu e disse:

— Certa vez estive internada no Hospital Santa Helena. Uma senhora muito afável, do serviço de capelães, veio ver-me. Ela estudava a Bíblia comigo, e eu apreciava isso. Um dia eu lhe disse que tinha prazer em estudar com ela, mas queria ser sincera e, como tal, fiz-lhe saber que não tinha interesse em tomar-me adventista.

E acrescentou:

— Quase me arrependi de dizer isso, pois ela nunca mais voltou.

Parece-me que isso é fazer mau uso da religião.

Um ministro bateu à porta do meu gabinete, informando-me que conhecia um paciente muito enfermo, no andar de cima, o qual não estava salvo, e as enfermeiras não queriam deixá-lo entrar para orar com esse homem. Desejava que eu exigisse que lhe dessem entrada. Senti que isso era abusar da religião.

Procurei ser compreensivo. Perguntei se achava necessário estar com o paciente a fim de orar por ele, e se, talvez, não era melhor para o paciente que nem o capelão nem o pastor entrassem no quarto. (Fiquei sabendo que nesse caso foi melhor. A família solicitara que o seu ministro não fosse admitido.) Oramos juntos em meu gabinete. Estava convicto de que isso era uso, e não abuso.

As pessoas religiosas têm condescendido em grande medida com um pensamento desconexo no tocante ao uso da religião, não somente na doença, mas em todo aspecto da vida particular e pública, supondo que se uma atividade é religiosa, deve ser boa, não havendo mais necessidade de fazer perguntas. Dificilmente terá havido na História uma nação que exteriormente tenha tanto respeito pela religião como os Estados Unidos da América, mas é provável que dificilmente também tenha havido um povo para o qual ela significasse tão pouco interiormente.

A religião em si mesma não é boa nem má. Como o conhecimento, o poder, a arte, o domínio ou qualquer outra capacidade do homem, seu valor é determinado pelo uso que lhe é dado. Portanto, a pergunta que fazemos é a seguinte: A religião melhora ou prejudica a vida do paciente — isto é, fortalece ou debilita?

Permiti-me citar um exemplo. Jesus disse: “O sábado foi feito por causa do homem, e não o homem por causa do sábado”. Ora, o sábado não é bom nem mau, mas é o que fazemos com ele que traz a bênção. Havia uma grande diferença entre a prática dos fariseus, que tornavam a observância do sábado uma camisa-de-força, e a prática de Jesus, o qual acreditava que deviam ser curados os doentes e alimentados os famintos sem levar em conta o dia da semana. Cristo não nos deixa em dúvida quanto ao que era uso e quanto ao que era abuso nesse caso.

Gostaria que considerásseis comigo os usos da religião de maneira funcional e pragmática, perguntando como agem na situação particular de pessoas doentes. A fim de que estejamos certos de que todos temos a mesma situação em mente, consideremos primeiro o que acontece com uma pessoa que está doente, e, mais especificamente, quando se encontra num hospital.

Uma pessoa vai ao hospital porque em certo sentido seu bem-estar se acha ameaçado ou prejudicado. Até o check-up rotineiro ou casual pressupõe a possibilidade de que “venha a descobrir algo”. Não importa quão rotineira ou casual se torne a sua hospitalização, de um modo ou de outro a pessoa está atemorizada ou receosa. E, segundo o expressou certo escritor, como toda criatura que está com medo, ou ela foge ou luta. Esse esforço e tensão com freqüência reduz sua habilidade para enfrentar seus receios em sua maneira habitual. Amiúde, ela reverte portanto à meninice. Em certo sentido, é reduzida à infância. (Qual a esposa que não disse do marido: “Ele porta-se como uma criancinha quando está doente”?) Às vezes é amparada, e às vezes é rejeitada.

Que acontece com a vida religiosa do paciente nessas condições? Seus sentimentos religiosos e sua conduta são reduzidos a níveis mais infantis. Se ele conseguia regatear com seus pais, procurará com freqüência regatear com Deus.

— Ó Senhor, se tão-somente me ajudares a ficar bom, nunca mais negligenciarei minha igreja.

Ou talvez mencione a Deus quão boa pessoa tem sido. Isto é injusto. Poderá ser também que condene a si mesmo pelas falhas e erros que tem cometido, sabendo que agora está sendo castigado.

Se prevaleceu empregando acessos de ira ou de mau-humor contra seus pais, talvez tente fazer a mesma coisa com Deus, dizendo: “Ora seja, Senhor, tira-me desta situação!” Poderá ser que fique aterrorizado e peça as orações da igreja e chame o capelão a todo momento.

Na realidade, os casos não são tão bem definidos assim. Estou exagerando para chegar ao ponto que quero chegar. Em geral os pacientes têm seus altos e baixos. O fato é, porém, que freqüentemente se fez mau uso da religião.

Nós que cuidamos dos doentes sempre deveríamos perguntar: “Qual é a mensagem?”

Qual é o uso apropriado da religião? Há uma religião que cura e restaura. Às vezes oro com os pacientes, mas nem sempre. Às vezes leio ou cito um texto, mas nem sempre. Sempre, porém, é meu privilégio formar uma relação que lhes permita falar. Se eles disserem que estão amargurados, deixemos que falem sobre isso; se estiverem irados contra Deus, deixemos que falem sobre isso. A religião não leva algo para o paciente, mas é algo. Ela aceita. Pouco a pouco o paciente obtém confiança. Ele vê que o aceitamos com seus temores, sua ira, suas frustrações, e então talvez reconheça também que Deus o aceita. Podemos ou não ser levados a orar com ele. Se formos prudentes não insistiremos neste sentido. Podemos sentir-nos muito confiantes de que o paciente, talvez depois que tivermos ido embora, descobrirá por si mesmo que sente vontade de orar novamente. Lembremo-nos de que o Espírito Santo não está morto.

O segundo uso correto da religião consiste em ajudar o paciente a descobrir qual é a mensagem transmitida por meu corpo. Isto é às vezes denominado: “A Voz da Doença”. A enfermidade é com freqüência um comentário sobre toda a nossa vida, sobre nosso passado, sobre nosso futuro e sobre nosso estilo. Esta é certamente a filosofia adventista do sétimo dia. Nós que cuidamos dos doentes sempre deveríamos estar perguntando e ajudando o paciente a perguntar: “Qual é a mensagem?”

O terceiro uso correto da religião ocorre quando, depois de havermos feito tudo que nos era possível, manifestamos completa e implícita confiança como a de uma criancinha — “tal qual estou, e sem poder” — confiando em Deus, nos médicos, nos enfermeiros, nos capelães.

Resumindo, dizemos que a prova para sabermos se a religião está sendo usada ou abusada é a seguinte: Ela ajuda a pessoa a enfrentar e aceitar a realidade e a adaptar-se devidamente ao que está acontecendo, ou lhe permite ocultar, negar ou procurar manipular a realidade? A religião salutar produz honestidade emocional, leva o paciente a ouvir a voz da doença e o ajuda a restabelecer relações de confiança consigo mesmo, com os outros, com a vida e com Deus.         

*Assunto apresentado na Reunião Consultiva da Associação Ministerial, outubro de 1976.