OTTO H. CHRISTENSEN
(Professor de Línguas Bíblicas, Emanuel Missionary College)
MUITO tempo e energia são muitas vêzes gastos para, se possível, descobrir quem foi Melquisedeque. Mas a parte importante acêrca dêste personagem importante não é quem êle foi ou é, mas o que foi ou é. Ocorrerá que, ao olhar para a árvore, não tenhamos visto a mata? Tudo quan-to historicamente sabemos acêrca de Melquisedeque está contido em Gênesis 14:18-20 e em Salmo 110: 4. Além disso, temos a declaração de Josefo, cuja história neste assunto é em grande parte uma tradição judaica, de que era um descendente não muito afastado de um dos filhos de Noé, um poderoso chefe de uma tribo entre os cananeus. (1) O Targums judeu apresentava-o como sendo Sem. Opiniões várias têm sido expressas, mas evidentemente o Espírito Santo não estava interessado em nos revelar quem êle era, mas por certo mencionou-o para outro propósito, a fim de que soubéssemos quem êle representava e como nos iria afetar. É-nos dito com clareza que êle era um tipo de Cristo, e neste sentido devemos examinar o tópico. Ao fazê-lo, não devemos esquecer que Jesus é nosso irmão mais velho e um conosco. “Ao tomar a nos-sa natureza, o Salvador ligou-Se à humanidade por um laço que jamais se partirá.” (2) Daí que, o que Lhe afeta a Êle nos afete a nós, e aplique-se a nós também, pois também somos feitos sacerdotes segundo a Sua ordem (I S. Ped. 2:5-9).
Se atentarmos cuidadosamente para o contexto no livro de Hebreus, observaremos que o sacerdócio de Melquisedeque, de cuja ordem Cristo foi, está em contraste com o sacerdócio levítico. A significação dêste contraste é que precisamos observar. O contraste está na maneira em que foram escolhidos os sacerdotes das duas ordens, bem como o contraste de caráter. Notemos, primeiramente, êstes dois pontos, no sacerdócio levítico.
Por causa da condição do povo e do govêrno teocrático nacional, Deus escolheu, para perpetuar o sacerdócio, uma família — Aarão — de uma tribo — Levi. A fim de tornar-se sacerdote dessa ordem, tinha a pessoa que poder provar genealogicamente, ser descendente de Aarão e, Conseqüentemente, elegível para o sacerdócio. (A palavra hebraica para sacerdote é kohen, ou kahn, e foi provavelmente para reter o estado genealógico que muitos judeus tomarem esta palavra como seu nome e a conservaram até ao dia de hoje.) Por isso, entre os descendentes de Aarão, era mantido um registo fiel, de forma que pudesse ser encontrada a linhagem retrospectiva, através dos ancestrais, até ao comêço. Ver Josefo Vida i. 1. A sua profissão vitalícia dependia dêsse registo. Nos tempos do Novo Testamento, dependia, também, de sua saúde, visto que, nesse tempo, o ofício era vendido ao maior licitante dentre os descendentes e, assim, o sacerdócio era mudado freqüentemente. Não obstante, estatuída a lei que os sacerdotes e levitas deviam servir desde os trinta anos de idade até aos cinqüenta. (3) Assim, estava definidamente prescrito o comêço e o fim de seu tempo de serviço, com a duração máxima de vinte anos.
Nos tempos do Novo Testamento, êsse sacerdócio levítico estivera sèriamente corrompido, de forma que, para os judeus, um sacerdote gentil e compassivo era uma novidade. A atitude arrogante, orgulhosa e despótica eram os seus traços habituais. Se bem que da tribo de leão, Jesus tinha o caráter de cordeiro. João disse: “Eis o Cordeiro de Deus.” Assim, para os líderes judeus, Êle era uma “pedra de tropêço”.
O Sacerdócio de Cristo
Cristo foi sacerdote, não segundo a ordem de Levi, mas segundo a ordem de Melquisedeque. O nome corresponde ao Seu caráter. Ê formado das duas palavras hebraicas Melek (rei) e Sedek (justiça). Êle é, pois, Rei da justiça, sacerdote segundo essa ordem. O sacerdote segundo a ordem de Levi, só podia oficiar se provasse a sua genealogia pelos registos mantidos dos descendentes de Levi, especialmente dos da casa de Aarão. Falando de Melquisedeque, reza o texto peshita siríaco (não deixando, assim, dúvida alguma quanto ao verdadeiro sentido de Hebreus 7:3): “Sem pai nem mãe, em genealogia.” Seu sacerdócio não estava dependente de genealogia, mas do caráter. Foi sacerdote por direito próprio, e não foi necessário saber que linhagem possuía. Foi escolhido por Deus, e sem dúvida também pelo povo, não pelo que haviam sido os Seus ancestrais ou de onde viera, mas pelo que era.
Certos passos da Escritura esclarecem mais que outros. Entre êles está Hebreus 5:8, que descreve com tremenda significação o preparo de Cristo que O tornou elegível como sacerdote segundo a ordem de Melquisedec. Se nós também quisermos ser sacerdotes segundo essa ordem, talvez possamos aprender uma lição do que de nós é exigido por essa difícil declaração.
Depois de nos fazer essa pequena alusão no primeiro versículo de Hebreus 5, no tocante a um aspecto misterioso da relação de Cristo para com o Pai, como filho, e para conosco, como sacerdote, o autor desta epístola sugere alguma coisa mais nos versículos 11 e 12. Declara êle aí que muitas outras coisas há, difíceis de entender, que êle gostaria de dizer, mas êles seriam incapazes de rece-ber ou compreender. Eram, provàvelmente, algu-mas das coisas que Pedro achou de difícil compreensão (ver II S. Pedro 3:16). Esta declaração assemelha-se à de Cristo, feita aos Seus discípulos, encontrada em S. João 16:12, onde diz: “Ainda tenho muito que vos dizer, mas vós não o podeis suportar agora.” Esta é uma das mais tristes declarações de Jesus. Que lástima é que embora Jesus estivesse disposto a fornecer informação concernente a grandes verdades da salvação, êles não a pudessem suportar! Estamos nós mais capacitados e dispostos hoje? Sem dúvida muitas destas coisas foram reveladas a Paulo, e êle estava aí buscando transmitir aos hebreus, e a nós, alguns dêsses grandes mistérios.
Notemos cuidadosamente Hebreus 9:7-9 e os pontos salientados. No versículo 7, êle claramen-te se refere à experiência de Cristo no Jardim do Getsêmani. Fêz Êle orações e súplicas em altos brados e com lágrimas Àquele que podia salvá-Lo da morte, mas não O salvou. Mediante essa descrição, podemos, como que ver as lágrimas escorrendo-Lhe das faces, e ouvir os agoniantes brados de nos-so Salvador em luta suprema consigo mesmo. Sal-vá-Lo-á Deus da morte? Desistirá Jesus e salvar-Se-á? Ou vencerá Êle a tentação de preservação própria? Essa foi a grande luta. Isso foi o que O estava qualificando para ser o sacerdote segundo a ordem de Melquisedeque, a que se refere o versículo 2. Sofreu; orou com fervor e angústia tais como ninguém anteriormente havia sentido, nem mesmo Jacó no rio Jaboque. Estava Êle pesando a humanidade — vós, e eu, e o mundo inteiro — contra Si próprio. Qual seria?
Há nisso uma lição para nós. Nós, também, precisamos pesar o bem da causa e do mundo, con-tra nós mesmos. Colocando-Se numa posição em que por Suas provações aprendeu a submissão e a obediência, Jesus foi muito além do que havia sido feito pelos sacerdotes da velha dispensação. Percebeu integralmente a significação. A salvação dos demais significava para Êle a separação eterna do Pai. “Não podia enxergar para além dos portais do sepulcro.” (4)
“A humanidade do Filho de Deus termina naquela probante hora. … O tremendo momento chegara — aquêle momento que decidiría o destino do mundo. Na balança oscilava a sorte da humanidade. Cristo ainda podia, mesmo então, recusar beber o cálice reservado ao homem culpado. Ainda não era demasiado tarde. Poderia enxugar da fronte o suor de sangue, e deixar perecer o homem em sua iniqüidade. . . . Trêmulas caem as palavras dos pálidos lábios de Jesus: ‘Pai Meu, se êste cálice não pode passar de Mim sem Eu o beber, faça-se a Tua vontade’.” (5)
“Foi ouvido quanto ao que temia.” Com maior correção, “em razão da circunspeção.” Por motivo de Sua vida pia, Sua oração foi ouvida. No entanto, não estendeu Êle a súplica além da medida. Três vêzes orara para que o cálice fôsse dÊle afastado, e agora, vendo amplamente o que significaria para nós, se o não sorvesse, pondo inteiramente de parte o eu nessa grande luta, disse: “Faça-se a Tua vontade.” Foi essa obediência que aprendeu. Sua oração não foi atendida, mas respondida. Êle foi fortalecido para suportar aquela experiência para cujo livramento orara e não Lhe fôra concedido. Ao fazer Êle a decisão, foi enviado do Céu um anjo, não para tomar-Lhe das mãos o cálice, mas para fortalecê-Lo e sustê-Lo quando o sorvesse. Aprendeu a obediência pelas coisas que sofreu, isto é, de Sua experiência de sofrimento no horto. Notai agora o resultado. Êle foi aperfeiçoado como filho, tornando-se o autor da salvação para todos os que Lhe obedecem (v. 9). Para nós, disse Êle noutro passo: “Eu vos dei o exemplo.” (6) “Eu sou o caminho e a verdade e a vida.” (7)
Agora, o que há nisso para nós? Dizem as Escri-turas: “Aprendeu a obediência.” Não podemos di-zer que Êle haja sido desobediente antes. Nesse caso, não teria sido um exemplo perfeito. Então, que quer o apóstolo dizer com suas palavras: “Ainda que era Filho, aprendeu a obediência”? Por direito, um filho deve ser obediente, e Jesus, como Filho do Pai, foi obediente. É-nos dito, porém, que “aprendeu a obediência, por aquilo que padeceu.” Sua anterior obediência O preparou para a experiência do sofrimento com que devia participar de uma nova espécie de obediência não adquirida anteriormente, i. é., a obediência a que êste passo se refere “até à morte, e morte de cruz,” (8) a qual foi realmente a segunda morte, ou o aniquilamento do eu. Como nosso Salvador, Êle devia sentir “a angústia que há de experimentar o pecador quando não mais a misericórdia interceder pela raça culpada.” (9) Era uma questão de preservação própria, ou de disposição para perder o eu para sempre, de nada ser, de desaparecer no esquecimento, para que outros vivessem. “O Salvador não podia enxergar para além dos portais do sepulcro. A esperança não Lhe apresentava Sua saída da sepultura como vencedor, nem Lhe falava da aceitação do sacrifício por parte do Pai.” (10) Êle foi além da exigência do dever, e ao dar êsse passo aprendeu por meio do sofrimento a maior das lições possíveis na obediência. Foi essa a grande luta, a fase final da submissão completa. E haven-do aprendido isso, foi então aceito pelo Pai como filho perfeito, e a demonstração dessa aceitação foi confirmada por Sua ressurreição (ver S. João 20: 17).
Agora, que contém, para nós, essa Sua experiência? Muito, especialmente ao verificarmos que nós, também, somos filhos de Deus e sacerdotes segundo a ordem de Melquisedeque, que é um sacerdócio real. Hebreus 5:11 diz: “Do qual muito temos que dizer, de difícil interpretação; porquanto vos fizestes negligentes para ouvir.” A dificuldade experimentada pelo autor de Hebreus consiste na condição espiritual do povo a quem êle estava escrevendo. A palavra original, traduzida para o português “negligente”, é uma combinação de duas palavras gregas, uma das quais significa “não”, e a outra “empurrar,” o que produz “não empurrar.” O uso do tempo imperfeito no verbo “fizestes”, que significa vos tornastes, indica que nem sempre haviam estado nessa condição. Sugere um processo completado no passado, com resultados presentes. Outras palavras possíveis para êsse passo seriam: “Concernente ao que (o ensino, especialmente o de que o Senhor Jesus é um sumo sacerdote segundo a ordem de Melquisedeque) muito temos que dizer; entretanto, para dizê-lo, verificamos ser difícil de explicar, porque vos tornastes em pessoas acomodadas num estado de indolência, e até de estupidez, em vossa compreensão.” Soa isto quase como o estado laodiceano. Poderia essa ser uma parte de nosso estado laodiceano?
A palavra “perfeito”, no versículo 9, provém de outra que significa “levar uma pessoa ou coisa ao nível estabelecido por Deus; levar um objeto ao estado de plenitude adequado ao seu proposto estado, qualquer que êle seja.” Deus tem um alvo estabelecido para nós, e devemos alcançá-lo como filhos de Deus e sacerdotes da ordem de Melquisedeque (I S. Pedro 2:9). A luta de Cristo para preservação própria, é a nossa luta. Êle venceu e Se tornou obediente até à morte e ao desprendimento próprio. Reduziu-Se a nada, para a extinção, como é ilustrado pelo grão de trigo em S. João 12:24. Nós, também, temos que experimentar o nosso Getsêmani para aprender esta lição final, o estado final de submeter o eu completamente. E nessa experiência, também nós seremos ouvidos e fortalecidos. Não podemos, porém, ser perfeitos sem que passemos por nosso Getsêmani. Esta é a nossa grande necessidade presente. Com essa necessidade suprida, que poder teria a igreja remanescente! Se todos os oficiais da igreja fôssem escolhidos por Deus, não haveria luta para atingir posições nem preservá-las. Uma vez que houvéssemos aprendido essa grande lição da entrega completa, nenhum poder na Terra nos poderia entravar a obra. Êste é o nosso repto. “Ainda que era Filho, aprendeu a obediência, por aquilo que padeceu.”
Desistiremos e salvar-nos-emos, ou venceremos o eu e aprenderemos a obediência? Seremos sacerdotes segundo a ordem de Melquisedeque, ou segundo a ordem de Levi? Esta é a nossa pergunta presente. Sua solução equivale à breve volta de Cristo. Deixá-la insolúvel significa maior demora.
Bibliografia
- (1) Flávio Josefo Antiquities of the Jews, i, 10.
- (2) Ellen G. White, O Desejado de Tôdas as Nações, pág. 17.
- (3) Núm. 4:3, 23, 30, 35, 39, 43 e 47.
- (4) White, Op. cit., pág. 561.
- (5) Idem, pág. 517.
- (6) S. João 13:15.
- (7) S. João 14:6.
- (8) Filipenses 2:8.
- (9) White, Op. cit., pág. 561.
- (10) Idem.