Embora sejam radicalmente diferentes em suas conclusões, a extrema direita e a extrema esquerda na Igreja mostram uma surpreendente semelhança: em sua abordagem da Bíblia, os dois lados dependem muito de um desautorizado racionalismo que leva a uma distorção das Escrituras.

O século 18, a Era do lluminismo, mudou radicalmente o pensamento ocidental, criando uma tendência para romper com todo sistema autoritário ou absolutista. Tradições religiosas e fé foram especialmente enfraquecidas em seu curso, dando lugar à autoridade da razão.

Os critérios da pesquisa científica e histórica, não os textos antigos, tomaram-se o árbitro decisivo da verdade. Enquanto essas mudanças criavam raízes, o sobrenatural não era considerado tão real, ao mesmo tempo que as “contradições” na Bíblia eram vistas como provas de sua origem humana. Deus e a Biblia eram rejeitados, ou relegados a um plano inferior no interesse humano.

Antes, durante o século 17, o filósofo judeu Benedict Spinoza já usara um racionalismo dedutivo restrito para construir um sistema que poderia ser considerado alto criticismo. Spinoza limitou a verdade ao que é auto-evidente, matematicamente compreensível, porque dizia ter dificuldade com as “contradições” escriturísticas. Por exemplo, Samuel diz que Deus não Se arrepende (I Sam. 15:29), e Jeremias diz que Deus Se arrepende (Jer. 18:8-10). Por causa desses textos, Spinoza afirmava que ninguém podia dizer que a Bíblia era a Palavra de Deus. Segundo ele, “a Bíblia simplesmente contém a Palavra de Deus”.* 1 Posteriormente, essa noção se tornaria básica para a clássica fórmula liberal.

Liberalismo

Como resposta ao racionalismo, e mesmo à visão naturalista e atéia que começou a dominar, alguns protestantes do século 19 tentaram unir tais forças em seu próprio terreno e começaram a ver a Bíblia através da mesma ótica. Isso talvez tenha sido o início das escolas mais liberais do pensamento.

Frederick Schleiermacher é considerado o pai dessa corrente teológica. O liberalismo protestante não tentava opor-se ao racionalismo; dirigia a atenção dos “erros” na Bíblia e das “narrativas incríveis” para o mais extenso campo da ética bíblica. Se os milagres eram demasiado incríveis para a mente moderna aceitar, o liberalismo realçava a experiência religiosa que poderia ser alimentada pela descrição desses milagres. Noutras palavras, o que era im-portante não era o milagre em si, mas a lição espiritual que ele transmitia.

Os liberais não eram muito dispostos a aceitar a veracidade factual do Dilúvio, da criação em sete dias, da concepção sobrenatural de Cristo, Sua ressurreição corporal, etc. Preferiam destacar os valores morais ou espirituais ensinados através desses “mitos”, enquanto viam os “erros” e “contradições” como prova de que a Bíblia era um livro tão humano como qualquer outro, mesmo se os valores morais e espirituais fossem pertinentes.

A abordagem liberal da Bíblia nega a historicidade dos seus milagres e a realidade factual de muitas dentre suas narrativas, especialmente aquelas relacionadas com nossa origem (Gên. 1 -11). Em resumo, o racionalismo construído por trás da abordagem liberal leva esse movimento a rejeitar o caráter sobrenatural da Bíblia. Separa o que deve ser aceito do que não deve, estabelecendo a razão humana como o único árbitro para fazer a distinção.

Neo-ortodoxia

No século 20, uma outra tendência teológica nasceu com o protestantismo: o chamado movimento neo-ortodoxo. Seus defensores, como Kari Barth e Emil Brunner, retornaram à Bíblia como o principal testemunho da revelação de Deus, mesmo que não pudessem eliminar as pressuposições racionalistas liberais. Assim, encontraram muita dificuldade para aceitar todas as intervenções sobrenaturais alegadas pelos autores bíblicos. A neo-ortodoxia também é caracterizada por sua negação ou rejeição de alguns traços bíblicos sobrenaturais. Para ela, a Bíblia não é a revelação de Deus, mas um testemunho dessa revelação.

Fundamentalismo

Simultaneamente, durante o século 20, outra tendência floresceu dentro do protestantismo. Trata-se do fundamentalismo, uma escola que lutou contra o liberalismo e a neo-ortodoxia. O fundamentalismo tenta defender as crenças fundamentais do cristianismo como apresentadas na Bíblia. Os fundamentalistas são conhecidos como conservadores (ou extrema direita), porque são interessados em conservar a fé tradicionalmente concebida pela Igreja. Obviamente, os fundamentalistas defendem a historicidade das narrativas bíblicas, acreditam nos milagres e outros traços sobrenaturais da Bíblia. Entretanto, eles partilham com seus adversários teológicos um elemento comum: submissão às pressuposições racionalistas. Inconsciente co-mo essa tendência pode ser, os fundamentalistas não têm sido capazes de fugir à influência do racionalismo. Isso os tem levado a negar certas feições bíblicas que surgem com a humanidade dos próprios escritores da Bíblia.

Enquanto o liberal não aceita a verdade que Cristo multiplicou pães e peixes, por exemplo, o fundamentalista não pode aceitar que Deus tolerou o divórcio ou a escravidão, ou que alguns escritores inspirados cometeram sérios erros.

O modo silogístico de raciocínio do “extrema direita” é o seguinte: Deus não pode errar. A Bíblia é a Palavra de Deus. Portanto, a Bíblia não tem erros. Obviamente, eles esquecem que a Bíblia apresenta um elemento humano bem como um elemento divino. Além disso, esses cristãos não podem aceitar a possibilidade de que traços humanos e características individuais dos escritores apareçam na Bíblia.

Para aceitar a Bíblia, os fundamentalistas requerem infalibilidade do instrumento humano. É como se dissessem: “Nós creremos na mensagem da Bíblia apenas se pudermos provar que os mensageiros da verdade escriturística são infalíveis e inerrantes.” Mas a Bíblia dá muitas evidências de que os mensageiros de Deus, de fato, não eram infalíveis nem inerrantes. Algumas vezes, Ele teve de corrigir seus enganos; outras vezes, o engano permaneceu, embora a mensagem básica não fosse perdida.

Um exemplo disso é encontrado no Antigo Testamento, em II Sam. 7:1-13. O conselho de Natã a Davi foi construir uma casa para o Senhor. O profeta tinha evidência de que o Senhor estava ao lado do rei (7:1 e 3). No entanto, a vontade de Deus era que o filho de Davi, Salomão, construísse o templo. Nesse caso, Deus corrigiu o engano do profeta. Podemos inferir que se for importante que o erro do profeta seja corrigido, Deus o fará.

Um exemplo do Novo Testamento é encontrado em Luc. 24:1-11. Quando as mulheres anunciaram que a promessa da ressurreição do Senhor se cumprira, os apóstolos não acreditaram na proclamação e declararam que elas estavam loucas. Imagine o que poderia ter acontecido se essa afirmação dos apóstolos permanecesse sem correção? Mas o Senhor retificou a situação. Ele prontamente apareceu a dois discípulos no caminho de Emaús e, depois, a outros que estavam reunidos (Luc. 24:13-48), para dar claro testemunho de que Ele realmente tinha ressuscitado.

Evitando extremos

É dito com precisão que “a Bíblia, com suas verdades dadas por Deus expressas na linguagem dos homens, apresenta uma união do divino com o humano”.2 “A Bíblia precisa ser dada na linguagem dos homens. Tudo quanto é humano é imperfeito.”3 A mesma autora diz que céticos e infiéis “hão de… falar nas contradições da Bíblia, e pôr em dúvida a autoridade das Escrituras.”4 Jun-tando essas declarações, podemos sugerir que os dois extremos, direita e esquerda, não podem existir no terreno bíblico.

A posição mais saudável a ser tomada é a seguinte: “Tomo a Bíblia tal como ela é, como a Palavra inspirada. Creio nas declarações de uma Bíblia inteira.”5

Podemos realmente confiar na direção de Deus e na maneira como Ele nos dá a Sua palavra. Podemos confiar nos instrumentos usados por Deus, não por causa das suas características, mas por causa dAquele que os escolheu e continua a usá-los.

Em tudo isso devemos permitir Deus ser Deus, ou seja deixar que Ele aja de acordo com Sua vontade e não conforme as nossas pressuposições racionalistas. Os instrumentos humanos de Deus, embora finitos e falíveis, foram dotados por Seu Espírito Santo para dar-nos Sua mensagem. A despeito das imprecisões dos enganos humanos, existe um “fundamento harmônico”6 nas Escrituras que fala a cada um de nós. Se nos submetermos ao Espírito Santo, evitaremos o racionalismo extremo, seja ele de direita ou esquerda.

Referências:

  • 1. Benedict Spinoza, The Chief Works of Benedict de Spinoza, trad. R. H. M. Elwes, vol. 1, Intro-duction, Tractatus Theologico-politicus, Tractatus politicus (Londres, George Bell, 1883), págs. 194 e 195.
  • 2. Ellen G. White, Mensagens Escolhidas, vol. 1, pág. 25.
  • 3. Ibidem, pág. 20
  • 4. Ibidem.
  • 5. Ibidem, pág. 17
  • 6. Ibidem, pág. 25.