O pedido de Cristo: “Faça-se a Tua vontade, assim na Terra como no Céu” nos convida a uma reflexão sobre o serviço ao semelhante
Muitos dos meus amigos cristãos se identificam como conservadores sociais e promovem suas respectivas convicções políticas. Também me importo com o assunto, e acredito que devemos estar sempre bem informados e ser mais participativos nas questões que dizem respeito à cidadania. Os cristãos devem tentar mudar o mundo em que vivem. Mas, quando sou pressionado por alguns mais fervorosos em seu alinhamento político, apresento-lhes a sugestão de seguir o exemplo de Jesus em Sua preocupação ativa pelo bem-estar humano. Ele agiu a partir de uma visão de mundo formada através do relacionamento com Deus, não por argumentos de instituições políticas nem pronunciamentos de comunidades comprometidas com interesses partidários.
Compreender a mundivisão de Cristo requer que primeiramente notemos a preocupação dEle pelo bem-estar da sociedade. Solicitado a ensinar como orar, Ele articulou a Oração do Senhor, um modelo que tem encontrado lugar na liturgia da igreja, tanto pela formulação rítmica como pelo conteúdo penetrante. A invocação na terceira linha dessa oração desafia o zeloso cristão com respeito à sua responsabilidade social: “Faça-se a Tua vontade, assim na Terra como no Céu” (Mt 6:10). Buscando a soberania de Deus no presente, a oração se assemelha ao Qaddish, antiga prece aramaica, geralmente usada para concluir o culto na sinagoga.
Como um judeu do primeiro século, Jesus provavelmente tenha recitado o Qaddish, que diz: “Exaltado e glorificado seja Seu grande nome no mundo que Ele criou de acordo com Sua vontade. Permita Ele que Seu reino governe todos os dias da nossa vida e os dias de toda a casa de Israel, agora e sempre” (R. T. France, The Gospel of Matthew, New International Commentary, p. 243).
Oferecida em um contexto de opressão, escravidão, injustiça, desigualdade, abuso e indiferença, a súplica de Jesus – “faça-se a Tua vontade, assim na Terra como no Céu” – representa uma petição radical. Para o Israel dos dias de Jesus, um pedido para que a vontade de Deus fosse feita na Terra podia ser interpretado como significando a derrota do ímpio governo romano. As esperanças messiânicas estavam envolvidas com a soberania política, e Ele poderia ter sido entendido como estando em defesa de soluções políticas. Entretanto, Jesus removeu a identidade nacional de Israel presente no Qaddish e apelou em favor do império da vontade de Deus em toda a Terra, sobre povos e nações.
O que Jesus queria dizer? Por que os discípulos pediram que Ele lhes ensinasse a orar? A vida dos judeus do primeiro século era preenchida com oração. Havia orações de manhã e à noite, recitação de salmos como orações, reconhecimento do templo como lugar de oração e recitação de orações na sinagoga. Que necessidade havia para um novo modelo de oração? Em parte, a resposta é que eles esperavam instruções sobre como orar. Mas, Jesus também quis reinterpretar a comunidade de fé através da oração. Ele abordou o que era mais importante para Deus na comunidade e buscou fixar esses valores na mente dos discípulos. O que Ele quis dizer é ratificado por Sua vida.
Compaixão social
A vontade de Deus na Terra nos convida a refletir sobre o serviço ao semelhante. Uma teologia pastoral que dirija o engajamento da igreja com as necessidades humanas na sociedade começa com a experiência de Jesus. Tendo pouco tempo para a missão, Ele demonstrou compaixão social ao longo de Seu ministério. Não usou Seu propósito escatológico para ignorar o sofrimento presente. As cinco demonstrações seguintes de preocupação social nos dizem alguma coisa sobre Sua mundivisão e Seu ativismo.
Defesa das crianças. Quando crianças Lhe foram levadas, Ele disse: “Deixai os pequeninos, não os embaraceis de vir a Mim, porque dos tais é o reino dos céus” (Mt 19:14). Em uma cultura que oferecia educação seletiva, Ele afirmou: “E quem der a beber, ainda que seja um copo de água fria, a um destes pequeninos, por ser este Meu discípulo, em verdade vos digo que de modo algum perderá o seu galardão” (Mt 10:42). Em pelo menos duas ocasiões, Ele ensinou que servir a uma criança é servir a Ele. Para Jesus, os negócios do reino não são antitéticos à preocupação pela educação, proteção e bem-estar infantil.
Saúde e cura. “Ao pôr do sol, todos os que tinham enfermos de diferentes moléstias Lhos traziam; e Ele os curava, impondo as mãos sobre cada um” (Lc 4:40). O doente era Sua preocupação constante. Ele interrompia Sua agenda de atividades para ministrar cura a pessoas que necessitavam dela. Frequentemente, a cura física expressava restauração espiritual. Porém, também não raro, como na casa de Simão, Jesus ministrou ao doente porque a necessidade alheia era o centro de Seu ministério. Sua preocupação com saúde e cura era universal, sem limites de pobreza, educação, condição social e fé.
Demonstração de igualdade. Cristo alimentou relacionamentos com pessoas socialmente discriminadas. Nenhum mestre judeu podia conversar abertamente com uma mulher, muito menos samaritana. Porém, estando Ele junto ao poço de Jacó, em Samaria, “veio uma mulher samaritana tirar água. Disse-lhe Jesus: dá-Me de beber” (Jo 4:7). A subsequente execução daquele ministério à mulher foi um notável contraste para as desigualdades entrelaçadas na experiência cultural de Seu tempo. E os seguidores de Cristo, na igreja primitiva, conheciam bem a vontade de Deus na Terra, com respeito à igualdade: “Não pode haver judeu nem grego; nem escravo nem liberto; nem homem nem mulher; porque todos vós sois um em Cristo Jesus” (Gl 3:28).
Ajuda ao pobre. Jesus não tinha riquezas para partilhar. Mas, os pobres recebiam Seu respeito e atenção. A oferta de uma viúva pobre foi exaltada como evidência de um grande caráter (Lc 21:3,4). Ele pregou salvação ao pobre (Mt 11:5), desdenhou a abundância na presença da pobreza (Lc 18:18-25) e alimentou famintos. Obviamente, a igreja fundada por Seus seguidores aprendeu dEle a compaixão pelo pobre. Todos partilhavam mutuamente suas possessões (At 2:44, 45).
Busca da justiça. Apresentado a uma mulher acusada de atos que, pelas leis judaicas, requeriam a morte, Jesus confrontou a natureza do julgamento e dos acusadores: “Aquele que dentre vós estiver sem pecado seja o primeiro que lhe atire pedra” (Jo 8:7). Num ato, Jesus defendeu o indefensável, advogou justiça para todos e uniu redenção e justiça. Na ocasião em que expulsou do templo aqueles que faziam do lugar de oração um mercado, Cristo expressou interesse pelos direitos universais sem considerar poder ou posição.
Justiça e estruturas políticas
Se o pedido: “faça-se a Tua vontade, assim na Terra como no Céu” significa que a sociedade deve ser governada por leis teístas para estabelecimento de normas religiosas, isso não é aparente na vida e nos ensinamentos de Jesus. Ele buscou transformação aqui e agora. Defendeu crianças, promoveu saúde e cura para todos, promoveu igualdade, ajudou os pobres e praticou a justiça; defendeu todas as causas morais que refletiam justiça na sociedade, mas declinou do poder governamental para cumprir Seus objetivos. Jesus sabia da fraqueza inerente à humanidade; conhecia o abuso de poder que inevitavelmente acompanha as estruturas na sociedade humana, seja no âmbito político ou religioso.
Ambições corruptas. Jesus Cristo advertiu aqueles que deveríam formar a estrutura da igreja cristã primitiva contra suas próprias tentações relacionadas ao poder: “Sabeis que os governadores dos povos os dominam e que os maiorais exercem autoridade sobre eles. Não é assim entre vós; pelo contrário, quem quiser tornar-se grande entre vós, será esse o que vos sirva” (Mt 20:25, 26).
O próprio Cristo enfrentou essa tentação, quando os discípulos, raciocinando que os poderes manifestados por Ele, para curar doentes e alimentar famintos, deveriam ser ampliados no interesse nacional: “Sabendo, pois, Jesus que estavam para vir com o intuito de arrebatá-Lo para o proclamarem rei, retirou-Se novamente, sozinho, para o monte” (Jo 6:15).
Não é que Jesus nada tivesse a dizer sobre assuntos políticos ou evitasse atos públicos. Basta olhar o Sermão da Montanha para perceber Seu ativismo, posicionado por Mateus como o clímax de Seu ministério terrestre. Aquele sermão identifica Jesus para os leitores de Mateus. A genealogia, o nascimento, o anúncio de João Batista, as curas, tudo contribui para o crescimento da popularidade do Seu ministério. Cristo lançou um movimento acompanhado de grande interesse. “Percorria Jesus toda a Galileia, ensinando nas sinagogas, pregando o evangelho do reino e curando toda sorte de doenças e enfermidades entre o povo. E a Sua fama correu por toda a Síria; trouxeram-Lhe, então, todos os doentes, acometidos de várias enfermidades e tormentos: endemoninhados, lunáticos e paralíticos. E Ele os curou. E da Galileia, Decápolis, Jerusalém, Judeia e além do Jordão numerosas multidões O seguiam” (Mt 4:23-25).
Então, aconteceu o sermão. Com indomável coragem, Ele destruiu as ideias hierárquicas do império político dos romanos e das elites religiosas do mundo judaico. As pessoas verdadeiramente abençoadas não fazem parte da elite poderosa, mas da população comum, o pobre, humilde, perseguido e pacificador. Seu reino não é estabelecido de cima para baixo, mas a partir dos que são considerados de menor importância.
Com absoluta clareza, Jesus corrigiu a superficialidade das abordagens técnicas da letra da lei, e que ignoravam o espírito dela. Ele previu um mundo pluralístico no qual amamos não apenas nossos vizinhos e amigos; a pureza de coração é a medida da fidelidade, um mundo no qual damos em vez de emprestar em benefício próprio, onde o verdadeiro tesouro está no coração e onde nos abstemos de julgar. Sua ética mais clara é vista em consonância com Suas palavras: “Tudo quanto, pois, quereis que os homens vos façam, assim fazei-o vós também a eles; porque esta é a lei e os profetas” (Mt 7:12).
No meio de sermão, Ele inseriu as instruções sobre oração na qual incluiu a invocação: “Faça-se a Tua vontade, assim na Terra”. Não podemos ignorar isso. O Sermão da Montanha proclama Seu desejo pela criação de uma ordem justa na Terra.
Neste mundo em que a política e a religião imergem nas estruturas governamentais, Jesus orou por uma mudança de coração, rejeitou o poder político pessoal e demonstrou compaixão. Serviu desinteressadamente às pessoas; isto é, aliviou o sofrimento humano por nenhuma outra razão exceto porque era sofrimento de pessoas. Conhecendo a condição humana, sabiamente Ele Se absteve de atribuir às estruturas políticas qualquer responsabilidade pelo comportamento justo da sociedade.
Seguindo o exemplo
Como deveriamos nós, modernos seguidores de Cristo, manter a fé em um mundo político?
A primeira observação é nosso chamado para servir aos nossos semelhantes, independentemente da crença religiosa deles. Assuntos como educação, proteção e direitos infantis; cuidado pela saúde de toda pessoa; igualdade, alívio das condições de pobreza e garantia de justiça devem estar integrados à nossa mundivisão cristã, simplesmente porque somos seguidores de Cristo.
A segunda observação é o risco de designar qualquer responsabilidade às estruturas políticas por meio dos comportamentos enraizados em crenças religiosas. Muitos de nós temos percebido os perigos inerentes às sociedades teístas em que governo e religião se misturam e a população aplaude a coação governamental às instituições religiosas. Entretanto, regimes democráticos também estão sujeitos às preferências justas e injustas de suas maiorias religiosas. Quando pessoas recorrem à influência política para impingir pontos de vista religiosos em matéria de cultura, mesmo sem intenção, elas distorcem a mundivisão de Jesus e a natureza de Deus. Organizações políticas inevitavelmente se agarram a questões específicas de seu próprio interesse e conveniência, enquanto ignoram outras importantes questões.
Acaso, isso significaria que nossas estruturas políticas sempre ignoram, ou deveriam ignorar a visão de um mundo justo? Não. Educação, proteção e direitos das crianças, saúde para todos, igualdade, alívio da pobreza e garantia de justiça devem ser o interesse de nossa sociedade e suas instituições governamentais. À semelhança do que muitos fizeram no passado, os clérigos devem advogar e trabalhar em favor do bem público. Nossas instituições públicas são importantes e podem servir à humanidade. Mas esses interesses são necessariamente perseguidos em uma sociedade pluralística, sem preferências nem preconceitos.
Os cristãos, especialmente pastores, devem usar sua positiva influência na vida pública, agindo compassivamente e apoiando as questões que refletem a preocupação de Jesus com as pessoas. Busquemos a justiça na sociedade, como fizeram muitos antes de nós. Animemos as pessoas a exercer responsavelmente seus deveres cívicos. Sirvamos à comunidade, lembrando-nos de que Jesus nunca usou o poder político para forçar crenças religiosas. Submetamos nosso coração e mente ao controle de Cristo, não das instituições humanas. Em Seu nome, sirvamos ao nosso semelhante.