Encargo de pregar pode ser expresso de diversas formas. É a tarefa de alimentar o rebanho, de fortalecer e edificar os santos, de esclarecer e defender a fé, de propagar e estender o reino de Deus na Terra, ou alguma de muitas outras funções vitais e significativas. No entanto, ao mesmo tempo que abrange tôdas essas razões para pregar, a filosofia exarada na declaração de Paulo em II Coríntios 5:19, onde êle descreve sucintamente os seus trabalhos como o ministério da reconciliação, sobrepuja tudo isso.

Reconciliar significa restabelecer a harmonia; ajustar; restaurar a amizade. Portanto, Paulo considera o ministério como grandiosa tentativa da parte de homens especialmente escolhidos para essa tarefa, de pôr o homem novamente em harmonia, companheirismo e conformidade com a vontade e o favor de Deus. Com efeito, Wuest traduziu o versículo 19 da seguinte maneira: “Êle nos confiou a mensagem de restauração ao favor.” E a versão de Phillips declara: “Êle nos tornou agentes da reconciliação.” Ambos apóiam, portanto, a idéia de um embaixador procurando estabelecer compreensão e paz entre o govêrno que êle representa e o povo ao qual foi enviado. Utilizando êste ponto de vista ou filosofia a respeito da pregação, notemos os três indispensáveis apelos à razão que devem ser constantemente proclamados pelo agente ou pregador, para que seus trabalhos sejam ao mesmo tempo relevantes e eficazes.

A Necessidade

O primeiro apêlo é a necessidade de reconciliação. O pecado, como vaga impetuosa, não sòmente fêz separação entre o homem e o seu Deus, desprendendo-o do ancoradouro do amor divino, mas arrastou-o para longe do litoral da vida; e quanto mais o homem se afastar, maior será a sua degradação e devassidão, e mais densas as trevas que o cercam.

A incapacidade do homem para achar o caminho que o conduza de volta a Deus, completa o dilema. Êle não pode endireitar a si mesmo. Vê a lamentável situação em que se encontra. Contempla o seu paraíso perdido. Sente-se desamparado ao procurar escapar das fôrças convulsivas de uma natureza enfurecida, ao esforçar-se febrilmente para fortalecer a barragem de sua sociedade que se desintegra, ao lutar frenèticamente para conservar-se vivo, e, no entanto, percebe que é constantemente arrastado para a nulidade da sepultura insaciável. Todos os projetos de invenção humana não conseguiram alterar essa tendência. A humanidade, caída no lamaçal, não pode erguer-se a si mesma. Os pedidos de socorro requerem òbviamente um poder infinitamente superior às fôrças do próprio homem, vítima do pecado.

O Instrumento

Tal é a condição do homem. Tal é a sua profunda e permanente necessidade. E é sob o aspecto dessa necessidade que devemos apresentar o segundo passo de nosso apêlo na pregação — comunicando ao homem o divino instrumento de reconciliação. No versículo 18 de II Coríntios 5, Paulo diz que Deus “nos reconciliou consigo mesmo por meio de Cristo.” João menciona o seguinte a respeito dêsse instrumento de restauração:

“No princípio era o Verbo, e o Verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus. Êle estava no princípio com Deus. Tôdas as coisas foram feitas por intermédio dÊle, e sem Êle nada do que foi feito se fêz. A vida estava nÊle, e a vida era a luz dos homens.” “E o Verbo Se fêz carne, e habitou entre nós, cheio de graça e de verdade, e vimos a Sua glória, glória como do unigênito do Pai.” S. João 1:1-4 e 14.

Notai como êstes versículos nos apresentam diversos aspectos elucidativos acêrca de Cristo. Antes de mais nada, João Lhe confere a denominação de Verbo, ou “logos”, de Deus. O vocábulo “logos” denota completa identidade entremesclada, assim como as palavras de alguém são uma parte ou representação de sua própria pessoa. E para reforçar a idéia, João proclama a eternidade de Cristo — “no princípio;” Seu companheirismo — “estava com Deus;” e Sua natureza divina — Êle era Deus. E é nesta questão referente à natureza de Cristo que deparamos com o verdadeiro ponto crucial do mistério da piedade, pois o divino, preexistente e eterno Deus tornou-Se “carne, e habitou entre nós.” Jesus tinha de ser ao mesmo tempo inteiramente logos e inteiramente carne a fim de cumprir Sua missão. Tinha de ser tão humano como Adão, pois do contrário não poderia

ser um exemplo para a raça humana no tocante à obediência e o sofrimento. Tinha de ser logos, porque apenas Alguém que estivesse intimamente familiarizado com o Pai poderia vindicar o Seu caráter, revelar o Seu amor e satisfazer os reclamos da lei. O Legislador precisava morrer pelo transgressor da lei. Só então os mundos não caídos e os anjos compreenderíam isso. Só então Satanás e suas hostes seriam completamente desmascarados. Só então Deus seria justificado ao perdoar o homem e conceder-Lhe uma segunda oportunidade.

Os Resultados 

Tendo considerado assim a necessidade de reconciliação e o instrumento para efetuá-la, resta-nos mais um importante fator no desempenho dessa responsabilidade. É a consistente revelação dos resultados da reconciliação. A Versão Ampliada das Escrituras declara: “Êle veio ao mundo, e embora o mundo houvesse sido feito por Seu intermédio, o mundo não O reconheceu — não O conheceu. Veio para o que Lhe pertencia, para o que era Seu [domínio, criação, coisas, mundo], e os que eram Seus não O receberam e não O acolheram de bom grado. Mas a todos quantos O receberam O acolheram, deu-lhes a autoridade [poder, privilégio, direito] de se tornarem filhos de Deus, a saber; aos que crêem — se apegam, confiam — no Seu nome.” S. João 1:10-12 — The Amplified Bible.

A gloriosa obra da reconciliação consiste no fato de que todos os seguidores de Cristo que crêem e obedecem se tornam membros adotivos da família celestial e, por conseguinte, herdeiros e recipientes dos benefícios que pertencem normalmente a todos os filhos de Deus. Êsses benefícios são conferidos sob dois aspectos — tranqüilidade mental e segurança na vida presente e as alegrias da vida eterna, por ocasião da volta de Cristo. A reconciliação transforma a confusão em ordem, as trevas em luz, a frustração em paz e, acima de tudo, torna a morte apenas um sono do qual os justos despertarão para as belezas do Paraíso restaurado. E é isso que o homem precisa saber.

Tôda cultura e tôda era têm manufaturado barcos filosóficos em que o homem espera transpor as correntezas da morte. Nações e gerações têm surgido e desaparecido, deixando atrás de si um labirinto de folclores e mitos que procuram conjeturar acêrca do futuro. Primorosos sistemas têm sido elaborados por pensadores ilustres. Homens que fazem esplendorosas promessas com referência à vida futura têm ateado cruzadas e revoluções e inspirado multidões de pessoas. O cristianismo, porém — e unicamente o cristianismo — pode apontar para um sepulcro aberto e apresentar resolutamente um conceito consistente, lógico e confirmado, a respeito do futuro; consistente, porque tem resistido às devastações dos séculos; lógico, porque se harmoniza com o relato bíblico acêrca da criação, da queda e da redenção; e confirmado pelos ciclos de debilitamento e recuperação da Natureza, em suas estações, marés, vegetação e, princípalmente, pela morte e ressurreição de Cristo, como cumprimento das profecias da Palavra.

Um Caso de Reconciliação

Todo pregador devia ter à sua disposição um arsenal de experiências por meio das quais lhe seja possível ilustrar o processo de reconciliação. Uma de minhas ilustrações prediletas é a de dois jovens, que contraíram núpcias durante a crise financeira no final da década de 1920, mas que tiveram de separar-se pouco depois, devido a algum descuido legal da parte do jovem espôso. Oriundo de uma das ilhas britânicas nas Antilhas, êle obtivera permissão para passar certo tempo na América do Norte, sob as rigorosas condições de um passaporte de estudante, que êle infringiu. Quando lhe foi necessário trabalhar para sustentar sua espôsa e seu filhinho que nasceu durante o primeiro ano de matrimônio, êsse casal foi separado por lei, tendo vivido juntos menos de dois anos. Êle teve de voltar para a pequena ilha em que nascera e reiniciar os processos para ingressar outra vez na América do Norte.

O que se esperava fôsse apenas uma ausência temporária, transformou-se num verdadeiro pesadelo de frustração e pesar quando um dispositivo legal após o outro falhava por causa de uma estranha seqüência de circunstâncias políticas e diplomáticas. Os meses foram-se prolongando até converterem-se em anos, e depois de quase uma década, a grande quantidade de cartas que a princípio trocavam entre si chegou gradualmente ao fim.

Ambas as partes tentaram obter felicidade em casamentos posteriores, os quais, apesar de haverem falhado, pareciam indicar completa e

definitiva dissolução de seu enlace. Todavia, a esperança de reconciliação nunca desapareceu inteiramente do coração da espôsa e mãe, e com o auxílio de parentes na América do Norte, ela restabeleceu a correspondência com o homem ao qual não tinha visto agora durante mais de trinta anos. Depois então, com grande sacrifício, fêz uma viagem de milhares de quilômetros para visitar a ilha em que residia o seu ex-marido. Ali, nas praias arenosas dessa pequena ilha, essas duas pessoas ativaram as centelhas do amor que outrora haviam experimentado, e quando o navio que a trouxera voltou para os Estados Unidos, ela levou consigo a promessa de nova união e reconciliação.

Após diversos meses de providências legais e pessoais, o marido voltou de fato para os Estados Unidos, e efetuou-se a restauração dêsse matrimônio. Num dramático desfecho do que havia sido uma demorada experiência decepcionante, essas duas pessoas conseguiram reencetar e restabelecer sua felicidade, seu paraíso perdido. Conheço muito bem êste caso, pois essas duas pessoas são meus pais, e diviso em sua experiência uma expressiva figura da reconciliação da humanidade perdida, com o seu Criador.

A felicidade do homem com Deus foi interrompida no jardim do Éden, pela desobediência à lei, e a humanidade foi separada, afastada e alienada da comunhão com o Pai celestial. Após a queda decorreram séculos e mais séculos de decepção, tristeza e separação, para as quais não havia recurso legal. Todavia, em Sua compaixão e amor, Deus desejava resgatar-nos, e depois de quatro mil anos de pecado, Êle enviou o Seu Filho — Seu agente de reconciliação — para efetuar nossa restauração. “Deus estava pessoalmente em Cristo, reconciliando consigo o mundo.” II Cor. 5:19 — Versão Inglêsa de Phillips.

Declara Wuest: “Absoluta divindade operava no Filho. Quando veio a estas plagas, descobriu apenas um pálido reflexo da imagem das criaturas que formara 4.000 anos antes, mas inundou-nos de amor, e a todos quantos O receberam, deu-lhes o poder de serem resgatados ou de se tornarem filhos de Deus. Voltou agora para o Seu lar a fim de completar os processos legais, mas em breve ocorrerão as bodas do Cordeiro, a restauração final.”

Que Acontecerá?

Que acontecerá quando a pregação girar em tôrno da enunciação dêsses aspectos essenciais do ministério da reconciliação?

  • 1. Escaparemos da cilada de pregar opiniões em vez de boas novas. O Evangelho consiste em boas novas, mas só podemos apresentá-lo desta maneira quando ficamos deslumbrados com o conceito da esperança e do propósito referentes à restauração e reconciliação. Opiniões teológicas, opiniões religiosas e mesmo opiniões denominacionais não comovem nem impressionam os homens com a realidade de seus pecados, mas o Evangelho consegue fazer isto.
  • 2. Veremos nova vida em nossa pregação, e não apenas entusiasmo derivado da apresentação de alguma coisa vital. Isto também ocorrerá, mas veremos princípalmente um poder renovador — o incentivante e vinculador poder de Deus. Lemos em S. João 1:4 e 5: “A vida estava nÊle, e a vida era a luz dos homens. A luz resplandece nas trevas.”

As maravilhas da vida de Cristo eram chamadas kerugma pelos gregos e os judeus helenísticos de tempos antigos, e quando êles pregavam o kerugma, pretendiam estar pregando os poderosos atos de Deus em Cristo. Assim êles perpetuaram êsses eventos em seus efeitos, e assim, por meio dos agentes de reconciliação usados por Deus no tempo atual, essas obras continuam. Sim, a luz continua brilhando por nosso intermédio.

Êsse pensamento, de que a pregação pretende realizar freqüentemente as mesmas obras realizadas por Jesus, Gene Barlet denomina corretamente de “audácia da pregação.” Mas a ênfase aqui não é tanto um poder ou avivamento que aumente o número de membros da igreja, e, sim, que nos conceda melhores membros. Temos suficientes membros legalistas, farisaicos, arrogantes, presunçosos, que praticam a letra da lei mas estão destituídos do Espírito Santo — pessoas que colhem e petiscam as fôlhas da justiça, plenamente convictos de que terão um lugar no reino, mas que nunca viram ou aceitaram realmente a semelhança de Cristo e os elementos de disposição de ânimo e estado de espírito como suprema essência da religião; pessoas que não usam penas porque o ato de arrancá-las fere as aves, mas acabam comendo essas aves; pessoas cujos vestidos são compridos, mas cuja paciência é curta; pessoas que condenam o uso de alianças, mas promovem a formação de círculos ou rodas sociais e políticas em nossas igrejas.

As ridículas incoerências de legalismo constituem talvez hoje em dia o maior desafio para o ministro do Evangelho, e nossa única esperança de avivar entre o rebanho a verdadeira piedade racional, amorosa e abnegada reside na pregação do que muitas vêzes deixamos de pregar, e que no entanto deve ser o maior de todos os nossos esforços — o ministério evangélico da reconciliação.