Pergunta 36
Visto que os adventistas do sétimo dia se apegam grandemente aos princípios do conceito arminiano, e não do conceito calvinista, no tocante à vontade humana, de que maneira isso afeta vossa compreensão do juízo?
O Livre Arbítrio e o Juízo
OS pontos de vista divergentes, classificados como “Calvinismo” e “Arminianismo,” têm raízes que se estendem a tempos remotos na história da igreja — até a época de Agostinho. Através dos séculos subseqüentes os teólogos se agruparam de um lado ou do outro. Êsses conceitos teológicos entraram,* porém, em choque frontal na Holanda, nos primeiros anos do século XVII, quando Armínio atacou o ensino calvinista de decretos divinos envolvendo a vontade * humana.
I. Cinco Pontos da Predestinação Calvinista
Em 1537, na obra Instruction in Faith (Paulo T. Fuhrmann tr., 1949, pág. 36), João Calvino declarou:
“Ora, a semente da Palavra de Deus só se enraiza e produz fruto nas pessoas que o Senhor, por Sua eleição eterna, predestinou para serem filhos e herdeiros do reino celestial. Para todos os outros (que pelo mesmo conselho de Deus foram rejeitados antes da fundação do mundo) a clara e evidente pregação da verdade só pode ser um cheiro de morte para morte.”
João Calvino foi uma das mais brilhantes personalidades entre os reformadores do século XVI. Mas seu ensino a respeito da predestinação tornou-se objeto de acerba controvérsia em anos posteriores. Em 1610 foram apresentados aos Estados Gerais da Holanda os famosos cinco pontos essenciais na teologia calvinista. Êstes foram declarados ofensivos, alegando alguns nesse tempo haver encontrado no Catecismo Calvinista e na Confissão Belga certos pontos que pareciam ser uma teologia relativamente nova. Foram expostos da seguinte maneira:
- 1. Que Deus (como alguns asseveraram), por um decreto eterno e irrevogável, ordenou alguns dentre os homens (a quem Êle não considerava criados; muito menos caídos) para a vida eterna; e alguns (que eram por grande diferença a maior parte) para a perdição eterna, sem qualquer consideração a sua obediência ou desobediência, a fim de manifestar tanto a Sua justiça como a Sua misericórdia; de tal modo que as pessoas por Êle destinadas à salvação devem forçosa e inevitàvelmente ser salvas, e as demais devem forçosa e inevitàvelmente ser condenadas.
- 2. Que Deus (como outros ensinaram) considerou a humanidade não só como criada, mas também como caída em Adão, e, conseqüentemente, sujeita à maldição; tendo Êle determinado livrar alguns dessa queda e destruição e salvá-los como exemplos de Sua misericórdia; e deixar outros, até mesmo filhos do concêrto, sob a maldição, como exemplos de Sua justiça, sem qualquer consideração a crença ou descrença. Com essa finalidade, Deus usou também certos meios pelos quais os eleitos fossem necessàriamente salvos e os réprobos fôssem necessàriamente condenados.
- 3. Que, por conseguinte, Jesus Cristo, o Salvador do mundo, não morreu por todos os homens, mas sòmente pelos que foram eleitos de acôrdo com a primeira ou a segunda forma.
- 4. Que, portanto, o Espírito de Deus e Cristo atuaram nos eleitos com fôrça irresistível a fim de compeli-los à crença e à salvação, mas que aos réprobos não foi dada necessária e suficiente graça.
- 5. “Que aquêles que uma vez obtiveram verdadeira fé jamais poderiam perdê-la por completo ou terminantemente.” — A. W. Harrison, The Beginnings of Arminianism (l926), págs. 149 e 150.
Êsse ponto de vista, porém, não se originou com Calvino. Mil anos antes, de acôrdo com G. F. Wiggers, Agostinho expressou a mesma idéia:
“Agostinho introduziu no sistema eclesiástico diversas idéias inteiramente novas. . . . Entre elas encontravam-se a graça irresistível, absoluta predestinação e a limitação aos eleitos da redenção por meio de Cristo.” — An Historical Presentation of Augustinism and Pelagianism, pág. 368.
II. Refutação Elaborada Pelo Arminianismo
Em oposição a êsses pontos de vista, Armínio e seus colaboradores elaboraram uma refutação que apresentava cinco argumentos contrários. Mais tarde êles se tornaram o epítome do que se conhecia por arminianismo. Eram os seguintes:
1. Que Deus, por meio de um decreto eterno e imutável em Cristo, antes de existir o mundo, determinou eleger para a vida eterna dentre a caída e pecaminosa raça humana os que por intermédio de Sua graça crêem em Jesus Cristo e perseveram na fé e na obediência; e, pelo contrário, resolveu rejeitar os impenitentes e descrentes, para condenação eterna (S. João 3:36).
- 2. Que, em conseqüência disto, Cristo, o Salvador do mundo, morreu por todos os homens, de modo que obteve, pela morte na cruz, reconciliação e perdão do pecado para todos os homens; de tal forma, porém, que só os fiéis a desfrutaram em realidade (S. João 3:16; I S. João 2:2).
- 3. Que o homem não podia obter fé salvadora por si mesmo ou em virtude de seu próprio livre arbítrio, mas precisava da graça de Deus por meio de Cristo para renovar-se em pensamento e vontade (S. João 15:5).
- 4. Que essa graça constituiu a causa do início, do desenvolvimento e da conclusão da salvação do homem; de maneira que ninguém poderia crer ou perseverar na fé sem essa graça cooperante, e, conseqüentemente, que tôdas as boas obras devem ser atribuídas à graça de Deus em Cristo. Todavia, quanto à sua maneira de operar, essa graça não é irresistível (Atos 7:51).
- 5. Que os verdadeiros crentes possuíam suficiente poder, mediante a graça divina, para batalhar contra Satanás, o pecado, o mundo, sua própria carne, e alcançar a vitória sobre eles; mas, para que pela negligência não apostatassem da verdadeira fé, perdessem a felicidade de uma boa consciência e fossem privados dessa graça, deveriam investigá-la mais cabalmente em conformidade com a Escritura Sagrada, antes de começar a ensiná-la.” — Harrison, op. cit., págs. 150 e 151.
Essa controvérsia, que foi ativada por Armínio em 1603, atingiu o ponto culminante no Sínodo de Dort, em 1618 e 1619, e teve amplas conseqüências. Os seus efeitos se fizeram sentir não sòmente na igreja holandeza, mas as divisões alemã, suíça, escocesa, inglêsa e francesa, da igreja cristã, também participaram dessa controvérsia ou se dividiram por sua causa. Desde então, o arminianismo se tornou o têrmo usado para exprimir conceitos teológicos contrários ao calvinismo. Entretanto, os seguidores de Armínio foram mais além em suas declarações do que o seu próprio mestre. Com efeito, êle ficaria surprêso e até indignado se pudesse ler as interpretações teológicas de alguns que têm sido classificados como arminianos. E o mesmo se pode dizer no tocante aos adeptos de Calvino. Parece até que o calvinismo atual sofreu maiores modificações que o arminianismo.
A Igreja Adventista do Sétimo Dia não é calvinista nem totalmente arminiana em sua teologia. Reconhecendo os méritos de ambos êsses sistemas, procuramos assimilar o que nos parece ser o claro ensino da Palavra de Deus. Embora creiamos que João Calvino foi um dos maiores reformadores protestantes, não adotamos a idéia de que algumas pessoas “são predestinadas para a morte eterna sem qualquer demérito de sua parte, simplesmente por causa da soberana vontade de Deus” (Calvino, Institutes, Livro 3, Cap. 23, Parág. 2). Ou que os homens “não são todos criados com o mesmo destino; mas a vida eterna é preordenada para alguns, e, para outros, a condenação eterna” (Idem, Livro 3, Cap. 21, Parág. 5).
Pelo contrário, cremos que a salvação é acessível a todo e qualquer membro da raça humana, pois “Deus amou o mundo de tal maneira que de o Seu Filho unigênito, para que todo o que nÊle crê não pereça, mas tenha a vida eterna” (S. João 3:16). Exultamos com o apóstolo Paulo porque “antes da fundação do mundo” (Efés. 1:4) Deus resolveu suprir a necessidade do homem, se êle pecasse. Êsse “eterno propósito” abrangia a encarnação de Deus em Cristo, a vida sem pecado e a morte expiatória de Cristo, Sua ressurreição dentre os mortos e o Seu ministério sacerdotal no Céu, o qual culminará nos grandiosos aspectos do julgamento.
Cremos que nosso ensino a respeito do assunto do julgamento está inteiramente de acôrdo com a Bíblia e é a conclusão lógica e inevitável de nosso conceito acêrca do livre arbítrio. Temos a convicção de que, como indivíduos, cada um de nós é responsável perante Deus. Declara o apóstolo Paulo: ‘Todos compareceremos perante o tribunal de Deus. Como está escrito: Por Minha vida, diz o Senhor, diante de Mim se dobrará todo joelho, e tôda língua dará louvores a Deus. Assim, pois, cada um de nós dará contas de si mesmo a Deus.” Rom. 14: 10-12.
III. Perdição da Raça Humana por Causa do Pecado de Adão
O pecado de Adão envolveu tôda a raça humana. “Por um só homem entrou o pecado no mundo, e pelo pecado a morte,” afirma o apóstolo Paulo (Rom. 5:12). A expressão “pelo pecado” mostra claramente que êle se refere, não a pecados individuais no tempo presente, mas à natureza pecaminosa que todos herdamos de Adão. “Em Adão todos morrem” (I Cor. 15:22). Por causa do pecado de Adão, “a morte passou a todos os homens” (Rom. 5:12).
Foi para suprir a necessidade do homem e salvar a raça humana da morte eterna, que o Verbo Eterno Se encarnou. Cristo viveu como homem entre os homens, e depois morreu em lugar do homem. A morte substituinte de nosso Senhor constituiu o âmago do Evangelho. Quando O aceitamos pela fé, Sua morte torna-se a nossa morte — “Um morreu por todos, logo todos morreram.” II Cor. 5:14. As Escrituras revelam que o efeito da ilimitada graça divina é tão amplo quanto o efeito do pecado de Adão.
Diz a Escritura Sagrada: “Assim como por uma só ofensa veio o juízo sôbre todos os homens para condenação, assim também por um só ato de justiça [de Jesus Cristo] veio a graça sôbre todos os homens para a justificação que dá vida.” Rom. 5:18. Porém, se quisermos “reinar em vida” (V. 17), devemos aceitar êsse “dom da justiça.” E o apóstolo João cita as seguintes palavras do Senhor: “Quem quiser receba de graça a água da vida.” Apoc. 22:17. A única maneira de recebermos essa vida consiste cm recebermos o Autor da vida. “E o testemunho é êste, que Deus nos deu a vida eterna; e esta vida está no Seu Filho. Aquêle que tem o Filho tem a vida; aquêle que não tem o Filho de Deus não tem a vida.” I S. João 5:11 e 12. Êsse dom da vida, cremos nós, é acessível a todos, porém, unicamente se apoderam — os que aceitam a provisão divina — têm a vida eterna.
Da parte de Adão, todos herdamos uma natureza pecaminosa. Somos todos “por natureza filhos da ira” (Efés. 2:3). Quer sejamos judeus ou gentios, todos estamos “debaixo do pecado.” “Não há quem busque a Deus;. . . não há quem faça o bem, não há nem um ser sequer.” Rom. 3:9, 11 e 12. Por conseguinte, todos são “culpáveis perante Deus” (V. 19). No entanto, se os homens aceitarem o gratuito e divino dom da justiça, não importa quão longe se tenham afastado de Deus ou quão profundamente se tenham atascado no pecado, podem ainda ser justificados, pois a justiça de Cristo, se fôr aceita, lhes é imputada. É isso que constitui a incomparável graça de Deus.
Falando da justificação que obtemos em Cristo, Paulo declara, em primeiro lugar, que somos “justificados gratuitamente, por Sua graça” (Rom. 3:24), pois a graça é a fonte. A seguir, êle diz que somos justificados “mediante a fé” (Rom. 5:1), pois a fé é o método. Depois então, êle sintetiza tudo afirmando que somos “justificados pelo Seu sangue” (V. 9), pois o sangue é o meio. Tiago acrescenta outra qualidade, declarando que “uma pessoa é justificada por obras, e não por fé sòmente” (S. Tia. 2:24). As obras, no entanto, são a evidência, não o meio de justificação. Todos êsses fatôres essenciais combinados atuam na vida do crente, e quem quiser pode desfrutar esta gloriosa experiência. — Questions on Doctrine, págs. 402-408.