Dois lugares que são o centro da vida porque o Senhor está presente em ambos. São também lugares onde Deus e o homem podem estar juntos em amizade

Gênesis 2:4 a 3:24 contém terminologia e conceitos associados no Antigo Testamento com a teologia do santuário. Isso tem levado alguns a sugerir que o jardim do Éden “era um tipo do santuário original”.1 Embora o Éden não fosse um santuário no sentido em que o tabernáculo era, nós encontramos na narrativa do jardim os primórdios da teologia do santuário. Neste artigo, vamos resumir importantes estudos teológicos e exegéticos sobre o assunto, realizados por teólogos não adventistas, e explorar como sua percepção pode contribuir para uma melhor compreensão da doutrina do santuário.

Paralelos

Localização oriental. O jardim estava localizado na parte oriental do Eden (Gên. 2:8) e, aparentemente, sua entrada também olhava para o oriente (Gên. 3:24).2 A entrada do santuário israelita também estava no lado oriental (Êxo. 27:13-16; 38:13-18)3 Em um sentido, o portão do jardim funcionava mais como uma saída do que uma entrada, enquan-to o portão do santuário era uma entra-da, um retomo do oriente.

Torrentes de água. O Éden era uma fonte abundante de água (Gên. 2:10). A água era usada no santuário para limpeza e purificação do sacerdote. Havia um lavatório próximo à entrada do santuário (Êxo. 38:8).

Um curso de água é algumas vezes associado com o templo israelita (Sal. 46:4). Em Salmo 36:8-10, o santuário é descrito como “um lugar de refúgio das dificuldades da vida. … Note que a palavra traduzida como ‘delícias’ (cadnêk.) é simplesmente o plural de Éden. … Aqui, as ‘torrentes das Tuas [Deus] delícias’ são identificadas com o ‘manancial da vida”’.4 A água toma-se um símbolo da vida e das bênçãos de Deus. Ezequiel toma essa imagem e a associa com o templo escatológico de Deus (Ezeq. 47:1-12; Joel 3:18; Zac. 14:8).

Árvore da vida (Gên. 2:9; 3:24). É geralmente entendido que a árvore da vida estava representada no interior do santuário pelo castiçal de ouro. Tinha sete ramos e as copas sobre cada ramo tinham a forma de flores de amêndoa decoradas com brotos e flores (Êxo. 25:31-36). “A presença de termos botânicos e a forma básica da vara com seis ramos, dá a impressão de um objeto com formato de árvore.”5 Se essa visão é correta, então, o jardim e o santuário eram lugares onde a fonte da vida estava localizada.

Ouro e pedras preciosas. A narrativa do Éden menciona ouro e pedras preciosas (2:12). A mobília do tabernáculo estava coberta com ouro e uma das vestimentas do sacerdote era decorada com pedras preciosas (Êxo. 25:13, 18, 24 e 7). Alguns encontram aqui elementos comuns partilhados com o jardim e o santuário. O termo ônix é usado em Gênesis e no contexto do santuário (Êxo. 27:7; 28:9-12). A associação terminológica é válida e apóia a visão de que o jardim e o santuário partilham alguns conceitos fundamentais.

Querubim. Os querubins são mencionados primeiro em Gênesis 3:24. A figura do querubim era usada para decorar cortinas no interior do tabernáculo (Êxo. 26:1 e 31) e dois deles eram parte da arca do concerto (Êxo. 25:17-22). Eles estavam ali, como no Éden, como servos de Deus. O querubim colocado na entrada do jardim lembrava as pessoas de que Deus ainda lhes era acessível.

Guardas na entrada. A função do querubim era “guardar [shamar] o caminho da árvore da vida” (Gên. 3:24); isto é, eles estavam protegendo a santidade do jardim e o acesso ao símbolo da vida. Os levitas foram colocados ao redor do santuário para “cuidar [shamor] do tabernáculo do testemunho (Núm. 1:53). Eles eram responsáveis pela proteção do tabernáculo contra qualquer pessoa que tentasse invadir o lugar sagrado.6

trabalho de Adão. Os seres humanos foram colocados para “cultivar” [cabat] e “guardar” [shamur] o jardim (Gên. 2:15). Esses verbos são usados juntos novamente em Números 3:7 e 8; 8:26; 18:5 e 6, para descrever os deveres dos levitas em trabalhar, ministrar e guardar o santuário.7 Adão realizou no jardim do Eden uma tarefa que posteriormente foi designada aos levitas.

As vestes de Adão e Eva. Depois da queda, Deus providenciou para Adão e Eva uma veste de pele de animais (Gên. 3:21). Nos serviços do santuário, a pele de animais, o couro, era dada aos sacerdotes oficiantes (Lev. 7:8).

Dois outros termos usados na história do jardim são encontrados no contexto do tabernáculo. O verbo shakan, “habitar”, é usado em Gên. 3:24 e Êxo. 25:8 (Deus habitou [shakan] entre os israelitas).8 Gênesis 3:8 descreve o Senhor como caminhando (hithallek — caminhando de um lado para outro; do verbo halak – caminhar) no jardim. O mesmo verbo é usado em Levítico 26:12 e Deuteronômio 23:14 para descrever a presença divina no santuário. “O Senhor caminhou no Éden e, subseqüentemente, caminhou no tabernáculo.”9

Ligações teológicas

Encontro entre Deus e o homem. De uma perspectiva teológica, o jardim do Éden era onde Deus e os seres humanos se encontravam num relacionamento harmonioso. O jardim não era a habitação de Deus,10 mas um lugar criado por Deus para o homem, no qual ele deveria habitar (Gên. 2:8 e 15).

Nós encontramos idéias similares no estabelecimento do santuário israelita. O santuário era onde Deus e os humanos se reuniam. Mas quando examinamos as similaridades entre o jardim e o santuário como lugares de encontro, os paralelos com o jardim não são exatos. O jardim foi criado por Deus. O homem habitava nele. Deus o visitava e havia perfeita harmonia entre eles. O tabernáculo foi construído por seres humanos. Deus habitava ali. Os homens iam encontrar-se com Deus, e o propósito da visita era restaurar ou preservar o relacionamento entre Deus e os homens.

A razão das diferenças é que o jardim pinta o relacionamento entre Deus e o homem num contexto livre de pecado e morte. O tabernáculo apresenta o mesmo relacionamento no contexto de pecado e morte. Agora Deus era quem habitava com o homem porque o homem rejeitou habitar no lugar que Deus criou para ele.

Os seres humanos são descritos como retomando do oriente. O oriente na Bíblia poderia ser um símbolo de bem ou mal.11 É o lugar de escravidão, opressão (Ezeq. 25:4) e idolatria (8:16). A volta do oriente era símbolo de submissão a Deus. De onde quer que os israelitas viessem para o santuário, eles estavam retomando à experiência original de harmonia e unidade entre Deus e o homem, que prevalecia no Éden. Era, dessa forma, um ato de redenção, uma recriação.

Atividade judiciária de Deus. No Éden, Deus funcionou como juiz. Eruditos têm encontrado em Gên. 3:11-20 “um julga-mento”,12 um processo legal,15 uma cena de julgamento.14 Nessa cena Deus age como um promotor15 investigando o crime cometido pelo casal. A história “segue passo a passo o procedimento de uma ação legal”.16 Há uma descoberta (8-10), um interrogatório e defesa (11-13) e então uma sentença (14-19).

Deus faz perguntas, investigando a natureza e a razão para o crime cometido. Temos nessa história um juízo investigativo no qual Deus está buscando e analisando evidências. A questão óbvia é se Deus já sabia do crime e, se sabia, então por que foi necessária a investigação.

Umberto Cassuto, um comentarista judeu, levantou essas questões e sugeriu que “desde que a subseqüente narrativa descreve Deus como onipotente, isso levanta o raciocínio que Ele não é pintado aqui como alguém que não sabia o que acontecia ao Seu redor”. Ele acrescenta que “o Juiz de toda a Terra chama homens para requerer deles conta sobre sua conduta”.17 De acordo com outros eruditos, o propósito das perguntas era (1) estabelecer os fatos e “tornar claro ao homem e à mulher o que eles tinham feito”,18 (2) permitir que “o próprio homem compreendesse seu crime”,19 e (3) levar o réu a “confessar sua culpa”.20

Esse é o primeiro julgamento relatado nas Escrituras e inclui uma investigação seguida por uma sentença e sua execução. Durante a investigação, Adão e Eva foram questionados pelo Senhor, mas surpreendentemente a serpente não é questionada. É que o inimigo não é julgado da mesma forma como o casal está sendo julgado. Ele é simplesmente condenado. A sentença é pronunciada contra ele.

No santuário israelita Deus funcionou como Juiz de Seu povo e do mundo. De acordo com Deuteronômio 17:8-13, a “suprema corte” de Israel reunia-se no tabernáculo e era constituída de sacerdotes e um juiz. Deus lhes confiou autoridade judiciária.

Plano da redenção

Deus revelou-Se no jardim não apenas como Juiz, mas também como Redentor. A morte de Adão e Eva deveria ter ocorrido imediatamente (Gên. 2:17).21 A penalidade da morte não foi esgotada quando Deus disse a Adão: “porque tu és pó e ao pó tomarás” (Gên 3:19). Essa morte indubitavelmente pertence à penalidade do pecado; mas 

Gênesis 2:17 descreve alguma coisa além. A divina advertência não era: “naquele dia te tomarás mortal”, mas “certamente morrerás”. Mas não foi isso o que aconteceu. Sua vida foi estendida porque a graça de Deus prevaleceu.22

Essa expressão de graça é sumarizada em Gênesis 3:15 que oferece a segurança de uma nova vida. O fato de que a serpente está ali como um símbolo do mal e que sua cabeça será esmagada pelo descendente da mulher sugere que haverá uma vitória final sobre o mal e a morte. Para a comunidade cristã essa vitória toma-se uma realidade em Cristo Jesus (Rom. 16:20; Heb. 2:14; Apoc. 12). A morte de Adão e Eva não aconteceu no Eden porque Cristo é o “cordeiro que foi morto desde a fundação do mundo” (Apoc. 13:8).

Gênesis 3:21 poderia também estar apontando, como ilustração, a esta promessa de salvação: “Fez o Senhor Deus vestimenta de peles para Adão e sua mulher e os vestiu.” Nudez e vestimenta são temas importantes nas narrativas da criação e da queda. Antes da queda, a nudez era uma condição natural de Adão e Eva (Gên. 2:21). Eles estavam livres para se aproximarem de Deus, interagir um com o outro e repousar da criação sem ter que usar roupas. Depois da queda, a nudez tomou-se anormal, aparecendo como um símbolo da alienação de Deus. Os seres criados já não podiam se aproximar de Deus como foram criados, porque sua natureza foi alterada através da rebelião. Uma metamorfose foi requerida, e isso foi simbolizado pelo ato de vesti-los.

Deus rejeitou a solução de Adão e Eva para a sua nudez, isto é, roupas de folhas, e os vestiu com peles de animais. Deus tomou possível a reaproximação (Êxo. 28:42 e 43). Vestir alguém sinaliza na Bíblia a concessão de um novo status (Gên. 41:42; Êxo. 28:40 e 41; Lev. 8:7 e 13; Núm. 20:26).23

O ato de investidura ergueu Adão e Eva de um estado de alienação para o de pessoas que interagem com Deus. Ele estava restaurando neles algo da dignidade perdida.24 Obviamente a interação não é como antes, mas aponta a um tempo futuro quando ela será completamente restaurada.

Ao dizer que Adão e Eva foram vestidos com peles de animais, o texto implicitamente estabelece que pelo menos um animal foi morto. O fato de que isso não seja claramente posto, não diminui seu significado. A narrativa bíblica parece estar “antecipando a noção de sacrifício na morte de animais”.25

Quando colocamos Gênesis 3:21 em seu contexto teológico a morte implícita de animais toma-se assim um ato sacrificial. Primeiro, Adão e Eva deveriam experimentar a última morte (Gên. 2:17). Surpreendentemente, sua vida foi preservada. Mas é precisamente nesse contexto de ameaça à vida que a morte de um animal tem lugar. A penalidade da morte não é executada sobre eles, mas sobre um animal.

Em segundo lugar, a morte do animal não é um detalhe acidental na narrativa; provê o que Adão e Eva necessitavam para restaurar seu relacionamento com o Senhor. Além da morte haveria esperança para eles.

Finalmente, o fato de que Deus fez roupas e os vestiu sugere que o Senhor fez por eles o que eles não podiam fazer por si mesmos. Ele graciosamente os habilitou a se aproximarem dEle. Esses conceitos pertencem à teologia do santuário e seus serviços no Antigo Testamento. Na verdade, o que é embrionário ou está escondido em Gênesis 3 torna-se um corpo completo de idéias teológicas no sistema sacrificial israelita.

Sumário

A narrativa do Éden provê alguns dos mais importantes elementos de uma teologia do santuário e seus serviços no sistema de culto israelita. As ligações lingüísticas bem como o uso de imagens similares apontam a clara conexão entre as duas coisas. Essa conexão é ainda mais forte no âmbito teológico.

O jardim do Éden e o santuário são o centro da vida porque o Senhor está presente nos dois. Eles são lugares onde Deus e o homem podem estar juntos em amizade. Nos dois lugares Deus julga o pecado do Seu povo e lhe promete redenção. Na realidade, o Senhor prefigura a natureza dessa salvação providenciando-a simbolicamente através da morte sacrificial de uma vítima. O santuário israelita parece ter apontado para a original harmonia entre Deus e os seres humanos, bem como para sua restauração futura.                     

Referências:

  • 1 Gordon J. Wenham, “Sanctuary Symbolism in the Garden of Eden”, Proceedings of the World Congress of Je-wish Studies (1981), pág. 9.
  • 2 Umberto Cassuto, A Commentary on the Book of Genesis: Genesis 1-6 (Jerusalém: Magnes Press, 1961), pág. 174.
  • 3 David Chilton, Paradise Restored: A Biblical Theology of Do-minion (Tyler, Texas: Reconstruction Press, 1985), pág. 29.
  • 4 Levenson, Sinai & Zion: An Entry into the Jewish Bible (Minneapolis: Winston Press, 1985), pág. 132.
  • 5 Carol Meyers, “Lampstand”, in Anchor Bible Dictionary, vol. 4, David Noel Freedman, ed. (Nova York: Doubleday, 1992), pág. 142.
  • 6 Victor P. Hamilton, The Book of Genesis Chapters 1-17 (Grand Rapids: Eerdmans, 1990), pág. 210.
  • 7 Gordon J. Wenham, Op. Cit., pág. 21.
  • 8 Idem, Genesis, pág. 86.
  • 9 Idem, Sanctuary Simbolism, pág. 20.
  • 10 Howard N. Wallace, Eden Narrarive, págs. 70-85.
  • 11 Leland Ryken, James C. Wihot e Tremper Longman, eds., in Dictionary of Biblical Imagery (Downers Grove, III: InterVarsity, 1998), págs. 225 e 226.
  • 12 Gerhard Von Rad, Genesis (Philaldephia: Westmins-ter, 1972), pág. 91.
  • 13 Claus Westermann, Genesis 1-11: A Commentary (Minneapolis: Augsburgh, 1984), pág. 253.
  • 14 John H. Sailhamer, Genesis in The Expositors’s Bible Commentary, vol. 2 (Grand Rapids: Zondervan, 1990), pág. 52.
  • 15 Victor P. Hamilton, Op. Cit., pág. 194.
  • 16 Claus Westermann, Op. Cit., pág. 252.
  • 17 Umberto Cassuto, Op. Cit., pág. 155.
  • 18 Claus Westermann, Op. Cit., págs. 254 e 255.
  • 19 Victor P. Hamilton, Op. Cit., pág. 194-
  • 20 Gordon J. Wenham, Genesis 1-5, pág. 77
  • 21 Idem, pág. 68.
  • 22 Gerhard Von Rad, Op. Cit., pág. 95.
  • 23 Robert Oden, The Bible Without Theology: The Theological Tradicion and Antematives to It (San Francisco: Harper and Row, 1987), págs. 100 e 101.
  • 24 J. Gamberoni, “Labesh” in Theological Dictionary of the Old Testament, vol. 7 (Grand Rapids: Eerdmans, 1995), págs. 462 e 35.
  • 25 John Sailhamer, Op. Cit., pág. 58.