ARACELY MELLO
PROFECIA do “contínuo” acha-se inserida nas profecias do livro de Daniel. Antes de mais nada, diga-se aqui que a profecia do “contínuo” tem dado, infelizmente, lugar a controvérsias em nosso meio. Duas correntes há em choque em sua apreciação. Uma delas opina que o “contínuo” representa a mediação de Cristo, substituída pelo falso sistema de mediação do culto católico. A outra, porém, opina que o “contínuo” representa o paganismo, opositor do papado em ascensão.
Na apreciação desta profecia, como de qualquer outra da Palavra inspirada, não têm valor os argumentos humanos sem base na revelação. Por isso, nosso modo de ver o “contínuo,” deve estar fundamentado na inspiração, isto é, na Palavra de Deus e no Espírito de profecia. Notemos, em primeiro lugar, o que diz no caso a irmã White:
“Vi então com relação ao ‘contínuo’ (Dan. 8: 12) que a palavra ‘sacrifício’ foi suprida pela sabedoria do homem, e não pertence ao texto, e que o Senhor deu o correto ponto de vista sôbre êle àqueles que deram o clamor da hora do juízo. Quando havia união, antes de 1844, todos estavam estreitamente unidos na interpretação correta do ‘contínuo’; porém na confusão desde 1844, outros pontos de vista foram abraçados, e trevas e cunfusão têm-se seguido.” — (Early Writings, 74 e 75.)
Três pontos importantes deparamos neste passo do Espírito de profecia. O primeiro, é sermos advertidos de que o “contínuo” não se refere a nenhum sacrifício expiatório, visto que a idéia de sacrifício é evidentemente negada, e não passa de conjetura da “sabedoria do homem.”
Em segundo lugar nos é dito que “o Senhor deu a interpretação correta” da profecia “àqueles que deram o clamor da hora do juízo.” Em terceiro lugar, os errôneos pontos de vista sôbre o “contínuo” surgiram depois da “confusão” ou desapontamento de 1844.
Ora, antes de mais nada, devemos saber qual “o correto ponto de vista” sôbre o “contínuo”, dado pelo Senhor “àqueles que deram o clamor da hora do juízo.” Recorrendo aos anais daqueles anos que precederam a “confusão” de 1844, é que descobriremos o ponto de vista do Senhor sôbre o “contínuo”, explanado por aquêles baluartes da hora do juízo.
Primeiramente vejamos o que pregou Guilherme Miller sôbre o “contínuo”. Anunciou êle:
“Li a respeito. . . e não pude achar nenhum outro caso em que êle (o contínuo) fôsse encontrado, senão em Daniel. Tomei então estas palavras que se acham em conexão com êle: (take away) ‘tirar’. Êle tirará o contínuo, ‘desde que o contínuo fôr tirado’, etc. Li a respeito e pensei que eu não acharia nenhum esclarecimento sôbre o texto. Finalmente tornei a II Tess. 2:7 e 8. ‘Porque já o mistério da injustiça opera: sòmente há um que agora resiste até que do meio seja tirado; e então será revelado o iníquo’, etc. E quando tornei àquele texto, oh! quão clara e resplendente a verdade apareceu! Ali está! Êsse é ‘o contínuo’! Assim, o que Paulo pretende dizer por ‘um que agora resiste’, ou impede — por ‘o homem do pecado’, e ‘o iníquo’, é o papado. Mas, quem é que impede o papado de ser revelado? Neste caso é o paganismo; pois bem, então ‘o contínuo’ deve referir-se ao paganismo”. — Signs of the Times, 16 de novembro de 1842.
Em segundo lugar, temos Uriah Smith, que foi também um dos que pregavam a mensagem da hora do juízo e aguardavam a segunda vinda de Cristo em 1844. Sua opinião sôbre o “contínuo”, não nos é estranha. Em seu comentário sôbre as profecias de Daniel, expressa êle a mesma opinião de Guilherme Miller, isto é, que o “contínuo” era o paganismo, principal oponente do papado, bem como do povo de Deus nos antigos tempos.
Possivelmente deve ter havido muitos outros, dentre os que levantaram o clamor da hora do juízo, aos quais “o Senhor deu o correto ponto de vista sôbre” o “contínuo”. Porém Guilherme Miller e Uriah Smith, citados, são suficientes testemunhos comprobatórios de que o Senhor, como salienta o Espírito de profecia, lhes ensinara que o “contínuo” é o paganismo.
O Vocábulo “Tamid”
O vocábulo hebraico “tamid”, donde a tradução “contínuo”, encontra-se 102 vêzes no Velho Testamento, e, em todos os casos a que diz respeito, dá a idéia de continuidade, muitas vêzes com limitação de tempo.
O têrmo é empregado no que respeita a certos fatôres do ritual do santuário; para expressar relações de Deus com o homem e dêste com Êle, bem como daquele para com o seu semelhante. A palavra é ainda usada na indicação de muitos pormenores relativos à vida material humana. Assim vemos que o têrmo “tamid” pode ser usado não só para determinar algo ligado ao culto divino, como também com relação à atuação particular de Deus e do homem.
Um Obstáculo ao Papado
A profecia do “contínuo” está ligada à história da ascensão temporal do papado.
Os textos de Daniel (8:11-13; 11:31; 12:11) expressam enfàticamente que a ponta pequena — Roma-papal — tiraria o “contínuo”. Êstes textos não deixam lugar para dúvida de que o “contínuo” constituiu o principal obstáculo à carreira temporal do papado, e que êste não poderia galgar a seu contento a supremacia político-religiosa-temporal na Europa Medieval, sem que o extirpasse.
Vemos, portanto, que o “contínuo” constituiu um poder civil que, por seus princípios religiosos, não permitia ao papado prosseguir em seu despotismo espiritual-temporal. Pois, se o opositor do papado fôsse um poder sem base religiosa, não haveria razão para opor-se ao papado que, por seu turno, não veria nêle motivos para extirpá-lo e sim para catequisá-lo. Em virtude, porém, de sua manifesta oposição à “ponta pequena” — Roma-papal — esta se vira na contingência de destruí-lo.
Como Foi Tirado o “Contínuo”
Sôbre isto não fomos deixados na ignorância pela inspiração. Uma versão reza, no que respeita ao versículo doze de Daniel oito, o seguinte: “Foi-lhe dado (ao papado) poder contra o sacrifício perpétuo”. (Figueiredo). Outras versões dizem: “E um exército será dado (ao papado) contra o sacrifício perpétuo”. (Trinitária e Inglêsa). E, quem deu o poder e proveu um exército ao papado, contra o “contínuo”, também nos esclarece a revelação.
Em Daniel 11:31, lemos: “E sairão a êle uns braços, que profanarão o santuário e a fortaleza, e tirarão o contínuo sacrifício, estabelecendo a abominação desoladora”. Outra tradução diz: “Estarão da sua parte (ao lado do papado) os braços de homens poderosos que. . . farão cessar o sacrifício contínuo.” (Figueiredo).
Quão evidente é a profecia! Homens de projeção política apoiariam o papado e limpariam seu caminho, especialmente removendo, às suas instâncias, o poderoso “contínuo” — o paganismo imperante.
Estas positivas declarações da profecia estabelecem, na verdade, que o “contínuo” está longe de ser, como pensam alguns, a contínua mediação de Cristo. Se isto fôra certo, não haveria razão para a profecia aludir a poder, exército e braços de “homens poderosos”, para que o papado afastasse do seu caminho o “contínuo”. Sua ascensão temporal não dependia da promulgação de um dogma em substituição a outro, mas sim da remoção de estorvos políticos à sua marcha ascendente.
Compreendendo a classe romana, representada pelo império romano, opusera-se decididamente o paganismo imperial ao papado em ascendência. Ao galgar, porém, Constantino o Grande, ao trono do império, começou a cumprir-se a profecia da tirada do “contínuo”, demonstrando-se êste César desde logo um dos poderosos “braços” proféticos que surgiríam em socorro do papado, voltando-se contra o próprio paganismo do qual era antes pontífice. Constantino manifestou-se de pronto zeloso defensor do cristianismo à moda de Roma; proibiu a consulta aos deuses pagãos; e qualificou “o paganismo de opinião ímpia e poder das trevas”. Afinal, removeu para Constantinopla, a própria capital do império, deixando desembaraçado o caminho do papado no ocidente romano.
Assim, com a política de Constantino e de seus sucessores no trono, favorável ao clero papal, estava o papado livre do “contínuo”, em sua forma ro-mana, tendo o próprio paganismo dos Césares se cristianizado segundo Roma-papal. Afastado, pois, o “contínuo” romano, revelou-se o “iníquo” de que falou S. Paulo (II Tess. 2:6-8).
O Paganismo Ariano
A invasão dos bárbaros põe novamente em perigo a estrutura ascendente do papado. A avalanche de bárbaros germanos pareceu absorver tudo quanto era romano, incluso o próprio papado. Era o “contínuo” que agora, em sua forma pagã-ariana, opunha-se-lhe vigorosamente, tentando arrebatar-lhe de novo a supremacia. Mas a ponta pequena manifestara-se diplomaticamente bastante forte para enfrentar a crise e vencê-la com novos “braços” poderosos.
Em sua forma ariana, porém, ia o “contínuo” ser definitivamente vencido, tendo a inspiração estabelecido uma data fixa para a sua tirada ou destruição.
A Data Profética da Tirada do Contínuo
Tôdas as profecias das Sagradas Escrituras encontram seu cumprimento na história secular. Qualquer explanação profética sem o comprovante histórico legítimo, carece de tôda confiança e crédito.
Em Daniel 12:11, temos a data profética da tirada do “contínuo”, aliás, no início do período de 1290 dias-anos ali preditos.
Para entender perfeitamente o que a revelação agora nos quer uma vez mais ensinar sôbre o “contínuo”, recordemo-nos de que o papado, com seu falso sistema de culto, substituiu o paganismo, no trono temporal, até 1798, quando a espada de França o derribou da liderança em que o colocaram aquêles “braços de homens poderosos”.
Por conseguinte, o período de 1290 dias ou anos, encontrou seu término em 1798. Então, como a razão no-lo ensina, devemos fazer retroceder da data de 1798 os 1290 anos, para têrmos a data ou o ano em que, para dar lugar ao papado, o “contínuo” foi afastado.
Realizada a operação: 1798 menos 1290, temos diante de nós o ano 508, o ano infalível da tirada do “contínuo”.
Acontecimentos Históricos
A supremacia dos bárbaros invasores sôbre o império romano do ocidente e a queda dêste em 476, tornou-se, como vimos, grave perigo para o papado. Mas, como, com o advento de Constantino, o caminho foi preparado para a vitória do papado sôbre o paganismo romano, de igual modo o advento de Clóvis, rei dos francos, preparou o caminho para a vitória do papado sôbre o paganismo-ariano, invasor que inundou a Europa.
Em 493 Clóvis contraiu núpcias com Rotehilda, filha de Chisperico e sobrinha católica de um rei ariano, Gondebaldo e, por sua influência, Clóvis converteu-se ao cristianismo católico, sendo batizado com mais de 3.000 de seus guerreiros.
Consumado o batismo de Clóvis, o papa lhe chamou “o filho primogênito da igreja”. Sua conversão ao catolicismo trouxe para a igreja de Roma a poderosa espada dos francos, que foi imediatamente usada para reprimir o arianismo, cujos soberanos se alarmaram grandemente.
“Os reis dos bárbaros foram. . . convidados a unir-se numa ‘liga de paz’, a fim de deter as agressões de Clóvis, que os fazia perigar a todos”. Formar uma confederação tal e vincular a tôdas as antigas monarquias arianas contra êsse Estado católico ambicioso que ameaçava absorvê-las tôdas, foi então o propósito principal de Teodorico”.
“A ação diplomática de Teodorico foi impotente para impedir a guerra; pode até ser que estimulasse Clóvis a golpear ràpidamente antes que contra êle se pudesse formar uma coligação hostil. Numa assembléia de sua nação, (talvez o Campo de Marte), em princípios de 507, declarou impetuosamente:
‘Considero muito vexatório que êstes arianos dominem uma parte tão grande das Gálias. Vamos e vençamo-los com a ajuda de Deus, e submetamos a terra.’ A proclamação agradou a tôda a multidão, e o exército reunido marchou para o sul até o Loire”.
“Não se sabe porque a explosão demorou até ao ano 507. Que o rei dos francos foi o agressor, é coisa certa. Achou facilmente um pretexto para iniciar a guerra como campeão e protetor do cristianismo católico contra as medidas absolutamente justas que Alarico tomava.
“Na primavera de 507, êle (Clóvis) transpôs repentinamente o Loire e marchou para Poitiers”. E os visigodos, não tendo recebido a tempo o auxílio de Teodorico, rei dos ostrogodos, foram derrotados.
“É evidente, pela linguagem de Gregório de Tours, que êste conflito entre os francos e os visigodos foi considerado pelo próprio partido ortodoxo de seu tempo e de outros anteriores, uma guerra religiosa, da qual, do ponto de vista humano, dependia a prevalência do credo católico ou ariano na Europa ocidental”. — Las Profecias de Daniel y el Apocalipsis, Vol. I, págs. 268-269.
Depois disto Teodorico, filho de Clóvis, e o rei dos borgundos, Gondebaldo, puderam apoderar-se, em 508, das cidades do Loire e do Ródano. Tomaram também Narbona, a mais importante depois de Tolosa, puseram em grave risco a Aries e deram sangrenta batalha entre a cidade oriental e ocidental para ganhar a ponte do Ródano, enquanto Clóvis cercava outra vez Carcassona para ver se podia apoderar-se do tesouro.
“Nestas circunstâncias chegaram as tropas ostrogodas ao teatro da guerra… Os ostrogodos não só contiveram o ulterior progresso das armas francas, como as fizeram retroceder”. — História Universal, G. Oncken, Vol. VI, págs. 343 e 344.
Diz outra fonte: “No ano seguinte, em 508, Teodorico dirigiu-se contra Clóvis e ganhou a vitória, depois da qual fêz inexplicàvelmente a paz com êle, e terminou a resistência das potências arianas.” — Las Profecias de Daniel y el Apocalipsis, Vol I, pág. 270.
Abisma-nos o fato de que exatamente no ano 508, estando o paganismo-ariano vitorioso sôbre Clóvis, bem como sôbre o catolicismo, Teodorico cessasse a guerra e propusesse a paz para não mais os arianos oferecerem resistência total e organizada aos francos e aos católicos.
Os sucessos históricos comprovam cabalmente que Clóvis, depois de convertido ao catolicismo, se tornou uma figura de Constantino, salvando o papado de perecer sob a política e armas pagãs arianas, como aquêle, da política e armas pagãs romanas.
Ficou demonstrado, evidentemente, que o “contínuo”, dos vários textos de Daniel, é o paganismo, quer romano quer ariano, afastado definitivamente pela cessação da resistência das potências arianas, exatamente no ano 508, prefixado pela profecia.
E, nesta pendência, entre o arianismo e o catolicismo, urge salientar os seguintes pontos:
- 1. Os bispos e o papado instigaram Clóvis, após o seu batismo, à guerra contra os seus oponentes ariano-pagãos.
- 2. Ao converter-se ao catolicismo, Clóvis toma a defesa do papado ameaçado pelo paganismo-ariano.
- 3. Clóvis apoiou incondicionalmente o papado em sua guerra contra o arianismo-pagão.
- 4. A guerra de Clóvis, depois de seu batismo, foi uma guerra religiosa do papado contra as potências arianas coligadas.
- 5. Os bispos, sacerdotes e povo católico cooperaram com Clóvis, abrindo-lhe, à sua aproximação, as portas de suas cidades.
- 6. O trono papal foi, por Clóvis, salvo de parecer sob a pressão do arianismo.
- 7. Em 508 foi decidida a pendência do papado contra o arianismo, pelas armas de Clóvis, com vantagem definitiva para o papado.
- 8. Em 508 findou a resistência unida do arianismo total contra o papado.
- 9. Em 508 Clóvis preparou o triunfo do catolicismo e do papado.
- 10. Em 508 cumpriu-se perfeitamente a profecia do afastamento do “contínuo” — o paganismo.
Agora, como fêcho altamente comprobatório de que o “contínuo” foi em realidade o paganismo, diz-nos o texto de Daniel 12:11 que, desde que êle fôsse tirado, passariam 1290 anos. Isto nos leva a crer que o “contínuo”, ou o paganismo, voltaria a fazer guerra ao papado, findo o período de 1290 anos, em 1798. Que a revolução francêsa foi a volta do paganismo a ameaçar e destronar o papado, está fora de tôda cogitação e dúvida. Assim a França pagã, catolicizada, salvou e exaltou o papado, em 508; e a França católica, paganizada, derribou o papado do trono temporal em 1798.
Os defensores da hipótese de que o “contínuo” representa a mediação de Cristo, devem provar, para justificá-la, que a referida mediação foi substituída pelo falso sistema católico de mediação, exatamente no ano 508. Como povo profético não podemos crer em idéias pessoais de homens, mas na revelação e certeza das profecias inspiradas e comprovadas pela história secular.