A 2 de maio de 1943, um grupo de pessoas observava da ribanceira, escondido e silencioso, uma curiosa cerimônia que era realizada em um rio. Logo perceberam que se tratava de um batismo. Dois religiosos o oficiavam. Chamou-lhes a atenção o fato de que alguns dos batizandos eram submergidos várias vezes. Alguém se juntou ao grupo dos espectadores ocultos e lhes informou que aquilo que viam era um batismo pelos mortos, destinado especialmente a interceder em favor daqueles que não tiveram oportunidade de aceitar em vida as doutrinas da Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias (ou mórmons). Silenciosa e cautelosamente, o grupo aproximou-se um pouco mais da cena e ouviu vários nomes serem pronunciados pelos oficiantes. É impossível imaginar a surpresa que deles se apoderou ao ouvirem o nome do famoso patriota norte-americano George Washington.1

Uma interpretação peculiar do texto de I Cor. 15:29, deu lugar, no mormonismo, a essa prática ritual que se realiza nos templos em favor dos mortos. Por causa dessa prática, homens notáveis do passado foram unidos post mortem a essa igreja.

Os mórmons adotam como fundamento dessa doutrina o texto que diz: “Doutra maneira, que farão os que se batizam pelos mortos, se absolutamente os mortos não ressuscitam? Por que se batizam eles então pelos mortos?” (I Cor. 15:29).

UMA PASSAGEM DIFÍCIL

Por certo, esta não é uma passagem fácil. O comentarista Adam Clark considerava que era o versículo mais difícil do Novo Testamento.2

Essa passagem suscitou inúmeras explicações. Alguns eruditos enumeravam até trinta interpretações, mas a maioria delas pode ser descrita em quatro correntes fundamentais: 1) os que encontram uma solução emendando e reconstituindo o texto; 2) os que dão ao versículo um significado metafórico, afirmando que sua mensagem representa o sofrimento e a aflição, e que não pode ser considerado literalmente. Também há 3) os que tomam o texto em sentido mais óbvio, isto é, como se referindo realmente a um batismo vicário pelos mortos, esclarecendo, além disso, que essa era uma prática herética surgida bem cedo;3 e 4) os que analisam este texto considerando possíveis variantes de tradução da passagem; situando-o dentro do tema da ressurreição.

ALGUMAS INTERPRETAÇÕES POSSÍVEIS

Entre as interpretações mais antigas consideradas como possíveis, encontra-se a sugerida por Foschini, e que atualmente é defendida em certos meios teológicos como a solução mais provável. Esse autor sugeriu mudar a pontuação, dividindo em duas a frase constitutiva do verso e colocando um pequeno acréscimo no texto original. De acordo com sua sugestão, o texto seria redigido da seguinte maneira: “Se fosse de outra maneira, que ganhariam os que se batizam? (Batizam-se) pelos mortos? Se de maneira alguma os mortos ressuscitam, por que se batizam? (Batizam-se) por eles?’’4 Segundo este parecer, a interpretação que se extrairia do texto não seria a de um batismo vicário pelos mortos, mas a de: por que batizar-se, uma vez que não há ressurreição dos mortos? O batismo é um símbolo da morte e da ressurreição, mas se não há ressurreição — assunto principal e fundamental de I Coríntios 15 — a representação desse acontecimento (o batismo) não tem sentido, e seu significado é vão.

Uma segunda corrente de interpretação procura considerar a passagem dentro do contexto em que ele se apresenta, isto é, como uma prova a mais em favor da ressurreição. Segundo esse ponto de vista, a expressão: “De outra maneira’’, ou “se fosse de outra maneira” (versão Nácar-Colunga) com que esse verso é iniciado, referir-se-ia ao argumento que se elabora entre os versos 12 e 28, e que poderia ser parafraseado como: “Mas se não há ressurreição…” De acordo com isso, o vocábulo “batismo” é figurativo e quer dizer: enfrentar riscos, perigos e mesmo a morte (S. Mat. 20:22). Hoje se fala do “batismo de fogo” de um soldado, sem querer dizer que este seja submergido dentro do fogo, mas que enfrenta, ou enfrentou, sua primeira batalha.

Assim sendo, “os que se batizam” referir-se-ia aos apóstolos, que constantemente desafiavam a morte ao proclamar a esperança da ressurreição num meio pagão e hostil (I Cor. 4:9-13). Paulo relata sua própria experiência, dizendo: “Por que estamos nós também a toda hora em perigo?” (I Cor. 15:30). “Os mortos”, aos quais se faz referência, seriam os mortos cristãos dos versículos 12 a 18 e, potencialmente, todo cristão que tenha uma esperança para além da morte (versos 12 e 19).5 De acordo com esta interpretação, o significado do texto seria: “Mas se não há ressurreição, que estão fazendo os mensageiros do evangelho? Acaso não estão enfrentando a morte pelo bem de homens que, afinal de contas, estão destinados a perecer?” Essa interpretação salienta a insensatez do risco que se corre por pregar um evangelho que proclama uma ressurreição inexistente. Mas justamente a certeza da ressurreição é o que revigora sua mensagem evangélica.

A outra linha interpretativa afirma que Paulo se está referindo a um costume herético, pelo qual os cristãos vivos — não todos os crentes Coríntios, mas um grupo herético — batizavam-se vicariamente pelos familiares ou amigos que não receberam o batismo durante a vida. Tertuliano refere-se aos marcionitas, um grupo herege do cristianismo primitivo que praticava o batismo pelos mortos.6 Devemos reconhecer, porém, que esta interpretação surge de uma suposição até o momento não demonstrável — pelo menos através das fontes históricas disponíveis — a de que tal prática remontava aos tempos de São Paulo. Mas ainda que isso fosse possível, o apóstolo de modo algum está favorecendo este ensinamento.

Dentro dessa perspectiva analítica, outra variante que aceita o aparecimento extemporâneo desse desvio, detém-se na consideração de que o apóstolo, neste capítulo, usa expressões como “eu”, “me”, “nós”, “vós”, quando se refere a si mesmo (Paulo) e à igreja (de Corinto). Mas quando se refere ao batismo pelos mortos, há uma mudança para a terceira pessoa do plural: “Que os que se batizam pelos mortos?” Nos versos seguintes Paulo volta a utilizar a primeira pessoa do singular e do plural. Dessa forma, Paulo separaria os crentes Coríntios, e a si mesmo, de um grupo herético que praticava o batismo vicário em favor dos mortos.

Outra linha de análise surge da consideração da expressão huperton nekron. Este ponto de vista focaliza uma variante de tradução da qual surge, consequentemente, uma nova leitura do significado. O conceito do batismo vicário aparece em uma interpretação possível do vocábulo huper que, entre outros significados, quer dizer “em favor de”. Se aplicada essa tradução, surge o batismo por (em favor de) os mortos. Contudo, Arndt e Gingrich, em seu dicionário de palavras gregas, propõe outra tradução possível, e aplicável no genitivo, além da anterior, que é considerar huper no sentido de “por respeito a” ou “em consideração a”, ou “por motivo de” alguém.7

A partir dessa posição, muda todo o enfoque do texto e também o sentido que este teria. Já não aparece a leitura de um batismo vicário, mas um agradecimento dos crentes vivos pelo exemplo cristão que ofereceram em vida os que já morreram, mas cujas obras os seguem (Apoc. 14:13). Esses cristãos morreram, mas deixaram atrás de si uma viva influência, e aqueles que os conheceram leram nessas “cartas” vivas (II Cor. 3:2) o evangelho do Senhor Jesus Cristo, e agora se batizam por “consideração a” os mortos que enquanto viviam foram cristãos exemplares.8 Se introduzirmos essa idéia no texto, seu significado seria: “Que farão os que se batizam pelos (o exemplo de) mortos, se de modo algum ressuscitam? Por que, pois, se batizam por (consideração a) os mortos?” Nesse esquema, Paulo continua realçando a doutrina da ressurreição. Segundo essa nova espécie de leitura, Paulo afirmaria que o batismo, mesmo o daqueles que seguem o exemplo dos santos que morreram, seria desnecessário caso não houvesse ressurreição, pois sem ela toda esperança é vã, e o batismo carecia de significado.

ELEMENTOS QUE ENTRAM NA INTERPRETAÇÃO DO TEXTO

Nenhuma das interpretações anteriores coincide com a idéia de um batismo vicário em favor dos mortos como um ensino apostólico.

Este texto deve ser tratado segundo seu contexto imediato, e tendo em conta o fio temático que Paulo desenvolve em I Coríntios 15: a ressurreição. Por sua vez, toda possível interpretação deve ser extraída considerando o sentido mais elevado contido na carta aos Coríntios, atentando para o pensamento paulino revelado em outros escritos, e harmonizando toda dedução com o pensamento bíblico geral.

Esse sentido mais elevado oferece um esquema dentro do qual deve ser feita a dedução do significado do texto, considerando, naturalmente, os aspectos lingüísticos e gramaticais como ferramentas fundamentais da busca do significado. Escapar a esse sentido pode levar-nos a ver idéias pessoais dentro do texto, o que finalmente nos impedirá de conhecer seu significado.

Por outro lado, esse sentido geral que unifica o pensamento dos autores bíblicos, defende os seguintes aspectos, que devemos levar em consideração:

1. A salvação é por graça, e a graça é dada livremente por Deus ao crente, e o homem apropria-se desse dom por meio da fé (Efés. 2:8). Mas não vemos na Bíblia que um indivíduo possa crer em lugar de outro, ou converter-se ou batizar-se por outro. Não obstante, é possível que o exemplo de um crente guie um incrédulo. Lembremo-nos, porém, de que o homem não se salva em grupos, nem em lugar do outro. Diz Ezequiel: “Noé, Daniel e Jó… pela sua justiça livrariam apenas a sua alma, diz o Senhor Jeová” (Ezeq. 14:14). Nenhum membro da igreja do primeiro século terá lido esta carta (I Coríntios) entendendo que a fé de um crente vivo podia ser reconhecida como benéfica a um incrédulo morto.

2. Em parte alguma da Bíblia se autoriza a praticar um batismo em favor dos mortos.

3. O apóstolo Paulo não apóia este ensino. Além disso, é difícil defender que chegou a ser praticado nos tempos de Paulo. De qualquer maneira, a afirmação paulina não é mais do que uma referência incidental, e não uma validação doutrinária. E, obviamente, uma referência não significa a autorização apostólica.

4. Por outro lado, bem sabemos que a Bíblia ensina que esta vida é a única oportunidade com que contamos, e o destino individual não pode, portanto, ser aperfeiçoado após a morte (Ecl. 9:10).

5. Após a morte, o indivíduo entra numa fase de inconsciência, e espera até o momento do regresso do Senhor (Ecl. 9:5; I Tess. 4:13-18). Estes últimos textos são terminantes, pois estando inconscientes os mortos não podem crer, nem sentir, nem decidir.

CONCLUSÃO

Paulo utiliza em I Coríntios 15 uma ampla e sortida gama de argumentos tirados da praxis cristã que, de concreto, ilustra a segura confiança na ressurreição dos mortos.

Referências:

1. Jerald y Sandra Tanner, Mormonism. Shadow ou Reality? (Salt Lake City, Modern Microfilm Company, 1982), pág. 451.

2. Adam Clarke, Comentario de Ia Santa Biblia (Kansas City, Casa Nazarena de Publicaciones. 1976), pág. 424.

3. Máximo Vicuña, La ressurreccion de los muertos (Buenos Aires, tese doutrinária apresentada como requisito no I S E D E T . 1982). pág. 136.

4. Foschini, Those who are baptized for the dead, I Cor. 15:29 (Os que se batizam pelos mortos. I Cor. 15:29) Worcester, 1951. citado por Lorenzo Turrado. Biblia Comentada (Madrid, Biblioteca de Autores Cristão, S.A., 1965), vol. 6. pág. 447, nota 5.

5. Francis D. Nichol, editor, Seventh-day Adventist Bible Commentary (Washington D.C., Review & Herald Publishing Association, 1956), vol. 6. 807.

6. Tertuliano, Contra Apion, vol. 10.

7. William F. Arnd e F. Wilbur Gingrich. A Greek-English Lexicon of the New Testament (Chicago, The University of Chicago Press, 1965), pág 846.

8. Gleason L. Archer, Encyclopedia of Bible Difficulties (Grand rapids, Zondervan Publishing House, 1982), págs. 401 e 402.