Somos enviados a viver e testemunhar no mundo atual, como Cristo o fez quando esteve na Terra

Desde que comecei a pastorear igrejas em uma grande cidade, aproximadamente sete anos atrás, tenho me perguntado: Se nosso Senhor amou tanto o mundo, por que não deveríamos amá-lo também? E estou começando a imaginar que nosso temor da cultura secular não é tanto uma conseqüência da nossa piedade, mas da nossa falta de amor e interesse pelos inconversos que vivem nas grandes cidades.

O ministério da igreja primitiva foi caracterizado por seu excessivo amor pelos seres humanos. Ela expandiu o amor de Jesus através da humildade, inclusão, generosidade e martírio. Porém, hoje, o quadro é diferente, e isso pode ser visto em três momentos históricos. Primeiro, no quarto século, durante o reinado de Constantino, uma igreja que tinha sido humilde, embora um potente movimento espiritual, transformou-se num dos maiores poderes seculares de todos os tempos. Durante esse período, ela desenvolveu sua própria cultura de orgulho, exclusão, ganância e perseguição. De uma forte influência contracultural tornou-se definidora e apoiadora da cultura do mundo. A igreja serva passou a ser a Igreja conquistadora.

O segundo momento foi o lluminismo, quando a Igreja foi destronada de sua posição e permaneceu na sociedade apenas com um mandato para adaptar-se, apoiar e referendar os recém-entronizados valores da razão e do progresso. Passou de agente a protetor da cultura. A Igreja conquistadora foi rebaixada ao papel de depositária.

Como terceiro momento, temos o pós-modemismo, que surgiu na segunda metade do século 20 e completou o processo de marginalização da Igreja, transformando-a simplesmente em uma das muitas vozes na reinante balbúrdia ideológica. Nesse processo, ela deixou de ser depositária para ser parte da cultura.

Com esses três saltos, a Igreja cristã tem se tornado uma espécie de peregrina exilada em um mundo urbano hostil, secular, pluralista e politeísta. Como deveriamos amar esse mundo? Seria esse, ainda, o nosso dever?1

Lições do exílio

O povo de Deus já esteve num exílio, antes – em Babilônia, por exemplo. Babilônia tinha uma cultura hostil, pluralista, politeísta e divorciada da educação, das artes e da sociedade bíblica. O soberano babilônico tinha apenas um alvo para Israel: assimilação. Isso era atrativo aos israelitas, porque representava uma promessa de prosperidade econômica e aceitação social. O falso profeta Ananias (Jer. 28), porém, tinha outro alvo para eles: separação. Permanecer fora da cidade, impolutos, e orando pelo julgamento divino contra a cidade pagã parecia ser mais condizente com sua herança.

As duas opções ainda estão abertas. Muitas denominações têm aderido à idéia de assimilação. Isso ocorre quando a teologia da Igreja é desnaturalizada, perdendo assim sua autoridade e identidade, tornando-se indistinta da cultura prevalecente, assumindo seu sistema de valores e costumes. Também pode ocorrer através da criação de uma subcultura dentro da cultura dominante. As subculturas normalmente são diferencia das por indicadores sociais externos, tais como regime alimentar, modo de vestir, hábitos socioculturais e jargões religiosos. Porém, elas não exibem um sistema de valores verdadeiramente diferente. Em outras palavras, são diferentes apenas em sua maneira de ser.

Há grupos cristãos que optam por separar-se, criando guetos, isolando-se em suas instituições. O atrativo desse modelo é o sentido de segurança e superioridade que alguém consegue, vivendo em uma “cultura impoluta”, e sentindo-se justificado por denunciar a deterioração da cultura secular. Os que o adotam somente podem viver como cristãos se exercitarem um controle cultural nos respectivos grupos. Dissociados da sociedade secular, eles envidam esforços para crescer numericamente, orando para que Deus suscite pessoas que se unam à sua cultura.

Nos dias de Jeremias, embora Israel oscilasse entre assimilação e separação, Deus revelou Sua vontade ao Seu povo no exílio: “Assim diz o Senhor dos Exércitos, o Deus de Israel, a todos os exilados, que Eu deportei de Jerusalém para a Babilônia: Edificai casas, e habitai nelas; plantai pomares, e comei o seu fruto. Tomai esposas e gerai filhos e filhas, tomai esposas para vossos filhos, e dai vossas filhas a maridos, para que tenham filhos e filhas; multiplicai-vos aí, e não vos diminuais. Procurai a paz da cidade para onde vos desterrei e orai por ela ao Senhor; porque na sua paz vós tereis paz.” (Jer.29:4-7).

Esse conselho deve ter soado completamente assombroso para os israelitas. Era contrário a tudo o que pensavam que Deus diria. A mensagem contém a idéia de que o exílio era parte do plano de Deus quanto ao cuidado de Seu povo. Mas todos os atos de Deus são derivados do Seu amor. Jeremias descreveu o exílio como bênção disfarçada de maldição. O exílio foi usado por Deus para despir Seu povo do poder de sua cultura, a fim de dar-lhe algo mais precioso. E a mensagem revela essa bênção denunciando tanto a assimilação como a separação.

Deus adverte Seu povo a não assimilar e conservar a identidade de Babilônia; e também o aconselha a não separar-se dela, mas estabelecer-se na cidade. Ao retirar o poder dos israelitas, Deus planejava conduzi-los em uma experiência através da qual eles aprendessem a amar verdadeiramente e abençoar as pessoas no mundo. Essa foi a razão pela qual a nação de Israel foi instituída (Gên. 12:2 e 3). Nesse sentido, o compromisso de Deus aprofunda-se. Orar em favor da paz da cidade (Jer. 29:7) significava pedir a Deus por seu completo bem-estar espiritual, emocional, material e social.

Movendo-nos da experiência de Israel para o nosso tempo, consideremos como Deus pode dirigir-se a nós, aqui e agora: “Eu removi seu poder cultural e quero que viva como exilado. Não quero que viva separado, lamentando o estado cultural que o cerca. Não quero que você vá às cidades seculares apenas para construir igrejas. Quero que penetre a vida da cidade, veja quão despedaçada ela está, e envolva-se nela. Quero que você trabalhe, ore e se esforce para fazer dela um grande lugar, um lugar melhor.

“Desejo que você construa, ame e sirva ‘Babilônia’ melhor que os ‘babilônios’. E quero que faça tudo isso, conservando sua identidade e seus valores como israelitas espirituais. Quero que você faça o melhor que puder em favor da cultura prevalecente, enquanto vive distintamente como Meu povo. O que quero dizer é isto: não assimile, amando a cidade e Me esquecendo. Porém, ao mesmo tempo, não se separe, amando-Me e odiando a cidade. Em resumo, viva na cidade como o Cristo encarnado viveu na Terra entre o povo.”

Os cristãos e a cidade

O profeta Daniel conhecia a controvertida mensagem de Jeremias aos israelitas exilados. Embora alcançasse posição de liderança no governo babilônico, ele dominava as ciências conforme eram praticadas em Babilônia. Moveu-se habilmente na cultura pagã e agiu positivamente dentro dela. Era integrado, flexível e proativo, mas sempre manteve um inegociável compromisso com seu monoteísmo, e lealdade ao Deus de seus pais. Daniel viveu uma vida na qual nem se separava da cultura de Babilônia nem era assimilado por ela.

Lembrando a bem conhecida experiência da cova dos leões (Dan. 6), vemos que, embora ele respeitasse e honrasse a cultura babilônica e ocupasse um posto elevado, manteve-se firme em sua distintiva fé israelita, a ponto de preferir morrer a transigir. Se Daniel fez isso, por que não podemos agir de maneira idêntica? Como testemunhar com êxito entre atores, advogados, empresários e cantores cristãos, quando vivemos em Babilônia? De que maneira a Criação, a Ressurreição de Cristo e Seu retorno iminente causariam impacto no dia-a-dia de uma grande cidade?

As respostas podem não vir facilmente; a Bíblia não possui nenhum livro de regras sobre “como fazer”. Temos de lutar através do nosso caminho, ajudando-nos mutuamente a descobrir como ser um discípulo urbano. Se não lutarmos com essas questões, de uma forma ou de outra, seremos assimilados. Se nos desesperarmos por causa da falta de regras e nos esquivarmos de nossa vocação, ficaremos separados.

Não podemos nos esquecer que separação do mundo é tão fatal como assimilação. É bom viver em lugares onde os cristãos não são a força, onde nossos amigos não são cristãos. A cidade é o lugar onde a fé é seriamente desafiada e onde muitas das nossas respostas são consideradas superficiais. Mas isso nos força a crescer e refinar nossa fé.

Vivendo na cidade, compreendemos que ali existem muitos incrédulos inteligentes e virtuosos. É possível encontrar maravilhosos budistas, muçulmanos e mesmo ateus. Caso nossa fé seja abalada por isso, e comecemos a questionar as razões pelas quais somos cristãos, significa que jamais compreendemos realmente a essência do evangelho. Se não podemos encontrar alegria na bondade de não crentes, isso mostra que sempre pensamos que somos salvos através de nossa bondade. A cidade necessita de nós, para restaurá-la, mas nós também necessitamos da cidade. Ela desafia nossa compreensão do evangelho e aprofunda nossa experiência cristã.

Desafio à cultura

As culturas metropolitanas são como a nave espacial Borg, da série de ficção científica “Jornada nas estrelas”. Borg é uma civilização que viaja através do universo em grandes cubos pretos, assimilando outras civilizações. Elas projetam a mensagem: “É inútil resistir; você será assimilado.” Há duas opções oferecidas por Borg: fugir, ou tornar-se Borg. Mas os cristãos não devem nem fugir de uma tal cultura, nem mergulhar nela. Devemos ser o povo que entra em Borg e liberta sua população. Devemos ser uma contracultura; uma “comunidade de resistência”, como Dietrich Bonhoeffer declarou.

Pedro diz aos cristãos do primeiro século que, quando eles receberam a graça, se tornaram “peregrinos e forasteiros” no mundo (I Ped. 2:11). O mundo será, ao mesmo tempo, atraído e repelido pelos cristãos. Jesus personificou esse enigma. Ele era muito atrativo, mas até Seus familiares tiveram dificuldade para crer nEle; não sabiam muito como relacionar-se com Ele. Tratavam-nO com desrespeito.

À medida que nos assemelharmos a Jesus, nos tornaremos também um enigma. As pessoas balançarão a cabeça diante de nós. Não podemos ser nada mais que um enigma, se cremos em coisas tais como: “servir é melhor que ser servido”; “morrer é melhor que matar”, se oramos em favor dos nossos inimigos, ou se lutamos a batalha da vida com as armas do perdão, humildade e sacrifício. Na média da cultura urbana, somos estranhos. E aqui está o âmago da tendência contra os cristãos, nas cidades secularizadas: as pessoas vêem alguma coisa que não compreendem. Quando você diz: “Eu conheço Deus”, está pensando em Sua graça estendida a você. Para elas, entretanto, isso soa extremamente arrogante. “Você conhece Deus? Por que deveria Ele Se revelar a você? Talvez você esteja pensando que tem um relatório moral melhor ou superior ao nosso.”

O que, para nós é uma declaração de humildade, soa como afirmação de arrogância. O mundo tem dificuldade em aceitar a graça e, assim, pensa que tudo o que é cristão é algum tipo de escândalo. E é! É o escândalo celestial, o escândalo da graça. Deus planejou nossa salvação de modo que pudéssemos ter vida abundante.

O cristianismo está ausente na vida de muitas metrópoles. Após décadas de trabalho, um dos grandes missiólogos urbanos, Ray Bakke, falou sobre seu aprendizado: “Eu pensava que as barreiras à missão eram as grandes, rebeldes cidades. Mas 90% das barreiras para alcançá-las não estão nelas. As barreiras estão em nossa teologia, nossas estruturas e atitudes.”2 Desse modo, aqui estão três maneiras pelas quais nossa Igreja pode equipar os pastores e congregações urbanos para testemunhar nas metrópoles às quais foram enviados.

Três sugestões

Radicalizar nossa teologia. Se queremos enfrentar o desafio da cultura onde vivemos, devemos construir uma teologia que vá além de um simples argumento de esquerda ou direita. Devemos abandonar a postura legalista e fazer emergir a genuína espiritualidade cristã adventista. Essa teologia deve ser germinada no campo da missão urbana, e oferecer um guia para a vida real no mundo secular. Por um lado, deve desviar seu foco e energia da preservação dos indicadores culturais do cristianismo e do adventismo. Por outro lado, deve afastar-nos do balcão de negociação dos nossos valores e da aceitação dos valores e pensamentos da cultura que nos cerca.

A formulação de uma teologia assim vai nos inspirar não a ser menos radicais, mas a ser mais radicais do que vemos hoje nas igrejas consideradas conservadoras ou liberais.

Reconhecimento da beleza da cidade. Podemos nós aprender a ver a graça e a beleza de Deus nas ruas das grandes cidades? Deveriamos nos converter de nosso cinismo a respeito das metrópoles, seguir o conselho de Jeremias e trabalhar para abençoá-las.

Quando a Nova Jerusalém descer, todos seremos urbanos. Nosso coração pode alegrar-se quando vemos uma montanha, cachoeira ou árvore, mas também deveria fazê-lo, diante de um superlotado metrô, modernos arranha-céus, largas e bem pavimentadas avenidas. Isso porque nesses locais há pessoas, e são elas que levam alegria ao coração de Deus. Há, certamente, violência, sofrimento e injustiça nas grandes cidades, mas Deus sempre foi interessado em pecadores, porque onde o pecado é abundante, a graça é superabundante (Rom. 5:20).

Reestruturação institucional. As igrejas das metrópoles necessitam de recursos para enfrentar os desafios, causar impacto na vizinhança e se tornarem lugares de refúgio. Habitantes esclarecidos das metrópoles simplesmente rejeitam unir-se ou apoiar uma estrutura eclesiástica que tira os recursos da igreja local. Salvo algumas raras exceções, esse assunto ainda é um tabu.3

Mudanças organizacionais são difíceis para qualquer instituição longamente estabelecida. Porém, se colocarmos a missão e o ministério acima da manutenção e autopreservação, Deus recompensará grandemente qualquer sacrifício. Testemunharemos a mais dinâmica e efetiva ação evangelística que alguém pode imaginar: autênticas comunidades locais de crentes capacitadas para adorar e servir ao Senhor diante do mundo. Então, cada igreja poderá ser uma “cidade edificada sobre o monte” (Mat. 5:14), como Jesus planejou, iluminando o mundo.

Referências:

1 George Knight, “Another Look at City Mission”, Adventist Review, dezembro de 2001.

2 Ray Bakke, “Loving an Urbanized World”, Reneration Web Site.

3 Ver George Knight, The Fat Lady and the Kingdom (Nampa, Idaho: Pacific Press Publishing Association, 1995).

Samir Selmanovic, Ph.D., pastor em Highland, Califórnia, Estados Unidos