Quando, aproximadamente 20 anos atrás, a Igreja Adventista necessitou de alguém que liderasse a discussão com Desmond Ford, encontrou no Dr. William Shea seu porta-voz. Amigo do dissidente, qualificado por sua experiência cristã pessoal e profundo conhecimento bíblico, o Dr. Shea cumpriu sua tarefa com amor, firmeza e leal-dade. Arqueólogo, doutor em Línguas Orientais pela Universidade de Michigan, atual-mente ele está à frente do Instituto de Pesquisas Bíblicas da Associação Geral da Igreja Adventista do Sétimo Dia, onde coordena o trabalho de quatro eruditos: um especialista em Velho Testamento, outro especialista em Novo Testamento, um teólogo e um historiador denominacional. Além de administrar, ele é o responsável pelas traduções.

Nesta entrevista, concedida durante o Concilio Ministerial da Divisão Sul-Americana, realizado no Iaene, nos primeiros dias de julho, ele fala à Ministério sobre a marcha da Igreja, seus desafios, perigos que a ameaçam, e mantém firme a confiança: “Não temos absolutamente nada a temer. O Espírito Santo está conosco. Cristo Jesus é o nosso líder. Basta que sigamos os Seus passos vitoriosos.”

MINISTÉRIO: O senhor esteve diretamente envolvido na confrontação da Igreja Adventista com Desmond Ford. Passados 20 anos, que lições ainda guarda daquela situação?

DR. SHEA: Acho que a controvérsia com Desmond Ford contribuiu para que passássemos a estudar Daniel e Apocalipse com mais profundidade do que havíamos feito antes. Durante muitos anos, apenas assumíamos que nossa interpretação das profecias eram corretas, e não fizemos o estudo detalhado que deveriamos ter feito. Então, reestudamos os assuntos envolvidos na controvérsia. Como resultado, tive a oportunidade de presidir uma comissão de aproximadamente 25 membros, que esteve relacionada com a produção de sete livros: três volumes sobre Daniel, um sobre Hebreus, um sobre a História da Doutrina do Santuário na Igreja Adventista do Sétimo Dia e dois volumes sobre o Apocalipse. Se não houvesse o confronto com Ford, esses livros não teriam sido escritos.

MINISTÉRIO: O reestudo a que o senhor se refere resultou em algum reajuste doutrinário?

DR. SHEA: Nenhum ponto principal de doutrina sofreu qualquer mudança. Mas a interpretação de algumas doutrinas de apoio foi refeita.

MINISTÉRIO: O senhor concorda em que, a partir daquela controvérsia, houve uma preocupação maior no sentido de a Igreja se identificar mais com os evangélicos?

Temos uma mensagem profética para dar ao mundo. Muitas dentre as outras igrejas perderam esse sentido profético de missão. Agora mesmo estamos mantendo um diálogo com a Igreja Luterana, na Alemanha, cujo fundador, Martinho Lutero, acreditava firmemente nas profecias.

DR. SHEA: A Igreja Adventista sempre foi uma Igreja evangélica. Na América do Norte, por exemplo, os evangélicos são conhecidos por algumas características específicas. E isso tem a ver com a forma pela qual eles vêem a vida de Jesus. E, basicamente, existem cinco pontos importantes relacionados com a vida de Cristo: Seu nascimento virginal, Sua vida sem pecado, Sua morte expiatória, Sua ressurreição corpórea e Sua ascensão literal. E nós sempre concordamos com os evangélicos nesses cinco pontos. Por isso, em nenhum momento deixamos de ser evangélicos. Sempre estivemos no mesmo lugar.

MINISTÉRIO: Mas, sem dúvida, há diferenças entre a Igreja Adventista e as outras denominações.

DR. SHEA: Bem, cremos que somos um movimento profético. Fomos chamados à existência num tempo determinado pela profecia bíblica. Temos uma mensagem profética para dar ao mundo. Muitas dentre as outras igrejas perderam esse sentido profético de missão. Agora mesmo estamos mantendo um diálogo com a Igreja Luterana, na Alemanha, cujo fundador, Martinho Lutero, acreditava firmemente nas profecias. Lamentavelmente, os teólogos luteranos, hoje, têm posição inteiramente contrária. Também chamamos a atenção para a Lei de Deus. Muitas igrejas tradicionais fazem isso apenas superficialmente, sem a devida ênfase. E há conhecidas ramificações evangélicas que advogam a abolição dessa Lei. Evidentemente, discordamos. Acreditamos que a Lei de Deus ainda hoje é aplicável em sua totalidade.

MINISTÉRIO: Há algum propósito especial da parte da Igreja, ao tomar a iniciativa para esse diálogo com os luteranos?

DR. SHEA: Na verdade, es-tamos dialogando com várias Igrejas ao mesmo tempo. E eu penso que isso é útil, porque conhecendo melhor suas crenças, compreendemos também a sua posição no presente. Ajuda a manter uma relação mais amistosa, o que é muito bom. Será publicado um livro, a partir do diálogo com os luteranos. Esse livro analisará o que eles crêem e o que nós cremos.

MINISTÉRIO: Alguns evangélicos ainda encaram a Igreja Adventista e a visão que ela tem sobre si mesma, como características de seita. O diálogo atual tem ajudado a modificar essa idéia?

DR. SHEA: Minha compreensão da filosofia de desenvolvimento dos movimentos religiosos é esta: Há um núcleo primitivo de líderes carismáticos, que se desenvolve naquilo que nós chamaríamos de seita. As pessoas começam a seguir os primeiros líderes. À medida que o movi-mento se desenvolve e cresce, ele se torna uma Igreja. Então essas são as três fases de um movimento religioso, e os adventistas já estão na terceira fase. Somos uma Igreja mundial, com aproximadamente nove milhões de membros. Quer dizer, ultrapassamos os limites de uma pequena seita. Os evangélicos sérios já estão percebendo isso.

MINISTÉRIO: Alguns estudiosos dizem que os movimentos religiosos que se tomam Igreja e ultrapassam os 150 anos de existência, acabam engolidos pelo secularismo e perdem o senso de missão. Nessa terceira fase, a Igreja Adventista não corre o mesmo perigo?

Ellen White nos chama a um padrão mais elevado de vida. Isso nem sempre agrada, assim como não agradava aos israelitas a palavra dos profetas.

DR. SHEA: A suposição é correta. Real-mente é um perigo. Uma vez que o movi-mento se torna uma igreja estabelecida, há o perigo de que os membros fiquem acomodados e satisfeitos. Já não se abrem para a liderança da Igreja, o zelo missionário arrefece e se torna uma igreja comum. Esse perigo existe também para nós. Por isso, os líderes devem estar sempre vigilantes. Podemos até sofrer algumas incursões do secularismo, mas a maneira de evitar isso é manter constante vigilância.

MINISTÉRIO: Parece que em algumas regiões, certos ensinamentos, como o Dom de Profecia, a inspiração da Bíblia e até o literalismo da volta de Jesus, estão sendo questionados. Como a Igreja está enfrentando essas situações?

DR. SHEA: Vamos situar a natureza do problema. Nós somos criacionistas, mas temos cientistas que estudaram em universidades seculares e assumiram algumas idéias dos respectivos professores. Ao voltarem para ensinar em nossas universidades, continuam adeptos dessas idéias e encontram dificuldades para harmonizar-se com a Bíblia. Eu não conheço nenhum professor adventista que seja um evolucionista deísta, mas conheço alguns que entendem que deve haver um período maior de tempo para a criação. Esse é um ponto de atrito na Igreja. Temos um Instituto de Pesquisas em Geociência, em Loma Linda, que produz bom material criacionista em defesa da Bíblia. A abordagem liberal do estudo da Bíblia está influenciada pela filosofia do humanismo e do racionalismo. Eruditos não-adventistas de outros seminários, que seguem esse ponto de vista, minimizam o elemento sobrenatural da Escritura. E nós temos alguns eruditos que também foram influenciados por esse ponto de vista. É por isso que temos nossos seminários, nos quais se estuda a revelação e inspiração da Bíblia.

MINISTÉRIO: E quanto à questão sobre a volta de Cristo?

DR. SHEA: Até onde eu saiba, todos os adventistas crêem numa segunda vinda literal. Mas agora o que está acontecendo é que como movi-mento, existimos há mais de 150 anos. E alguns estão se perguntando: Quando Ele virá? Entre os teólogos, discute-se essa suposta demora sob o seguinte aspecto: ela acontece por causa de Deus, ou por nossa causa? Há dois elementos envolvidos aqui. Um é a transcendência de Deus. Seus planos e propósitos fatalmente se cumprirão. Há ainda o papel que os ele-mentos desempenham. Há um texto no Novo Testamento que fala da possibilidade de atrasarmos Sua vinda. Eu harmonizo isso da seguinte forma: Deus cumprirá Seus projetos, e nós podemos afetar até certo ponto, mas não totalmente. Quando falamos sobre atraso, falamos segundo a nossa concepção.

MINISTÉRIO: Que questionamentos envolvem o ministério de Ellen White?

DR. SHEA: A questão do Espírito de Profecia é a mesma dos dias de Ford. Ele estava propondo alguns pontos de vista que diferiam da interpretação da Igreja e de Ellen White, especialmente no livro Grande Conflito. Ele ainda diz que crê no Espírito de Profecia, tal como foi manifestado em Ellen White. Mas quando nós lhe apresentamos uma passagem que discorda de alguma idéia sua, ele simplesmente diz que, quando concordam, ela é inspirada; quando não concordam, ela apenas dá sua idéia pessoal. Não podemos tratar o dom profético dessa forma. Penso que existe na Igreja Adventista um tipo de atitude prática, que faz com que, muitas vezes, não permitamos que seus escritos influenciem muito em nossas decisões. Falando diretamente, queremos viver como o mundo vive, e Ellen White nos chama a um padrão mais elevado de vida. Isso nem sem-pre agrada, assim como não agradava aos israelitas a palavra dos profetas.

MINISTÉRIO: Em sua visão de arqueólogo, que ajuda pode oferecer a Arqueologia na solução dos problemas bíblicos anteriormente mencionados?

DR. SHEA: Em grande parte, a Arqueologia confirma a Bíblia. Mas ainda existem problemas que não foram solucionados. Às vezes, quando o arqueólogo escava, resolve alguns problemas e cria outros. É por isso que a Arqueologia é um campo ao mesmo tempo desafiante e interessante. Vou dar um exemplo: No livro de Números existe uma cidade chamada Hesbom, que foi conquistada por Moisés na Transjordânia. A equipe de arqueólogos da Universidade Andrews foi escavar esse sítio que os Árabes chamam Hesbom. Encontramos a Hesbom do tempo de Jeremias, Hesbom do tempo de Isaías, Hesbom do tempo de Davi e Salomão. Mas quando fomos ao nível mais inferior, aquela cidade particular não remontava ao tempo de Moisés. Então teríamos que adotar uma dentre duas soluções: dizer que a Bíblia está errada, ou dizer que não entendemos plenamente a Hesbom da Bíblia. Há casos na Bíblia em que cidades foram mudadas, e nós temos muitos exemplos modernos disso. Noutros casos, os nomes foram mudados.

Ao olharmos o mundo religioso em geral, na realidade, o adventismo do sétimo dia tem sido aceito mais e mais. No entanto, a profecia aponta para um tempo quando nós seremos menos e menos aceitos.

MINISTÉRIO: Que descobertas mais recentes e mais importantes o senhor poderia citar?

DR. SHEA: Há um constante progresso nas descobertas arqueológicas. Vou citar apenas um caso. Ao escavar Hesbom encontramos um selo, do Rei Bel, menciona-do no livro de Jeremias. Ele mandou atacar os judeus que restaram do tempo de Nabucodonosor. Foi a primeira vez que encontramos uma referência direta desse rei. É um pequeno ponto, mas há grandes descobertas como os rolos do Mar Morto, ou as crônicas de Nabucodonosor, que se encontram no Museu Britânico. São descobertas importantes.

MINISTÉRIO: Como o senhor vê a Igreja Adventista, no limiar de um novo século?

DR. SHEA: Vejo-a diante de desafios e enfrentando alguns perigos. O desafio maior é a difusão contínua da nossa mensagem por todo o mundo. O perigo maior é que fiquemos parados e satisfeitos com nossa situação, permitindo que o materialismo e o secularismo nos afetem e nos tornem mais fracos.

MINISTÉRIO: Há um crescente e intenso interesse na liberdade religiosa. Deve-mos lutar por isso, ou deveriamos deixar as coisas seguirem seu curso natural para o cumprimento das profecias?

DR. SHEA: Essa é uma pergunta difícil. Ao olharmos o mundo religioso em geral, na realidade, o adventismo do sétimo dia tem sido aceito mais e mais. No entanto, a profecia aponta para um tempo quando nós seremos menos e menos aceitos. O que necessitamos é ter em mente que os eventos podem mudar muito rapidamente. Nós temos um exemplo clássico disso, na queda do muro de Berlim e na derrocada do comunismo. Quem poderia prever que tudo isso, hoje, estaria no passado? Hoje, a Igreja Adventista pode ser aceita e sentir-se favorecida. Mas, amanhã, as coisas podem estar contra nós.

MINISTÉRIO: Falando nesse contexto, em que pé estão os trâmites para a legislação dominical imposta nacionalmente, nos Estados Unidos?

DR. SHEA: A Suprema Corte dos Estados Unidos declarou que as leis dominicais são legais. Muitos Estados americanos mantêm leis nesse sentido, que remontam a dois séculos, mas não estão em vigor. Agora a Suprema Corte decide por sua legalidade. Evidentemente, para a Igreja Adventista, teria sido bom se a declaração fosse ao contrário. Em fins de junho, a mesma Suprema Corte tomou outra decisão sobre liberdade religiosa. Em 93 o Congresso americano aprovou uma lei sobre liberdade religiosa, a qual enfrentou protestos da Igreja Católica do Texas. O caso foi para a Suprema Corte, que deu o veredicto segundo o qual a lei aprovada pelo Congresso é inconstitucional. Os adventistas e os evangélicos se pronunciaram dizendo que a decisão era um retrocesso para a liberdade religiosa. No momento, não existe nada específico para aprovação de uma lei dominical nacional. Mas isso pode mudar a qualquer momento.

MINISTÉRIO: Globalização parece ser a palavra do momento. O senhor acha que o fenômeno que ela representa favorece ou ameaça a unidade denominacional?

DR. SHEA: Eu vejo isso com um pouco de cuidado. Talvez o perigo seja a repetição do que aconteceu quando os gregos levaram sua cultura para o Oriente Médio, no fenômeno chamado helenismo, e o impacto causado sobre os judeus. A questão atual é: até que ponto nossa ado-ração e nosso culto estão sendo afetados por elementos culturais externos? No mo-mento, a Igreja Adventista ainda é uma igreja mundial. Mas a liderança da Associação Geral está atenta aos perigos. Existe o risco, por exemplo, de a Igreja no Zaire ficar independente. Isso aconteceu com a Igreja Metodista e pode acontecer conosco. A unidade administrativa ainda está intacta. Mas há o perigo de romper-se, em algum lugar.

A Rádio Mundial está alcançando um milhão de pessoas na China. São homens e mulheres que não poderiam ser alcançados de outra forma.

MINISTÉRIO: Mas o helenismo também favoreceu a pregação da Igreja primitiva. Não seria um fator positivo para a Missão Global?

DR. SHEA: No momento, a tecnologia moderna tende a nivelar as culturas do mundo. Por conseguinte, tende a favorecer o acesso da Igreja a todas as partes do mundo. A Rádio Mundial é um bom exemplo. Ela está alcançando um milhão de pessoas na China. São homens e mulheres que não poderiam ser alcançados de outra forma.

MINISTÉRIO: Esta é uma oportunidade para o senhor enviar uma mensagem especial à liderança da Igreja Adventista, no Brasil.

DR. SHEA: Fidelidade à Bíblia, nosso firme fundamento. Se a Igreja permanecer fiel às Escrituras, jamais se afastará dos caminhos de Deus. Foi esta a mensagem de Paulo a Timóteo: “Prega a Palavra.” Que se empenhe na pregação das três mensagens angélicas, com o poder do Espírito Santo. Temos uma mensagem especial, para um tempo especial, que precisa ser dada ao mundo. Finalmente, que pregue a verdade, em amor. Ellen White diz que não há maior argumento do que um amável e amorável cristão. Nem sempre o que falamos tem a força daquilo que vivemos. E mais uma coisa: apesar de todas as dificuldades, a Igreja não tem absoluta-mente nada a temer. O Espírito Santo está conosco. Cristo é nosso líder e já venceu Satanás. Basta-nos seguir os Seus passos vitoriosos.