A Reforma Protestante, impulsionada por Martinho Lutero, afirmava, com base nas Escrituras, que a salvação é recebida somente pela fé, sem a intervenção de obras humanas. Nas palavras do reformador: “A verdade do evangelho é que nossa justiça vem apenas pela fé, sem as obras da lei”.¹ Para Lutero, a salvação é um dom concedido unicamente pela graça de Deus (sola gratia), recebida mediante a fé no sacrifício de Cristo (sola fide). O ser humano, portanto, é declarado justo diante de Deus pela obra de Jesus, sem que haja qualquer mérito no pecador. Essa compreensão foi, para Lutero, a chave que deu origem à Reforma Protestante. Consequentemente, toda a sua teologia girava em torno da ideia de que as obras humanas não são necessárias para receber o dom da salvação.²
A história mostra que as igrejas protestantes seguiram os passos do reformador ao enfatizar a justificação pela fé como um evento na vida do pecador que não requer a intervenção de obras humanas, mas apenas a fé em Jesus.³ Em contrapartida, a Igreja Católica, por meio da Contrarreforma, sustentou que, além da fé no sacrifício de Cristo, a salvação também requer as obras humanas, sendo resultado de uma combinação entre graça e méritos.⁴ Essa divergência teológica gerou tensões que perduraram por séculos, sem que houvesse um diálogo sistemático capaz de resolver as diferenças doutrinárias.
Somente em 31 de outubro de 1999, por meio da Declaração Conjunta sobre a Doutrina da Justificação, assinada por católicos e luteranos, buscou-se estabelecer um marco teológico comum para superar décadas de controvérsias. Esse documento pretendia resolver a problemática em torno da Reforma iniciada por Lutero. Nele, reconhecia-se que católicos e luteranos deixavam para trás antigas disputas teológicas e buscavam construir uma visão ecumênica compartilhada sobre a justificação pela fé, abrindo caminho para novos estudos sobre o tema da salvação.⁵
Entretanto, o desenvolvimento desse diálogo não ocorreu da melhor maneira. Alguns luteranos e protestantes discordaram da iniciativa, argumentando que o tema da justificação pela fé era a pedra angular da Reforma e exigia um estudo mais profundo antes de qualquer decisão tão significativa. Naquele mesmo ano, o presidente da Igreja Luterana – Sínodo do Missouri chegou a dizer que a Declaração Conjunta era “lamentavelmente inadequada e enganosa e, o mais triste de tudo, uma traição ao evangelho de Jesus Cristo.”⁶
Por outro lado, no campo acadêmico protestante, o debate sobre a teologia paulina da salvação foi retomado por estudiosos como E. P. Sanders (1977)⁷, James D. G. Dunn (2008)⁸ e N. T. Wright (2009)⁹. Esse movimento, conhecido como “Nova Perspectiva sobre Paulo”, buscou interpretar, a partir do judaísmo do Segundo Templo, o conceito de salvação e situar a teologia paulina em seu contexto histórico e social, no qual o apóstolo desenvolveu sua compreensão do sacrifício de Cristo – um debate que permanece vivo até hoje nos meios acadêmicos.
No adventismo
Dentro do adventismo, a doutrina da justificação pela fé começou a ser sistematizada em 1888, quando Alonzo T. Jones e Ellet J. Waggoner apresentaram uma exposição sobre o tema na Assembleia da Associação Geral de Minneapolis. Seu ensino ofereceu à Igreja Adventista do Sétimo Dia uma nova perspectiva, centrada na justiça de Cristo em favor do pecador mediante a fé, e não em uma abordagem legalista baseada nas obras humanas.¹⁰
Após a Assembleia de 1888, Ellen White escreveu: “A luz que me foi dada por Deus coloca esse importante assunto [justificação pela fé] acima de qualquer dúvida em minha mente.”¹¹ Mesmo assim, ainda persistem em nosso meio questionamentos sobre a relação entre fé, obras e juízo. Por exemplo, na doutrina dos reformadores não existia o conceito de juízo investigativo, o que levanta a pergunta: Como conciliar a salvação pela fé com a existência de um juízo baseado nas obras?
Em 1976, um grupo de líderes adventistas abordou essa questão da seguinte forma: “Embora sejamos justificados pelos méritos do sangue de Cristo e por meio do instrumento da fé, também é verdade que as obras de obediência amorosa são a evidência de uma fé que salva. No juízo final, nossas obras de fé e de amor dão testemunho da realidade da fé justificadora e da nossa união com Cristo; no entanto, continuamos sendo salvos pela justificação através de Cristo, sem qualquer obra da lei, ou seja, sem obras que tenham mérito algum.”¹²
Essa afirmação não é estranha ao pensamento paulino. De fato, Paulo, em sua segunda carta aos Coríntios, refere-se a um juízo baseado nas obras ao afirmar que “todos devemos comparecer diante do tribunal de Cristo, para que cada um receba segundo o que tiver feito por meio do corpo, seja bem ou mal” (2Co 5:10). Essa mesma ideia aparece também na carta aos Romanos, que declara que “todos havemos de comparecer diante do tribunal de Cristo”, pois “cada um de nós prestará contas de si mesmo a Deus” (Rm 14:10-12).
Em outros textos, o apóstolo afirma que as obras não são necessárias para obter a salvação (Ef 2:8, 9; Gl 2:16). Ainda assim, apesar dessa declaração, ele mantém que todos compareceremos diante do tribunal de Cristo, no qual nossas obras serão avaliadas.
Declarações semelhantes também se encontram nos escritos de Ellen White, que afirmou: “Todos os que já professaram o nome de Cristo serão submetidos àquele exame minucioso. Tanto os vivos quanto os mortos devem ser ‘julgados, segundo as suas obras, conforme o que [se encontra] escrito nos livros.’”¹³
Mesmo assim, surge a pergunta: No contexto religioso do judaísmo, já existia uma noção de juízo baseado nas obras? E mais: Será que, para Paulo, essa ideia provinha de seu próprio pano de fundo judaico?
O Juízo pelas Obras no Judaísmo do Segundo Templo¹⁴
A noção de um juízo baseado nas obras não era estranha ao judaísmo do Segundo Templo; ao contrário, constituía parte essencial de seu pensamento religioso e escatológico. Essa ideia já se encontra em textos como a Mishná, que afirma: “Tudo é observado, e a liberdade é um dom concedido. O mundo será julgado com benevolência. Tudo será conforme a medida das ações. […] O juízo é justo e tudo está preparado para o banquete” (Avot 3:15, 16).¹⁵ Aqui se percebe claramente uma concepção na qual as ações humanas serão avaliadas em função de seu mérito moral.
Essa mesma perspectiva é evidente nos escritos pseudoepigráficos, como o livro de 1º Enoque, no qual se afirma que “as ações dos homens são pesadas em balanças” (1Enoque 41:2; 104:4-6), evocando a imagem de um juízo e de prestação de contas pelas obras. Do mesmo modo, em 4 Esdras encontra-se uma declaração semelhante: “Chega a hora em que a prova dos tempos será julgada sobre a Terra, e julgará todos os que agora vivem nela” (7:77), reforçando a ideia de um juízo universal baseado nas ações humanas.
Os documentos de Qumran também refletem essa visão. Textos como a Regra da Comunidade (1QS 3:13–4:26), o Documento de Damasco (CD 2:5-13) e o Rolo da Guerra (1QM) evidenciam uma teologia em que as obras desempenham um papel determinante no juízo escatológico e na separação entre justos e ímpios.¹⁶
Como se observa, no contexto do judaísmo do Segundo Templo, a expectativa de um juízo pelas obras não era incomum, mas amplamente compartilhada, constituindo um receptáculo literário de uma construção complexa fundamentada no Antigo Testamento (Dn 7:9-14). É justamente essa noção que o apóstolo Paulo retoma e reformula: embora proclame a justificação pela fé, não deixa de afirmar que todos compareceremos diante do tribunal de Cristo, no qual nossas obras serão examinadas (2Co 5:10). Assim, Paulo adota essa visão do juízo, mas a enquadra em sua cristologia e em sua escatologia centrada em Cristo. Surge, então, a questão: Qual é o lugar da justificação pela fé no juízo?
A Justificação pela Fé e o Juízo no Pensamento Paulino
A epístola aos Romanos enfatiza que a justificação pela fé não depende das obras humanas (Rm 3:20-22; 4:2-5), mas é obtida pela fé na justiça de Deus: “Concluímos, pois, que o homem é justificado pela fé, sem as obras da lei” (Rm 3:28). É interessante notar que a palavra traduzida como “concluímos” (logizomai) possui um sentido de cálculo – “processar, computar”,¹⁷ sendo, portanto, não uma conclusão exclusiva de Paulo, mas uma convicção compartilhada por todos os cristãos.
Na sequência, o apóstolo afirma que, a partir do ato de sermos declarados justos, ocorre uma transformação na relação do crente com Deus. Segundo Romanos 5:1, ao sermos justificados pela fé, “temos paz com Deus por meio de nosso Senhor Jesus Cristo”, o que indica que antes da justificação havia inimizade entre o ser humano e Deus, inimizade essa removida pelo sacrifício de Cristo. Assim, a justiça de Deus se manifesta plenamente em Jesus Cristo, que realiza a reconciliação com aqueles que são justificados, de modo que “agora, pois, nenhuma condenação há para os que estão em Cristo Jesus” (Rm 8:1).
Contudo, Paulo também declara que “cada um de nós prestará contas de si mesmo a Deus” (Rm 14:12), mostrando que, embora a justificação seja um ato gratuito e declarativo, há um juízo posterior no qual as obras dos crentes serão avaliadas. Essa tensão entre graça e responsabilidade moral mostra que, para Paulo, a salvação não se limita a uma declaração legal, mas envolve também uma experiência moral e transformadora. Consequentemente, a ideia de um juízo com base nas obras não contradiz a justificação pela fé, mas a complementa (Gl 6:7-9), pois as ações dos salvos refletem uma fé viva e servem como evidência de sua reconciliação com Deus.
Nesse sentido, a justificação não é apenas declarativa – ou seja, Deus reconhece o crente como justo mediante a justiça de Cristo –, mas também é comunicada e transformadora (Ef 4:25-32). Ao receberem o perdão e serem reconciliados, os crentes são capacitados a manifestar boas obras, pois foram “criados em Cristo Jesus para boas obras” (Ef 2:10). Essas obras não são a causa da salvação, mas a expressão natural de uma vida justificada – evidências concretas de uma fé ativa que serão apresentadas no tribunal de Cristo.
Portanto, a justificação pela fé cumpre um duplo propósito: restaurar o relacionamento entre Deus e o ser humano e preparar o crente para uma vida transformada, caracterizada pela obediência e pelas boas obras. A fé em Cristo garante a reconciliação, enquanto as obras refletem a realidade dessa fé e servirão como evidência no tribunal de Cristo, demonstrando a coerência entre a graça recebida e a vida de santificação.
Josué Gajardo, doutorando em Teologia pela Universidade Adventista do Prata, Argentina
Referências
1 Martin Luther, A Commentary on St. Paul’s Epistle to the Galatians (Grand Rapids, MI: Christian Classics Ethereal Library, 1939), p. 107.
2 Justo Gonzáles, Historia del Cristianismo (Miami: Editorial Caribe, 1994), v. 2, p. 22-38.
3 Kenneth Scott, Historia del Cristianismo (El Paso, TX: Casa Bautista de Publicaciones, 1959), v. 2, p. 345-376.
4 Joseph Pohle, “Justification”, The Catholic Encyclopedia (New York: Robert Appleton Company, 1910), v. 8, disponível em: <endereço removido>, acesso em 5/11/2025.
5 Anneliese Meis, “El Problema de la Salvación y Sus Mediaciones, en el Contexto de la Declaración Conjunta Católico-Luterana Sobre la Doctrina de la Justificación”, Teología y Vida 42 (2001), p. 89-121.
6 David Cloud, “Liberal Lutherans and Roman Catholics Agree to Deny the Gospel”, Publisher of Bible Study Materials (2021), disponível em: <endereço removido>, acesso em 5/11/2025.
7 E. P. Sanders, Paul and Palestinian Judaism: A Comparison of Patterns of Religion (Philadelphia: Fortress, 1977).
8 James D. G. Dunn, The New Perspective on Paul (Grand Rapids, MI: Eerdmans, 2008).
9 N. T. Wright, Justification: God’s Plan and Paul’s Vision (Downers Grove, IL: IVP, 2009).
10 “Todos pecaram e são culpados diante de Deus, e a única maneira de alguém escapar da condenação final é por meio da fé no sangue de Cristo.” E. J. Waggoner, The Gospel in the Book of Galatians: A Review (Oakland, CA: 1888), p. 6.
11 Ellen G. White, Fé e Obras (Tatuí, SP: Casa Publicadora Brasileira, 2022), p. 15.
12 Review and Herald, 27 de maio de 1976, p. 4, citado por Robert H. Pierson, “What is Righteousness by Faith?”, Ministry 2 (1977), p. 9.
13 Ellen G. White, Maranata, o Senhor Logo Vem! (Tatuí, SP: Casa Publicadora Brasileira, 2021), p. 249.
14 O período do Segundo Templo deve ser visto como uma unidade “delimitada, de um lado, pelo chamado período do exílio e, de outro, por Yavne, o período entre as duas guerras contra Roma (66–70 e 132–135 d.C.” (Lester L. Grabbe, A History of the Jew and Judaism in the Second Temple Period [London: T&T Clark, 2004], p. 2).
15 Carlos del Valle (ed.), La Misná (Madrid: Editorial Trotta, 1981), p. 846.
16 Florentino G. Martínez, The Dead Sea Scrolls Translated: The Qumran Texts in English (Leiden, NL: Brill, 1994).
17 William Arndt, A Greek-English Lexicon of the New Testament and Other Early Christian Literature (Chicago: University of Chicago Press, 2000), p. 597.
