Pode a doutrina do juízo investigativo ser reconciliada com a mensagem de 1888?

Historicamente, os adventistas têm entendido o juízo investigativo como representando a segunda e final fase do ministério sacerdotal de Cristo em favor da humanidade. O juízo, atualmente em sessão, envolve o exame individual do professo povo de Deus, mortos e vivos.

Provavelmente, nenhuma outra doutrina ensinada pelos Adventistas do Sétimo Dia tenha ocasionado mais ridículo e desdém do que a do juízo investigativo. Virtualmente todos os teólogos não adventistas reagem negativamente. Mesmo na Igreja Adventista, líderes preeminentes têm, de tempos em tempos, expresso fortes dúvidas sobre o conceito.1

Essa reação negativa parece surgir da percepção de que um juízo investigativo desaparece diante da justificação pela fé e da certeza do cristão. Este foi o caso do destituído ministro evangelista adventista, Albion fox Ballenger (1861-1921)2

A experiência de Ballenger é interessante neste ano de aniversário. Por alguma circunstância, ele iniciou seu ministério na Igreja Adventista nos anos 1880. E embora seja difícil dizer com certeza até onde foi ele influenciado pelo debate da justificação de 1888, é fora de dúvida que foi esta doutrina que finalmente veio a dominar a sua teologia.3

Mas enquanto o debate de 1888 tinha que ver com o realce antagônico ou rival sobre lei versus graça, a preocupação de Ballenger com a justificação pela fé tinha pouco que ver, se é que tinha alguma coisa, com um exagerado realce adventista sobre a lei. “Sua denúncia se baseava, antes, na compreensão do adventismo da doutrina do santuário… ” Para ele, isto era o cerne do legalismo adventista.4

Por conseguinte, quando ele levou a efeito sua interpretação radical da doutrina adventista do santuário, fê-lo para erradicar todos os elementos do legalismo. Curiosamente, apenas com uma exceção, ele reteve todos os principais componentes da teologia tradicional adventista do santuário. A exceção: o juízo investigativo. Este ensinamento ele repudiou por completo.5 Como outros críticos dessa doutrina adventista, ele a achava totalmente contrária à justificação pela fé e à certeza do cristão.

Avaliação rudimentar da crítica

Os Adventistas do Sétimo Dia são antigos alvos da oposição e do ridículo; e os críticos têm sido repetidas vezes frustrados por nossa habilidade para absorver suas afrontas teológicas. A Igreja faz ouvidos moucos especialmente quando a crítica é fundamentalmente falha, como neste caso. Pois se o conceito de um juízo investigativo é contrário à justificação pela fé e à certeza do cristão, então, ipso facto, a noção de juízo, por si, também deve ser.

Como, porém, pode alguém negar em sã consciência que o juízo é um ensino fundamental do Novo Testamento? Notai como o conceito emerge claramente destes textos: “Porque, se pecarmos voluntariamente, depois de termos recebido o conhecimento da verdade, já não resta mais sacrifício pelos pecados, mas uma certa expectação horrível de juízo, e ardor de fogo, que há de devorar os adversários…. Porque bem conhecemos Aquele que disse: Minha é a vingança, Eu darei a recompensa, diz o Senhor. E outra vez: O Senhor julgará o Seu povo” (Heb. 10:26, 27 e 30).*

“Porque todos devemos comparecer ante o tribunal de Cristo, para que cada um receba segundo o que tiver feito por meio do corpo, ou bem, ou mal” (II Cor. 5:10).

“Porque já é tempo que comece o julgamento pela casa de Deus; e, se primeiro começa por nós, qual será o fim daqueles que são desobedientes ao evangelho de Deus?” (I Ped. 4:17).

* Todas as citações são da Almeida Revista e Corrigida.

Se nossa necessidade de certeza ou nosso realce sobre a justificação pela fé, por mais válidos que sejam, obscurecem o ensino bíblico do juízo, então permitimos que eles se tornassem uma obsessão. A justificação pela fé e a certeza cristã são, deveras, ensinos fundamentais do Novo Testamento. Mas o juízo também o é. Nada lucramos, seja teológica ou experimentalmente, por tentar negar ou neutralizar qualquer deles.

Como teólogos e estudiosos da Bíblia, não criamos a teologia; descobrimo-la. Isto significa que paramos (ou melhor, ajoelhamo-nos) diante da Palavra, sem preconceito, e ouvimos. Permitir que um realce bíblico domine nosso pensamento a ponto de tornar-se uma prova tornassol da validade de todos os outros, é provocar a interrupção do processo de dar atenção. Esta foi a obsessão que levou Martinho Lutero, o grande reformador, a recusar o livro de Tiago.

A maturidade teológica procura manter o equilíbrio (às vezes na animosidade) os vários temas bíblicos fundamentais. Assim, embora a justificação pela fé seja importante, e desejável a certeza cristã, não podemos omitir o juízo e continuar fiéis às Escrituras.

Entendendo nossos críticos

À luz das inequívocas afirmações do Novo Testamento sobre o juízo, por que as contínuas e vigorosas críticas à posição adventista? Nossa observação neste ponto, sugere duas possíveis razões, ambas essencialmente psicológicas.

A primeira relaciona-se com a natureza contemporânea do juízo investigativo. O veterano advogado Louis Nizer lembra que “na manhã de julgamento, todo indício físico de perturbação insuportável torna-se claro. As mãos tornam-se pegajosas, a testa… enrugada, a face… enrubescida ou ligeiramente pálida, os olhos… com bordos avermelhados, a voz… rouquenha, há bocejos artificiais, lábios ressecados e… freqüentes visitas ao banheiro.”6

Os adventistas sempre ensinaram que o juízo está em sessão agora, um anúncio potencialmente irritante para alguém que já foi citado a comparecer à sala de uma corte humana, e que ainda se lembra da voz estridente do escrivão chamando a todos para se levantarem quando o julgamento se inicia. Um juízo no final do tempo ou depois do milênio não tem o mesmo impacto psicológico. A distância tem a tendência de diminuir o temor a ele. Menos perturbadora ainda é a invenção teológica que põe este juízo na cruz — muito tempo atrás e muito distante.

Mas um juízo em sessão agora! Isto é ameaçador!

A segunda razão está intimamente ligada à primeira, e gira em torno da palavra investigativo. Ligada à natureza contemporânea do acontecimento, esta palavra evoca a imagem dos cristãos sob vigilância por um órgão de investigação celestial de capa e espada, que gira os ponteiros do relógio.7

Para aumentar ainda mais a tensão, alguns pregadores adventistas têm insinuado que a qualquer momento que esse tribunal celestial se ocupa do caso de qualquer pessoa viva, isto se torna em um juízo final, e nesse instante termina o período de graça para esse indivíduo. Se isto se der num momento em que houve indulgência com o mais leve pecado ou má ação na vida, a pessoa estará perdida para sempre.8 É interessante notar que este era o ponto de vista defendido por Ballenger sobre o juízo investigativo, antes que ele rejeitasse a doutrina como um todo.9

Nem sempre tem sido fácil dar uma demonstração correta das Escrituras sobre a noção de um juízo investigativo. Não obstante, o conceito de uma decisão pré-advento permeia completamente o apocalíptico bíblico.

Por exemplo, em Daniel 12:1, somos informados de um tempo escatológico de crise, do qual só os que “forem achados escritos no livro” serão livrados. E na contagem apocalíptica de Mateus, aprendemos que, no tempo da parousia, um alto som de trombeta ajunta os “escolhidos desde os quatro ventos” (São Mat. 24:30 e 31). O contexto destas duas passagens implica clara-mente uma decisão antecipada da situação espiritual desses indivíduos.

Em Apocalipse 16, as sete últimas pragas, à semelhança de mísseis teleguiados, perseguem apenas aqueles que têm “o sinal da besta”. Obviamente, foi necessário um assentamento antecipado, a fim de afixar “legalmente” a marca em uns e em outros não.

locus classicus de um juízo pré-advento é Daniel 7. Nessa passagem apocalíptica, o profeta observa em visão as atividades perversas da ponta pequena sobre a Terra e, simultaneamente, vê uma cena de juízo no Céu. Ele se volta da Terra para o Céu, estudando aquelas duas cenas notáveis, até que a ponta pequena é destruída e o juízo dado aos santos (Dan. 7:22). Em sua tese recente, Arthur Ferch demonstrou com sucesso que essas duas atividades ocorrem no tempo histórico, e que portanto, o juízo de Daniel 7 é pré-adventista.10

Não se deve antecipar o inútil argumento de que uma vez que Deus sabe todas as coisas, o conceito de um juízo pré-advento é especulativo e desnecessário. Semelhante maneira de pensar, levada a suas conclusões lógicas, rejeita toda a noção bíblica do juízo. Ela advém de uma superficialidade teológica que não pode conceber mundos e sistemas de inteligências criados além do nosso próprio; que, se o Universo quiser estar seguro, deve estar satisfeito com a integridade da escolha de Deus. E o grande conflito gira em torno do fato de que nem todas estas inteligências são amistosas.

Ampliando o escopo do juízo

Os primeiros adventistas bem podem ter achado a expressão juízo investigativo suficiente, em parte, por causa de seu próprio conceito limitado da natureza e escopo da atividade envolvida. Eles percebiam apenas o aspecto subjetivo desse juízo, que se relaciona com nossa situação pessoal diante de Deus. E, da mesma forma como a preocupação com a justificação, pela fé cega alguns para o realce bíblico sobre o juízo, sua preocupação com este aspecto do juízo cegou-os para seus outros componentes importantes.

Colocando-se, como o fazem, sobre os ombros desses pioneiros, os teólogos adventistas contemporâneos têm-se tornado cada vez mais conscientes do escopo universal da atividade do juízo. Esta convicção os tem levado a perguntar se a palavra investigativo é suficientemente compreensível para descrevê-lo.

Isto se torna claro especialmente a partir da consideração sobre Daniel 7. A ponta pequena de que fala este capítulo é, claramente, o principal objeto do juízo. Por si só, este fato é suficiente para mostrar que este juízo tem um quadro muito mais amplo de referência do que nossos pioneiros eram capazes de ver em sua época.

As dimensões se ampliam ainda mais quando se comparam as atividades descritas em Daniel 7 com as de Apocalipse 12-14.11 Tal comparação torna claro:

1) Que este juízo é posterior à cruz, vindo, portanto, após o fim dos 42 meses ou 1.260 anos mencionados nos dois relatos; e

2) que seu escopo é universal.

Apocalipse 12 e 13 desmascara o poder que acompanha a besta (a ponta pequena de Daniel 7), descrevendo-o como o dragão, a “antiga serpente, chamada o diabo, e Satanás, que engana todo o mundo.” (12:7-9; cf. 13:1-3). Através de seus atos, este gênio do mal profere blasfêmias contra Deus, contra o nome de Deus, contra o santuário de Deus e os que habitam no Céu (Apoc. 13:6). Em outras palavras, o próprio Deus é acusado! E aqui está o aspecto do juízo que nossos pioneiros não viam claramente — o lado objetivo.

Com efeito, este juízo separa os santos de Deus das multidões que Lhe usam falsamente o nome e, nesse sentido, pode ser chamado “investigativo”. Tende em mente que nessa grande sessão os “livros” são abertos. Além disso, seja o que for que isto signifique, a ideia de avaliação, de escrutínio, de investigação, se me permitis, não pode ser ignorada. “Nem todo o que Me diz: Senhor, Senhor! entrará no reino dos Céus, mas aquele que faz a vontade de Meu Pai, que está nos Céus” (S. Mat. 7:21). A avaliação é parte indispensável desse juízo, e foi este aspecto que impressionou os nossos pioneiros. Perturbador? Sim. Mas era dessa aflição de alma que tratava o Yom Kippur (Lev. 23:26-32).

O escopo deste juízo, porém, é muito mais amplo. A vindicação é a sua principal preocupação — vindicação do santuário de Deus, vindicação do nome de Deus, vindicação do povo de Deus.

Naturalmente, não podemos imaginar todas as ramificações desse juízo. Seu ponto focal, porém, é certamente o santuário celestial, o trono da lei e do governo de Deus, o centro nevrálgico da salvação humana. Sobre esta vindicação paira a segurança do Universo. Daí, o significado teológico desta declaração enigmática de Daniel 8:14: “Até dois mil e trezentos dias, então o santuário será purificado’’ (Versão King James).

Esta mensagem do dia de juízo é difícil de ser aceita pelos que estudam a teologia evangélica hoje. Mas é uma mensagem que leva na mais alta conta a realidade como a conhecemos por meio da experiência e da revelação.

Anterior ao segundo advento, o juízo agora em sessão esclarece a questão do amor e da justiça de Deus. Ele confirma a validade e legalidade do plano da salvação, e leva em sua sentença a vindicação final do povo de Deus. É nesse contexto que entendemos o brado de júbilo do mensageiro celestial: “Alegra-te sobre ela, ó Céu, e vós, santos apóstolos e profetas; porque já Deus julgou a vossa causa quanto a ela’’ (Apoc. 18:20).

Que segurança! Que certeza!

Questionário:

1. Por que acham alguns que o conceito adventista de um juízo investigativo é incompatível com a justificação pela fé?

2. Como relacionaríeis a justificação pela fé e o juízo?

3. Que apoio bíblico há para um juízo investigativo ou pré-advento?

4. Como Adams mostra, os primeiros adventistas pensavam que apenas as pessoas que professaram obediência a Deus em alguma época de suas vidas fossem rés no juízo investigativo. Em tempos recentes, as publicações e o ensino adventista têm sugerido que, neste juízo, também o próprio Deus deve ser vindicado. Deveríamos limitar nossas crenças doutrinárias às que foram defendidas pelos pioneiros adventistas — ou são legítimos o desenvolvimento e a mudança de realce? Se achais que as mudanças são naturais, que limites imporíeis a essas mudanças?

5. Em que sentido está o juízo investigativo relacionado com o santuário?

1. Desmond Ford tem uma lista de todas as obras adventistas sobre a doutrina, a respeito das quais ele alega ter feito sérias restrições. Ver Desmond Ford, “Daniel 8:14, The Day of Atonement and lnvestigative Judgement” (Manusc. Não Publicado, 1980), págs. 47-147 passim. O próprio Ford diz francamente que a doutrina não está na Bíblia. (Idem, pág. 14.)

2. Roy Adams, The Sanctuary Doctrine: Three Approaches in the Sevent-day Adventist Church (Berrien Springs. Michigan: Andrews University Press, 1981), págs. 104-107, 135-140. Cf. Ford, pág. 42.

3. Adams, págs. 104-107.

4. Idem, pág. 107.

5. Idem, pág. 136.

6. Louis Nizer, My Life in Court (Nova Iorque: Pyramid Publications, Inc., 1944), pág. 39.

7. E a expressão conhecida? Esta é uma questão delicada. Ela soa muito como brincar com os fundamentos. Mas o termo investigativo não é inteiramente indispensável para tornar a questão favorável à doutrina — os pioneiros foram capazes de fazer isso por vários anos sem ele.

A expressão juízo investigativo parece ter sido usada em primeiro lugar por Elion Everts em uma carta ao editor de Review de 17 de dezembro de 1856, e publicada no número de 1 de janeiro de 1857 (Paul Gordon, The Sanctuary, 1844, and the Pioners (Was-hington, D.C.: Review and Herald Pub. Assn., 1983, pág. 87). Quatro semanas depois, Tiago White usou a terminologia em um artigo, e logo ela passou ao uso geral entre os primeiros adventistas, entre os quais, naturalmente, Ellen G. White. Era preciso uma expressão conveniente, e nem todos estavam satisfeitos com ela. Uriah Smith sugeriu que ele mudaria para uma terminologia mais apropriada se esta pudesse ser encontrada (Adams, pág. 81, nº 3).

A expressão pré-advento seria um bom substituto (ver idem, págs. 260-262). Quatro razões:

I. Aceitação na igreja. O pré-advento já foi provado — a expressão esteve em uso em círculos adventistas nos últimos 27 anos (ver W. E. Read, Doctrinal Discussions (Washington, D.C.: Review and Herald, n. d.) capítu-los III e IV), e sua aceitação está crescendo entre o adventismo contemporâneo.

II. Apologéticos. O pré-advento evita a desnecessária bandeira vermelha de nossos críticos que o investigativo parece envolver.

Contudo, surge um ponto importante: este juízo especial precede a parousia.

III. Facilidade de demonstração. Nem sempre tem sido fácil apresentar pelas Escrituras uma demonstração coerente da noção própria de um juízo investigativo. Todavia, como salienta o meu artigo, o conceito de uma decisão pré-advento permeia completamente o apocalíptico bíblico.

IV. Propriedade de linguagem. Como sugere o meu artigo, investigativo pode ser uma palavra muito limitada para este juízo. O pré-advento oferece um escopo mais amplo, que inclui conceitos construídos sobre o fundamento que o juízo investigativo dos pioneiros derribou.

8. Esta interpretação assustadora, que ouvimos do púlpito recentemente na reunião campal de verão, infelizmente não pode ser substituída no adventismo autêntico.

9. Adams, págs. 135 e 136.

10. Para um resumo destas constatações, ver Arthur Ferch, “The Pré-Advent Judgment”, Adventist Review, 30 de outubro de 1980, págs. 4-6.

11. Que estas duas seções apocalípticas das Escrituras são paralelas e complementares é fora de dúvida: Por exemplo:

a. Em Daniel 7:25, os santos de Deus são perseguidos “por um tempo, tempos, e metade de um tempo”. Ao mesmo tempo, Apocalipse 12:14 descreve a mulher, por causa da perseguição, fugindo para o deserto “por um tempo, e tempos, e metade de um tempo”.

b. Em Daniel 7:25, a ponta pequena profere palavras “contra o Altíssimo” e continua por três tempos e meio (ou 42 meses). Em Apocalipse 13:5, a besta profere “grandes coisas e blasfêmias” contra Deus, e continua “por quarenta e dois meses”.

c. Em Daniel 7:25, a ponta pequena procura mudar os tempos e a lei. Em Apocalipse 12:17 o dragão se ira contra os que guardam a lei de Deus.

d. Em Daniel 7:22, 25-27, a perseguição do povo de Deus é seguida pelo julgamento contra seu perseguidor e uma decisão a seu favor. Em Apocalipse 14:6 em diante, é anunciado o juízo contra os perseguidores, e apresentada uma decisão em favor dos santos (versos 12 e 13).

ROY ADAMS — Secretário Associado da Associação União Canadense dos Adventista do Sétimo Dia