“As pessoas não se importam se existe ou não um santuário no Céu, ou se os dias da criação são literais ou não. Tampouco precisam aprender sobre o sábado, o juízo investigativo ou coisas do tipo. As pessoas querem ouvir sobre Jesus, não sobre doutrinas.”

Essas e outras afirmações semelhantes são ouvidas frequentemente em reuniões de estudo, congressos bíblicos, nos cultos e em diferentes meios de comunicação. Ainda que com retóricas diferentes, todas parecem apontar para a mesma ideia: doutrinas bíblicas não são importantes, somente Cristo e Seu amor é que realmente importam.

É Jesus realmente mais importante que as doutrinas? Para responder a essa pergunta, temos que começar pelo essencial. O que se entende por doutrina? Por que as igrejas formulam doutrinas?

O que é uma doutrina?

Dicionário Houaiss define “doutrina” como o “conjunto das ideias básicas contidas num sistema filosófico, político, religioso, econômico […] a serem transmitidas, ensinadas”.1

A doutrina se desenvolve diante da necessidade de ­formular alguma ideia que precisa ser crida e compartilhada. Por serem ideias ou opiniões individuais ou coletivas sobre diversos âmbitos da vida, elas podem ser estruturadas de forma simples ou mais complexa. Os níveis de significados variam de acordo com o contexto.

O nível mais simples é como o dicionário o definiu. Se assemelham a opiniões sobre um tema e pretendem ter validade universal. Em um nível intermediário, podem se referir a um conjunto de declarações mantidas por algum grupo ou instituição. Essas declarações podem ir se refinando com o tempo. Finalmente, em um sentido mais rigoroso, são expressões infalíveis estabelecidas por um corpo oficial, seja este político ou religioso, que determina a identidade do grupo ou da entidade. Nesse caso, também são conhecidas como dogmas.2

O que a Bíblia afirma sobre a doutrina?

Aqueles que subestimam a importância de um sistema doutrinário para o cristianismo atual desconhecem ou ignoram o valor que o Antigo e o Novo Testamento deram aos ensinamentos autoritativos. De fato, a prática de instruir e ensinar era bastante comum para o povo de Deus.

Se olhar com atenção, o leitor perceberá que acabo de equiparar doutrina a ensinamentos autoritativos e ­instruções. Por que fiz isso? Bem, em matéria de teologia e ­religião, “uma doutrina é tudo o que a Bíblia nos ensina hoje sobre um tema específico”.3 “É uma declaração de crença que um grupo de crentes faz e considera verdadeira.” E, como bem assinala John M. Fowler, “nenhum corpo religioso pode existir ou começar a funcionar sem um sistema doutrinário central que seja aceito pelos adeptos desse corpo”.4

Então, o que a Bíblia tem a nos dizer sobre esse tema? No Antigo Testamento, descobrimos que o Pentateuco é o ma­nual de doutrina ou de ensinamentos para o povo de Israel. É um documento autoritativo para sua teologia e práxis. É referido como “lei” (Dt 1:5), “livro desta lei” (Dt 28:61), “livro da lei de Moisés” (Js 8:31), “lei de Moisés” (Js 8:32), “livro da lei de Deus” (Js 24:26), “lei do Senhor” (2Rs 10:31) ou “livro da lei do Senhor” (Ne 9:3). Na Bíblia hebraica, esse conjunto de princípios e normas comportamentais é conhecido como Torá. Embora essa palavra seja muitas vezes traduzida como lei, vai além de um mero código legal, porque também significa direção, instrução e ensino.

Por outro lado, o Novo Testamento em reiteradas ocasiões destaca a importância da doutrina correta (Rm 16:17; 1Tm 6:3, 4; Tt 1:9; Tt 2:1). Os escritores neotestamentários usaram dois vocábulos gregos para se referir a ela: didachē e didaskalia. Em ambos os casos, o “significado vai desde o ato de ensinar (transmitir) e exercitar, até a ‘pregação’ que se pretende manter em nível elevado e solene, mas que pode significar a transmissão de um conjunto de ensinamentos já estabelecidos”.5 Dessa forma, esses termos real­çam a necessidade de ensinar e aprender.

Igreja e doutrinas

O livro de Atos relata que a igreja apostólica perseverava na doutrina e no ensino dos apóstolos (At 2:42). Eles tinham um ensinamento que foi analisado pelo Sinédrio de Jerusalém (At 5:28) e que até ­maravilhava as autoridades ­seculares (At 13:12). Por outro lado, é também importante reconhecer que, guiados pelo Espírito Santo, os apóstolos revitalizaram os ensinamentos das Escrituras hebraicas e que tinham sido restaurados pelo próprio Senhor Jesus durante Seu ministério terrestre (Lc 24:27, 44).

Eles realizaram esse grande trabalho porque nos tempos apostólicos os falsos ensinamentos já estavam brotando rapidamente e estavam influenciando a igreja nascente. Essas falsas doutrinas foram referidas por Paulo como “doutrinas de homens” (Cl 2:22), “fábulas e genealogias sem fim” (1Tm 1:4), “discussões inúteis” (v. 6) e “ensinos de demônios” (1Tm 4:1), entre outros.

Por isso, Paulo exortou o jovem Timóteo a se manter “alimentado com as palavras da fé e da boa doutrina” (1Tm 4:6). Além disso, exortou-o à “leitura pública das Escrituras, à exortação, ao ensino” (v. 13).

Doutrinas podem afetar negativamente a vida?

Quando eu cursava o primeiro ano de Teologia no Seminário, eu conversava regularmente com um colega que me havia confessado que tinha vindo ao Seminário em busca de respostas, pois se sentia frustrado por não encontrá-las nas outras denominações que havia visitado. Confessou-me que certas doutrinas de alguns movimentos religiosos lhe produziam uma “esquizofrenia” espiritual. A primeira doutrina tinha que ver com Jesus Cristo. Comentou que lhe ensinaram que Jesus Cristo não era Deus igual ao Pai, mas um deus menor criado pelo Pai.

Meu colega estava confuso, porque se Jesus era um ser criado, sua morte na cruz não seria suficiente para salvar todos os pecadores. Pedi-lhe que lesse Isaías 43:10. Eu lhe contei que alguns estabeleciam doutrinas tomando como base apenas alguns textos da Bíblia, ignorando o contexto maior ou o restante do cânon bíblico. Ao ler Isaías, esse amigo percebeu que o próprio Deus disse: “Antes de Mim deus nenhum se formou, e depois de Mim nenhum haverá.” Então, eu lhe perguntei: “Como é possível que alguns ensinem que Cristo é um deus menor e um ser criado, se o próprio Senhor diz que não houve nem há outro Deus fora Ele?” Se Jesus foi realmente criado, o ensino bíblico sobre a Trindade está errado.

Portanto, se um ensinamento que pretende ser bíblico não se harmoniza com as Escrituras, ele não é correto e deve ser rejeitado. Aquilo que cremos sempre tem um impacto no que fazemos; por isso, doutrinas não são simples questões teóricas. Pelo contrário, elas influenciam direta e indiretamente nossa experiência de vida.

Cristo e as doutrinas

Ora, “é verdade que a Escritura não é um livro-texto de Teologia Sistemática. Também é verdade que Jesus não nos deixou uma série de estudos sobre temas bíblicos”.6 No entanto, isso não significa que Jesus não tenha Se preocupado com os ensinamentos bíblicos. Em realidade, Ele “manteve-as, defendeu-as, mostrou sua beleza e promoveu novas perspectivas”. Então, ante a insistente pergunta do que é importante – Cristo ou as doutrinas? –, devemos responder afirmativamente de que é impossível separar Um das outras. Acho que são dois lados da mesma moeda.

Jesus Se dedicava a ensinar sobre o reino de Deus (Mt 3:2; Mt 4:23; Mc 4:26; Lc 4:43) e as pessoas se maravilhavam com Sua doutrina (Mt 7:28; Mt 22:23; Mc 1:22; Mc 11:18). Ainda que, para alguns, os ensinamentos de Cristo fossem “novos” (Mc 1:27), já que contradiziam os ensinamentos dos fariseus (Mt 15:9; Mc 7:7), o que Ele ensinava não era outra coisa senão os preceitos revelados por Deus nas Escrituras hebraicas (Mt 5:17; Mt 26:56; Mc 14:49).

Antes de ascender aos céus, Jesus pediu a Seus discípulos que ensinassem os “novos discípulos a obedecerem a todas as ordens” que Ele lhes havia dado (Mt 28:20, NVT). Se doutrinas não fossem importantes, por que Jesus confiaria o trabalho do ensino aos discípulos? Além disso, já que Jesus é o personagem central da Escritura, que aconteceria se O deixássemos fora dos ensinamentos/doutrinas bíblicas? Como poderíamos obter o perdão dos nossos pecados? Que sentido teria a morte na cruz, a ascensão e o retorno de Cristo? Nenhum dos ensinamentos cristãos faria sentido sem Cristo. A humanidade encontra sua razão de ser Naquele que venceu Satanás, o pecado e a morte.

Portanto, é importante compreender que as doutrinas têm a finalidade de ajudar os crentes sinceros a fortalecer sua relação com Jesus conforme aquilo que foi estabelecido pela própria Revelação divina. Nessa linha de ­raciocínio, os editores do livro Nisto Cremos afirmaram: “Escrevemos este livro sob a profunda convicção de que todas as doutrinas, quando corretamente compreendidas, centralizam-se Nele, ‘o Caminho, e a Verdade, e a Vida’ (Jo 14:6), o que as torna extremamente importantes.”7

Salvador e Senhor

É bastante atraente falar do amor de Deus e enfatizar que Ele nos ama. Sim, Deus nos ama e deseja nos salvar. Não deveria haver dúvida quanto a isso. No entanto, essa crença pode ser distorcida por uma experiência religiosa de pouco ou nenhum compromisso. Por saberem que Deus os ama, muitos acreditam que Ele não lhes exigirá nada.

Esse conceito se tornou muito popular no cristianismo atual. No entanto, aqueles que buscam uma experiência com Jesus como Salvador, e não estão dispostos a aceitá-Lo como Senhor, devem se lembrar do que a Escritura diz a respeito. “Se alguém diz: ‘Eu O conheço’, mas não obedece a Seus mandamentos, é mentiroso e a verdade não está nele” (1Jo 2:4, NVT). Aceitar Jesus como Senhor significa obedecer-Lhe.

O que devemos fazer para nos mantermos unidos ao Senhor? Posso destacar duas coisas:

1) Estabelecer um compromisso com os ensinamentos de Jesus, segui-Lo e deixar-se transformar por Ele. Paulo nos lembra: “Não imitem o comportamento e os costumes deste mundo, mas deixem que Deus os transforme por meio de uma mudança em seu modo de pensar, a fim de que experimentem a boa, agradável e perfeita vontade de Deus para vocês” (Rm 12:2, NVT).

2) Recordar o que Jesus disse: “Nem todo o que Me diz: ‘Senhor, Senhor!’ entrará no Reino dos Céus, mas aquele que faz a vontade de Meu Pai, que está nos céus” (Mt 7:21).

Conclusão

Doutrinas sempre foram de grande relevância para o povo de Deus. Jesus as restaurou durante Seu ministério terrestre e os apóstolos as revitalizaram.

A cultura pós-moderna, no entanto, tem subestimado a importância das doutrinas bíblicas, ou simplesmente as rejeitou por completo. Como resultado, muitos cristãos sinceros adotam práticas contrárias à sã doutrina estabelecida pela Bíblia, ou enfatizam certos ensinamentos de forma aleatória.

Esse é o caso daqueles que dizem: “Eu não preciso de doutrinas. Tudo de que preciso é amor.” Sem doutrinas, a igreja corre o risco de perder sua identidade e missão, e se transformar em um clube ou centro cultural. Além disso, os membros da igreja estarão mais expostos “a espíritos enganadores e doutrinas de demônios” (1Tm 4:1). Por isso, mediante as doutrinas, a Igreja Adventista do Sétimo Dia busca o crescimento teológico e uma vivência que leve seus membros à unidade na fé e ao cumprimento da missão no cenário escatológico que a define como remanescente. Estou convencido de que as doutrinas devem ser cristocêntricas e devem nos conduzir a uma prática coerente. Assim, somos chamados a ter uma relação genuína com Jesus e a aceitar e obedecer Seus ensinamentos. 

Joel Iparraguirre, pastor e editor da Safeliz, na Espanha

Referências