Apesar dos críticos, podemos continuar acreditando na interpretação tradicional

Durante séculos, o rei da Babilônia apresentado em Isaías 14 tem sido interpretado como sendo Satanás, e os versos 12-14 do capítulo como a história de sua queda do Céu. Entretanto, nos últimos 200 anos, essa interpretação perdeu popularidade entre estudiosos devido ao surgimento de novas formas de abordar o texto bíblico. Achados arqueológicos têm contribuído de maneira significativa para o abandono da leitura tradicional, levando muitos a buscar explicações em fontes extrabíblicas. Vários cristãos, porém, continuam utilizando essa passagem para explicar as origens do mal e a noção de que Satanás era chamado de Lúcifer antes de sua queda. Tal interpretação seria apoiada pelo texto bíblico?

O cântico

O começo do capítulo explica as circunstâncias sob as quais o cântico deve ser lembrado: “No dia em que Deus vier a dar-te descanso do teu trabalho, das tuas angústias e da dura servidão com que te fizeram servir” (Is 14:3). O retorno do exílio babilônico ainda estava mais de um
século no futuro,1 quando o decreto de Ciro permitiria a reconstrução de Jerusalém. No entanto, considerando que o cumprimento dos versos 1-2 foi apenas parcial e as conotações do “descanso” prometido mais profundas, é possível que o cântico se estenda para muito além de sua situação histórica.

A introdução do cântico informa ao leitor que o Senhor prometeu um repouso a Seu povo. A canção, então, relata de que modo Ele cumprirá Sua promessa. No verso 4, a construção “proferir + motejo + dizer” carrega conotações negativas e introduz uma advertência profética,2 indicando que Deus realizará Seus propósitos destruindo o rei da Babilônia. O cântico de Isaías 14 segue o padrão de um canto fúnebre,3 mas, ironicamente, após o Senhor derrotar os dominadores perversos e o rei da Babilônia quebrando sua vara e seu cetro (v. 4-6), a terra irrompe em júbilo (v. 7), uma ocasião alegre para o povo de Deus.4 O Senhor está novamente ativo na conclusão do cântico, no qual Isaías repete a ideia de que a destruição do rei foi resultado do juízo divino (v. 22-23). Assim, as ações divinas criam uma moldura em torno do poema, enfatizando que Deus é fiel em cumprir Sua promessa de dar descanso a Seu povo.

O cântico é quase inteiramente construído usando-se paralelismos. A maioria dos paralelos são entre dois elementos, um explicando o outro. No verso 5, por exemplo, não se apresentam apenas os “perversos”, mas os “dominadores” perversos. Esse tipo de paralelismo é encontrado tanto em unidades menores quanto em maiores.5 Isso se torna relevante para a compreensão do escopo do cântico, quando observamos as mudanças de perspectiva dentro do poema:

VersosPerspectivaFoco
4-7Terceira pessoaDominadores perversos
8-12Segunda pessoa singularO rei da perspectiva de outros
13-14Primeira pessoa singularDesejos íntimos do rei
15-20Segunda pessoa singularO rei da perspectiva de outros
21-23Terceira pessoaDescendentes do rei

Uma discussão interessante surge quando colocamos ambas as seções em terceira pessoa em paralelo. Nos versos iniciais, a impressão que o leitor tem é de que Deus está lidando com os dominadores perversos em geral, trazendo paz à Terra inteira (v. 7). Na seção final, porém, o sujeito que recebe o juízo é mais específico: os descendentes do rei. A questão é: qual seria a relação entre ambos os grupos? O segundo grupo está incluso no primeiro, de dominadores perversos, ou ambos estão em paralelo? Aplicando o mesmo princípio de paralelismo encontrado em unidades menores do poema, chega-se
à conclusão de que os grupos se complementam, reforçando a ideia de que os dominadores perversos mencionados nos versos 4-7 são os mesmos descendentes do rei que são julgados nos versos 21-23. Isso implica que todos os dominadores perversos da terra estão, de alguma forma, diretamente ligados ao rei da Babilônia ou influenciados por ele. A noção de que Deus está destruindo o poder dos dominadores e inimigos em geral, todos considerados “descendentes” do rei, aponta para uma perspectiva universal na qual a opressão e a tirania serão completamente aniquiladas.7

Observando o movimento e o espaço dentro do poema, duas dimensões vêm à tona. Primeiramente, a palavra “terra” permeia todo o cântico.8 Adicionando seus sinônimos “nações” e “mundo”, alcançamos um total de 12 ocorrências. De acordo com Alter, essa é uma forma de enfatizar o escopo cósmico do poema.9 Referências a essa perspectiva são feitas por meio de expressões como “toda a Terra” e “todos os reis das nações”. O espaço inteiro é utilizado: as florestas e os desertos, as cidades e as águas. A Terra inteira canta, treme, é destruída e eventualmente encontra a paz. Então, temos a dimensão vertical. A atividade não está limitada à Terra inteira, ela se estende a ponto de incluir o sheol e os céus, completando o eixo vertical. O foco varia entre esses três níveis, e o juízo de Deus contra o rei da Babilônia afeta o Céu, de onde ele é lançado, a Terra, que encontra o descanso prometido, e sheol, que se agita por causa da vinda do rei, ampliando ainda mais o alcance universal de Isaías 14.

O coração do rei

Quando se observa o paralelismo do poema, nota-se algo peculiar nos dois versos centrais. Após uma introdução (“Tu dizias no teu coração”, v. 13), uma série de sete frases paralelas descreve o desejo do rei de se exaltar. Considerando que todas as outras formas de paralelismo encontradas na canção envolvem apenas dois elementos, essa concentração de paralelos claramente chama a atenção e requer um estudo mais aprofundado. Uma análise dos desejos mais íntimos do rei revela a razão pela qual ele foi destruído. Todas as suas vontades estão interligadas, expressando a pretensão de se elevar para uma esfera celestial e fazer para si mesmo um reino estável, no lugar em que Deus está entronizado (Sl 27:5; 57:5; 78:69). O desejo máximo do rei é de se assentar no trono mais alto e poderoso possível. Não apenas isso, mas uma análise das conotações teológicas dos verbos indica que ele está tentando ganhar o mesmo status e posição que Deus. Não se pode comparar o Senhor com seres ou reis mortais – é loucura sequer tentar (Sl 89:7; Is 40:18; 46:5).10 Todavia, é exatamente isso que o rei da Babilônia quer e, em lugar de se humilhar perante Deus, reconhecendo Sua superioridade, ele deseja ser aquele que recebe a honra. Contudo, longe disso, ele cai do Céu de maneira humilhante, violenta e degradante.

Por causa de sua magnitude, montanhas eram muitas vezes associadas ao imutável. Entretanto, mesmo os montes poderosos estão sujeitos a Deus, e Ele os escolhe, com frequência, como símbolo de Seu poder. Foi no Sinai que Israel vivenciou a maior manifestação da presença do Senhor. Tanto Sinai quanto Sião (cf. Sl 48:2) estão ligados à aliança e à teofania.11 A conexão com a palavra “congregação” lembra ao leitor o tabernáculo, a residência que Deus escolheu para habitar entre Seu povo, e indica ser nesse monte que está o trono do Senhor, o lugar em que Ele se encontra com Suas criaturas. Assim, a ambição do rei era se assentar no trono exaltado, no monte da congregação, no Céu, a habitação do próprio Deus.

Portanto, o que causou sua queda foi seu orgulho e sua recusa de se curvar perante o Senhor. Ele pode ter alcançado glória temporária, mas acabou falhando e perdendo a pouca glória que tinha, tornando-se como os reis fracos e mortos das nações (v. 10). Desse modo, a vitória de Deus sobre o rei da Babilônia é justificada, pois o adversário ousou cobiçar o trono divino.

O rei

A designação do rei da Babilônia como “estrela da manhã, filho da alva” no verso 12 tem levado muitos comentaristas a voltarem sua atenção para o Antigo Oriente Médio, onde astronomia e astrologia tinham funções centrais.12 Alguns associam o título com mitologia cananita,13 por ter sido encontrado nos textos de Ras Shamra.14 Entretanto, conforme Watts comenta, “nenhum mito como tal foi encontrado em Canaã ou entre outros povos”.15 É mais provável que Isaías estivesse apenas fazendo uma analogia astronômica ao associar o rei com a estrela da manhã: apesar de tentar subir acima do horizonte toda manhã, ela desaparece quando o Sol sai e não consegue realizar sua ascensão para “acima das estrelas”.16

Isaías 14 nos dá insights a respeito do mundo de poderes malignos e da ação de Deus de subjugá-lo. Essas ideias ocorrem em todo o Antigo Testamento, especialmente em passagens que retratam o desejo de “se tornar como Deus” (Gn 3), ou de alcançar o Céu (Gn 11). O personagem em Ezequiel 28 também tem semelhanças surpreendentes com o rei da Babilônia;17 contudo, é o Novo Testamento que nos dá uma compreensão melhor do grande conflito entre os poderes do bem e do mal. Apesar de não ter nenhuma citação direta de Isaías 14 no NT, há várias alusões ao texto – especialmente aos versos 12 a 15 – todas em contextos onde Satanás é mencionado (Lc 10:13-16, 18; Ap 8:10; 9:1; 12:9; 20:3).

Tertuliano, Justino e Orígenes provavelmente tenham sido alguns dos primeiros autores cristãos a reconhecer o rei da Babilônia como o diabo,18 uma associação que certamente foi influenciada pela literatura apocalíptica intertestamentária judaica19 em sua tentativa de identificar Satanás como um anjo caído. Posteriormente, essa conexão foi retomada pelo NT e os primeiros pais da igreja.20 Tal identificação era comum durante a Idade Média, mas perdeu sua popularidade em tempos recentes, especialmente depois que o liberalismo ganhou força em círculos teológicos. Possíveis conexões com mitologias pagãs eram mais atraentes, levando muitos estudiosos a deixar de lado a interpretação tradicional como sendo alegórica, e procurando explicações em mitos do Antigo Oriente Médio. Atualmente, apenas uma minoria de autores menciona Satanás ao comentar Isaías 14.

Parece, porém, prejudicial ao texto procurar paralelos exclusivamente em fontes extrabíblicas, pois isso ignora o ponto de vista bíblico. A identificação do rei da Babilônia como Satanás é uma ideia que não procede explicitamente de Isaías ou do AT. Entretanto, parece haver evidência suficiente de que é o NT – via tradição judaica – que dá base à interpretação tradicional. Dessa forma, são as próprias Escrituras que nos mostram como deveríamos entender o rei: não apenas como inimigo histórico de Israel, mas como poder maligno trabalhando contra Deus e Seu povo, identificado no Apocalipse como diabo e Satanás.21

Conclusão

Isaías 14 foi primariamente escrito tendo em vista a promessa da libertação do exílio babilônico. Ao mesmo tempo, percebe-se que há vários elementos difíceis de explicar no nível histórico, levando muitos autores a defender a impossibilidade de identificar o rei somente com um personagem histórico.22 Um estudo linguístico da passagem confirma o alcance universal do poema, levando-nos a uma batalha espiritual maior entre Deus e os adversários que impedem o descanso final prometido para o povo escolhido. Quando analisado e comparado ao restante das Escrituras, chegamos à conclusão de que a identificação do rei da Babilônia com Satanás é possível e legítima. A ênfase encontrada no próprio texto hebraico nos versos 13-14 destaca a justiça por trás do julgamento divino contra o rei, cujo desafio contra o Senhor o levou à ruína.

Assim, quando Deus disse em Isaías 14:22 que destruiria o nome e a posteridade de Babilônia, Ele não estava apenas livrando Israel de seu inimigo histórico, mas dando também à humanidade uma promessa de livramento de todos os poderes do mal, e de descanso de seu sofrimento e escravidão. Nada impedirá a Terra de irromper em cânticos de alegria, pois o rei da Babilônia, o inimigo final, foi derrotado.

Referências

  • 1 Is 14:28 nos ajuda a datar a mensagem do capítulo 14 no ano 716/15 a.C.
  • 2 Robin Wakely, “sahar”, NIDOTE, 2:1135.
  • 3 O ritmo do cântico é 3 + 2, típico de uma lamentação ou canção fúnebre. A exclamação “como” nos versos 4 e 12 geralmente descreve a lamentação na morte de alguém (Leander E. Keck, Isaiah – Ezekiel [NIB 6; Nashville: Abingdon, 2001], p. 150-161).
  • 4 A ironia é enfatizada também pelo fato de que, ao invés de qinah, “lamentação”, Isaías usa rinnah, “cântico de júbilo” (Robert Alter, The Art of Biblical Poetry [Nova York: Basic, 1985], p. 18).
  • 5 No verso 9b, por exemplo, “todos os príncipes da terra” estão em paralelo com “todos os reis das nações”.
  • 6 As mudanças de perspectiva se baseiam nos verbos e sufixos.
  • 7 John D. W. Watts, Isaiah 1-33 (WBC 24; Waco: Nelson, 1985-1987), p. 203-204; Wim Beuken, Ulrich Berges e Erich Zenger, Jesaja 13-27 (Freiburg: Herder, 2007), p. 61.
  • 8 Alter, p. 149.
  • 9 Ibid.
  • 10 A. H. Konkel, “dmh”, NIDOTE, 1:967-968.
  • 11 Ibid.
  • 12 Jac Sasson, ed., Civilizations of the Ancient Near East (Peabody: Hendrickson, 2000), 1860, 1907.
  • 13 John Goldingay argumenta que esses temas seriam reconhecidos pelo público israelita como vindos de mitos estrangeiros, já que tanto “estrela da manhã” quanto “filho da alva” eram títulos de deuses cananitas (Isaiah [NIBC 13; Peabody: Hendrickson, 2001], p. 102-103). J. Oswalt diz: “As indicações são de que o profeta não dependia de apenas uma história, mas usou um número de temas correntes para servir ao seu propósito” (The Book of Isaiah 1-39 [NICOT; Grand Rapids: Eerdmans, 1986], p. 322). Não se pode afirmar, porém, que os israelitas foram influenciados por mitologia estrangeira. Há sempre a possibilidade de que a influência tenha ocorrido na direção oposta.
  • 14 Wakely, 4:85-89
  • 15 Watts, p. 209.
  • 16 Ruppert, “sahar”, ThWAT 7:1231.
  • 17 Walther Eichrodt, Der Herr Der Geschichte Jesaja 13-23 u. 28 – 39 (BAT 17; Stuttgart: Calwer, 1967), p. 25.
  • 18 Otto Böcher, “Teufel”, TRE 33:125-126.
  • 19 Veja 2En 29:1-4 e Ap El 4:11, onde se encontram ecos de Isaías 14.
  • 20 “Satan”, ODJR, 609. Por causa dessas primeiras identificações de Satanás em Isaías 14:12 e da crença muito difundida de que ele era chamado de Lúcifer (em latim, “portador de luz”) antes de sua queda, a expressão “estrela da manhã” passou a ser traduzida como “Lúcifer” em “literatura influenciada pela Bíblia latina e a KJV. Entretanto, a tradução ‘Lúcifer’ é insustentável e não se encontra em versões mais recentes” (Larry L. Walker, Isaiah, Jeremiah and Lamentations [CBC 6; Carol Stream: Tyndale, 2005], p. 68). Ver também: Keck, p. 159.
  • 21 Walker diz: “Apesar de Satanás não ser o sujeito imediato em Isaías, o restante das Escrituras deixa claro que ele é o ser por trás dos reis malignos” (p. 68). Assim também Derek Thomas: “A despeito de que Satanás não é referido especificamente em 14:12, sua sombra está por trás dessa passagem” (God Delivers: Isaiah Simply Explained, Welwyn Commentary Series [Darlington: Evangelical, 1991], p. 126).
  • 22 “A tentativa de identificar um personagem histórico específico provavelmente seja fútil […] Nenhum dos reis do império neo-babilônico se encaixa na passagem, assim como nenhum dos reis assírios dos dias de Isaías” (Oswalt, p. 311-314).