A Igreja Enfrenta Problemas

Falando em 1915 dos escritos de Ellen G. White, particularmente da maneira como se preparavam alguns de seus livros, W. W. Prescott, então secretário conselheiro da Associação Geral, escreveu: “Penso… que nos estamos dirigindo para uma crise, a qual cedo ou tarde, terá de sobrevir-nos, e talvez antes do que pensamos.”’

Sobre o mesmo assunto, comentava L. E. Froom em 1930, numa carta a W. C. White, depois de expressar sua alegria pelo livro que o Pastor A. G. Daniells começaria a escrever em breve sobre Ellen G. White:2

“É minha solene convicção . . . que uma das maiores crises que este movimento terá de enfrentar se acha diante de nós, antes que cheguemos a uma sólida compreensão racional, baseada na Escritura e na História, do lugar, caráter, autoridade e relação do Espírito de Profecia com este movimento. Desafortunadamente, há pessoas de espírito tacanho que creem na inspiração verbal de tudo que foi escrito pela irmã White, antes que na inspiração das idéias; as quais afirmam o que ela mesma nunca afirmou e cujas atitudes são tão rígidas e arbitrárias que sou levado a recear que, quando alguns desses homens forem confrontados com o que se tome inexplicável em relação com suas idéias, propenderão a lançar tudo fora, como alguns já fizeram no passado.”3

Prescott, que fora partidário da inspiração verbal, era um dos que tinham sido sacudidos, e ficara um pouco desorientado no fim de sua carreira, segundo revelam outros parágrafos não citados de sua carta de 1915. Ellen G. White, por sua vez, fizera a seguinte declaração em 1890:

“O último engano de Satanás será exatamente anular o testemunho do Espírito de Deus. . . . Satanás trabalhará engenhosamente, por diferentes maneiras e por instrumentos diversos, para perturbar a confiança do povo remanescente de Deus no testemunho verdadeiro.”4

Esse tempo do qual falaram W. W. Prescott, L. E. Froom e Ellen G. White, parece ser o nosso, a julgar pela agitação que ultimamente está sendo produzida, não só dentro da Igreja, mas também fora dela. Quem isto escreve já reuniu uns trinta artigos sobre este e outros assuntos teológicos que afetam a Igreja, publicados em revistas, jornais e outros periódicos nos últimos seis meses, só nos Estados Unidos. O assunto não é novo. Simplesmente irrompeu mais uma vez. Mas agora está sendo ventilado por homens que, pelo menos em princípio, declaram não haver abandonado a fé no Movimento Adventista.

Aparece um Importante Documento de 1919

Nos dias 1 a 19 de julho de 1919 foi realizado em Takoma Park, na área de Washington, um importante Concilio Bíblico. Em seguida vieram as reuniões do Concilio de Professores de História e Escritura Sagrada, que durou cerca de três semanas. Estiveram presentes uns 28 professores, e o total superou a 50 assistentes, contando os administradores, os redatores e outros membros da Associação Geral.

Foram registrados quase todos os pormenores debatidos em ambos os concílios. As 1.308 páginas de transcrições dormiram serenamente até dezembro de 1974, quando o Dr. F. D. Yost, diretor dos arquivos da Associação Geral, as encontrou enquanto classificava diversos materiais em depósito. Os atuais administradores da Associação Geral nada sabiam desse documento, e muito menos o Patrimônio White. Nenhum dos homens que então dirigiam os depósitos de materiais de Ellen G. White, situados na Califórnia — os Pastores W. C. White, D. E. Robinson e C. C. Crisler — estiveram presentes nos referidos concílios.5

O documento consta de 2.494 páginas de transcrição estenográfica. Na realidade, porém, são 1.308 páginas, pois há uma duplicação do material. Ele revela que as considerações, dirigidas pelo presidente da Associação Geral, Pastor A. G. Daniells, foram livres, abertas e francas. Há os que afirmam atualmente que, se naquele tempo se houvesse dado publicidade aos assuntos debatidos, teria sido consideravelmente minorado o problema que tornou a ser considerado em nossos dias. As idéias que prevaleceram foram as seguintes:

1. A adesão ao conceito da inspiração verbal, seguida tacitamente por alguns dos professores de Bíblia, suscita problemas. Os alunos captam a idéia, e uma modificação repentina pode causar um transtorno em seus conceitos a respeito da autoridade dos escritos de Ellen G. White. O problema deve ser enfrentado, ou se continuará ensinando a mesma coisa.

2. A maneira como têm sido preparados alguns livros de Ellen G. White não se harmoniza com a teoria da inspiração verbal. Tal é o caso dos materiais de outros autores que aparecem, por exemplo, em O Grande ConflitoThe Life of Paul (“A Vida de Paulo”); e das correções gramaticais, ortográficas e editoriais de que foram objeto, particularmente, por seus assistentes literários. E tampouco se harmoniza com o fato de que se pediu que alguns obreiros revisassem as obras antes de sua publicação. Se a inspiração fosse verbal, isso não se coadunaria com ela.

3. A Bíblia é o mais apropriado intérprete de si mesma. Os escritos de Ellen G. White não são o único intérprete das Escrituras. Essa foi a prática e posição dos pioneiros. Eles sempre recorreram à Bíblia para definir assuntos bíblicos. Isto não diminui a importância do dom profético manifestado na Igreja para a compreensão de assuntos bíblicos. (Daniells e Prescott citam casos específicos de suas experiências pessoais em relação com excelente interpretação tomada de Ellen G. White.) “Ela nunca declarou ser uma mestra de teologia dogmática.

4. Ellen G. White nunca se considerou uma autoridade em História. Suas afirmações sobre essa matéria não devem ser utilizadas para definir assuntos da História. Não há infalibilidade em suas afirmações.6

O Problema em Nossos Dias

Haroldo Weiss e Roy Branson, então professores assistentes do Seminário da Universidade Andrews, lançaram três idéias básicas em 1970: 1ª É essencial que a Igreja estabeleça de maneira objetiva a natureza do que Ellen G. White escreveu. 2ª É mister estabelecer a relação entre o que escreveram Ellen G. White e autores contemporâneos ou anteriores. 3ª É necessário analisar cuidadosamente o desenvolvimento de seus escritos em seu próprio tempo e posteriormente. Eruditos e teólogos da Igreja foram convidados a dar consideração a estes assuntos.

Em 1976 saiu a lume o livro de R. L. Numbers, A Prophetess of Health (“Uma Profetisa de Saúde”), que tornou a agitar o problema. A tese básica de Numbers é a de que Ellen G. White foi o produto de seu tempo. Ela simplesmente reflete, no âmbito da saúde, as idéias de autores contemporâneos, como Larkin, Coles, Trail, Jackson, Graham, etc. Como tese secundária, fala de “traumas”, incoerências e ambição de posição e poder presentes em Ellen G. White. Os círculos da Igreja reagiram pelo menos de três maneiras. Uma, altamente emocional: a obra prejudicará a irmandade, diziam. Isto não aconteceu. A outra, representada por um grupo minoritário liberal, deu boa acolhida à obra, como se ela fosse a espoleta de um tipo de “liberação” que queriam fosse produzida. E a terceira maneira, amadurecida e talvez fria, que aceitou o problema como foram aceitas no passado as acusações formuladas desde então. Duas convicções serviam de base para esta forma de pensar: O Movimento Adventista é de origem divina e bíblico, e Ellen G. White demonstrou ser um instrumento de consolidação da Igreja como nenhum outro.7

As escaramuças não cessaram. De vez em quando surgem novos ataques.8 É que estamos na etapa final do conflito milenário entre o bem e o mal. O diabo está irado contra o povo que mantém erguida a norma divina do juízo e que, além disso, se acha iluminado pelo dom profético a respeito de seus movimentos na derradeira etapa da luta.

A revista Spectrum, que surgiu em 1970 e pretende estar imbuída do propósito de examinar em forma crítica os mais variados assuntos atinentes à Igreja e participar também da comunidade intelectual dos mesmos, canaliza a obra de muita gente inquieta, negativa ou positivamente. Seu alvo é investigação e disseminação sistemática. Está aberta aos intelectuais e liberais da Igreja mais dados à erudição que à preocupação pastoral da grei ou à evangelização das massas. Como este tipo de tarefa desvia a atenção da Igreja de seu senso de missão, concentrando-a mais em si mesma, acaba debilitando-a, ao invés de fortalecê-la.

Um Pastor Adventista Levanta o Problema

Walter Rea, de 58 anos de idade, pastor da Igreja de Long Beach, Califórnia, até a última parte do ano passado, quando lhe foram tiradas as credenciais, começou a lançar publicamente, em especial em círculos de obreiros e depois pela imprensa, as seguintes acusações contra Ellen G. White:

  • 1. Ela foi uma plagiária, pois copiou grande parte do que aparece em suas obras principais. Nunca se poderá saber ao certo de quanto material de outros ela se apropriou na realidade, pois parafraseou extensamente, mais do que copiou literalmente. Rea declara que o material de outros que aparece em suas obras é pelo menos de uns 80%.
  • 2. Os ajudantes literários de Ellen G. White sabiam muito bem como eram feitos os seus livros, mas encobriram tudo. A Associação Geral e o Patrimônio White estão fazendo a mesma coisa.
  • 3. Ellen G. White enganava intencionalmente as pessoas dizendo que o que escrevia procedia de Deus, quando na verdade o extraía de outros autores.
  • 4. A tendência atual da Igreja Adventista é fazer de Ellen G. White “um mito e um ídolo”. “Ela tem sido virtualmente canonizada. ”
  • 5. Tanto Ellen G. White como seu esposo fizeram da produção literária da referida autora uma empresa para ganharem dinheiro.

Sendo que Rea afirmava que O Desejado de Todas as Nações, por exemplo, havia sido plágio, princípalmente do livro The Life of Christ, de W. Hanna, pediu-se que os Drs. e Pastores Raymond F. Cottrell e W. Specht realizassem estudos comparativos entre O Desejado de Todas as Nações e o livro de Hanna, e isso resultou num relatório de mais de 120 páginas.9 As conclusões básicas foram as seguintes:

  • 1. Não existe paralelo algum entre Hanna e Ellen G. White nos três primeiros capítulos de O Desejado.
  • 2. Não existe em O Desejado declaração alguma copiada palavra por palavra de Hanna..
  • 3. O que existe é uma semelhança de palavras, linhas de pensamento, fraseologia e seqüência de idéias entre O Desejado e o livro de Hanna.
  • 4. A idéia de uma controvérsia entre Cristo e Satanás, presente em toda a “Série Conflito”, escrita por Ellen G. White, não está presente na obra de Hanna: é única nas obras de Ellen G. White. O propósito dos livros de Hanna e de Ellen G. White é diferente, segundo o que expressam ambos os autores em suas introduções.
  • 5. A originalidade não é essencial na inspiração, pois ela não é mecânica ou verbal. O uso de linhas de pensamento e idéias similares constitui um problema unicamente para os que pressupõem que a inspiração é verbal, ou que confundem a revelação (recepção do desconhecido) com a inspiração (transmissão de maneira segura e com os elementos e a índole de linguagem e cultura do instrumento humano).

Os trabalhos de Cottrell e Specht foram realizados a pedido do Patrimônio White. Atualmente o Dr. Fred Veltman10 está empenhado num projeto que levará uns dois anos. Fará um profundo estudo comparativo em relação com o uso de outros autores por parte de Ellen G. White. Esse estudo está sendo patrocinado pela Associação Geral e será financiado por ela.

O Grande Conflito contém muitas citações, especialmente de historiadores. Isto é um fato bem conhecido. Nichols afirma que 12% do livro constituem citações de diversos autores.11

A inspiração, autoridade e originalidade dos escritos de Ellen G. White e sua relação com a Bíblia têm sido motivo de discussão por parte de alguns indivíduos desde o começo da manifestação do dom, especialmente por parte dos que discordavam das doutrinas ou ações administrativas da Igreja.12

Desmond Ford Concentra a Atenção da Igreja

Durante anos a revista The Ministry publicou artigos de Desmond Ford, o qual lecionou Escritura Sagrada no Colégio de Avondale e foi o chefe do Departamento de Ensino da Bíblia nessa instituição. As idéias que expressava não pareciam ser as de um dissidente, e, sim, as de um estudioso que se esforçava por comunicar nova luz. Mas chegou o dia em que suas declarações tomaram outro aspecto. A Austrália solicitou a colaboração da Associação Geral para dar-lhe uma oportunidade nos Estados Unidos. Sem a intenção de fazê-lo, o problema se deslocou para um solo bastante propício à crítica: as comunidades mais intelectuais da Igreja situadas na costa ocidental norte-americana.

Em 27 de outubro de 1979, num “forum efetuado na área do Colégio União do Pacífico, onde Ford estava lecionando, ele lançou algumas idéias que precipitaram a crise que terminou com sua exclusão do ministério, algum tempo depois do transcendente conclave de Glacier View Ranch, no Estado de Colorado. 13

Uns 120 teólogos, pastores, administradores, redatores e professores de Escritura Sagrada participaram das considerações.14 Os assuntos fundamentais foram principalmente dois: a doutrina do santuário e a natureza dos escritos de Ellen G. White.

Ford afirma que Ellen G. White não é autoridade em doutrina nem em interpretação profética. Seus escritos, que ele considera muito bons para a Igreja, e alguns deles para sua própria vida, são de caráter pastoral — não sendo, pois, apropriados para definir tais assuntos doutrinários como o santuário, o juízo investigativo ou o conceito da purificação do santuário celestial como nós adventistas o temos ensinado. Tampouco são apropriados para a interpretação profética. O Grande Conflito não tem outro valor além de apresentar a interpretação profética dos pioneiros. Eles se equivocaram e, portanto, ela também se equivocou ao apresentar suas interpretações. Quando Ellen G. White diz “Eu vi” ou “foi-me mostrado”, simplesmente apresenta sua opinião pessoal depois dessas declarações.

Em 1883 a serva do Senhor publicou na Review and Herald um interessante e extenso artigo sobre as críticas de que era objeto. A seguir, citamos alguns trechos desse artigo:

“Irmãos, não tenhais receio de que ficarei desanimada por causa dos cruéis ataques de meus inimigos. Espero-os em maior medida, e admiro-me de que não tenham sido mais freqüentes. . . . Devemos esperar maior oposição do que temos experimentado até agora. Temos ouvido a rosnadela do dragão. Esta se transformará num rugido. Ainda não aprendemos o significado das palavras de João: ‘Irou-se o dragão contra a mulher e foi pelejar com os restantes da sua descendência, os que guardam os mandamentos de Deus e sustentam o testemunho de Jesus.’ ”15

Referências

  • 1. W. W. Prescott, carta a W. C. White, 6 de abril de 1915. Arquivo do Patrimônio White, Documento nº 198.
  • 2. Trata-se do livro The Abiding Gift of Prophecy (“O Permanente Dom de Profecia”), publicado em 1936.
  • 3. L. E. Froom, carta a W. C. White, 28 de setembro de 1930.
  • 4. Mensagens Escolhidas, livro 2, pág. 78.
  • 5. Review and Herald, 14 de agosto de 1919. As considerações sobre a inspiração da Bíblia e dos escritos de Ellen G. White foram efetuadas nos dias 30 de julho e 10 de agosto. O título do documento é: “O Uso do Espírito de Profecia e Sua Relação com a Bíblia.” Arquivo do Patrimônio White, Documento nº 920.
  • 6. Sobre infalibilidade: Unicamente Deus e o Céu são infalíveis… . Com relação à infalibilidade, nunca a pretendí.* — Mensagens Escolhidas, livro 1, pág. 37. “Não tenho reivindicado infalibilidade nem perfeição de caráter cristão. Não estou livre de erros em minha vida. Se houvesse seguido mais de perto a meu Salvador, não teria que lamentar minha falta de semelhança com Sua querida imagem.” — Carta 27, 1876.
  • 7. A. L. White preparou um trabalho de 127 páginas refutando a Numbers, e o Patrimônio White, outro de 23 páginas. Como reação da Igreja contra a crítica a Ellen G. White foram publicados vários livros apologéticos. Eis alguns deles: H. A. Branson, In Defense of the Faith — A Reply to Canright, R & H. 1933: F. M. Wilcox, The Testimony of Jesus: A Review oj the Work and Teachings of Mrs. Ellen G. White, R & H, 1934 (publicado em castelhano e em português); F. D. Nichol, Ellen G. White and Her Critics, R & H, 1951.
  • 8. Por falta de espaço, omitimos as referências a outros trabalhos críticos nos últimos 10 anos. Spectrum publicou um resumo dos mesmos em sua edição de março de 1980.
  • 9. R. F. Cottrell foi subchefe de redação da Review and Herald e teve uma atuação similar no preparo do Comentário Bíblico Adventista. W. Specht foi professor de Teologia do Seminário da Universidade Andrews. Ambos estão afastados do serviço ativo.
  • 10. O Dr. F. Veltman é chefe do Departamento de Teologia do Colégio União do Pacífico, na Califórnia.
  • 11. F. D. Nichol, Ellen G. White and Her Critics, pág. 420. Ver Introdução de O Grande Conflito.
  • 12. No passado: D. M. Canright, J. H. Kellogg, L. D. Conradi, A. F. Ballenger, A. T. Jones e outros. Atualmente sobressaem R. Brinsmead, W. Rea e D. Ford.
  • 13. A América do Sul esteve representada por 11 delegados que labutam não só em seu território mas também fora dele: A. Dupertuis, W. Endruweit, D. Gullón, S. Japas, E. Pereyra, T. Sarli, S. Schmidt e M. Veloso. M. Nigri, E. de Oliveira e J. Wolff não puderam estar presentes.
  • 14. The Ministry dedicou uma edição ao problema suscitado por D. Ford. Contém informações, os documentos emitidos e comentários críticos das posições de D. Ford A Comissão Revisora do Santuário se reuniu em Glacier View Ranch, Colorado, nos dias 10 a 15 de agosto de 1980.
  • 15. Review and Herald, 28 de agosto de 1883.