Pode parecer algo profano pensar na possibilidade de que exista algum paralelo entre Sigmund Freud, famoso psicanalista do passado, Ellen White e a Bíblia. Contudo, aqueles que podem permitir-se nesta aventura acabarão encontrando que há muitos pontos em comum; mesmo porque toda verdadeira ciência caminha rumo à comprovação dos grandes princípios já antes anunciados pela Revelação. No dizer de um psiquiatra cristão, “toda descoberta científica correta foi criada por Deus, tendo apenas sido descoberta por homens estudiosos, que chamamos de cientistas”.1

Nesta incursão, precisamos entender primeiro que Ellen White “não escrevia como psicóloga. Não empregava a terminologia comumente usada hoje na área da Psicologia… O leitor inteligente, porém, ficará profundamente impressionado com a incomum intuição quanto aos princípios básicos de psicologia evidenciados por estes escritos”.2

Este artigo não pretende esgotar toda a gama de conceitos da Psicanálise; e, por isso, escolhemos o tema básico em tomo do qual giram todos os grandes pincípios sobre os quais essa ciência é fundamentada. Assim, analisaremos o inconsciente.

Ao apresentar o pensamento de Ellen White, utilizaremos porções de seus escritos sobre a saúde mental, notadamente o livro Mente, Caráter e Personalidade, para onde remeteremos o leitor mais cuidadoso, a fim de compreender o contexto de suas citações. Outrossim, buscaremos alguns textos bíblicos, muito úteis para o entendimento dos conceitos apresentados.

Inconsciente na Psicanálise

Talvez o inconsciente seja a principal descoberta de Freud. Outros pensadores, anteriores a ele, falaram sobre o assunto, mas foi Freud quem delimitou esse termo, colocando-o no uso corrente do pensamento filosófico contemporâneo. Mesmo nas outras abordagens sobre a personalidade, surgidas depois de Freud, utiliza-se esta divisão da mente – consciente-inconsciente -, ainda que seu objeto de estudo seja o consciente, ao contrário da Psicanálise que tem o inconsciente como objeto de estudo.

Mas, o que se entende por inconsciente? “Para Freud, o inconsciente é uma região psíquica especial, onde estão os desejos, os dados do nosso passado, lembranças de todo tipo, impulsos e sentimentos vários.”3 Ou seja, “qualquer processo mental, cujo funcionamento pode ser deduzido do comportamento de uma pessoa, mas ao qual essa pessoa continua estranha, sendo incapaz de o examinar e relatar”.4

Não temos acesso a tudo o que queremos, na hora que desejamos. Fatos, acontecimentos e sentimentos são esquecidos ou tomados inconscientes. Este inconsciente pode se manifestar através de sonhos, atos falhos, sintomas físicos sem lesões orgânicas, sintomas mentais como angústias e depressões.

É importante notar que o conteúdo do inconsciente não é estático, mas dinâmico, e participa de nossa vida em todos os seus aspectos, tais como atitudes, pensamentos, escolhas e decisões. Segundo o psiquiatra adventista, Dr. César Vasconcellos Souza, “muito do que fazemos, do que escolhemos (cônjuge, profissão, etc.) é motivado por fatores inconscientes”.5

Freud postulou dois princípios de funcionamento mental: o princípio do prazer e o princípio da realidade.6 Falando resumidamente, o princípio do prazer é aquele que rege o inconsciente. Ele busca alcançar prazer e fugir do desprazer, da frustração; é dominado pelas pulsões, ou impulsos, que buscam uma satisfação imediata pelos caminhos mais curtos, sem levar em consideração qualquer padrão cultural, social ou religioso. É um afasta-mento da realidade, já que não a leva em conta. É o que, na linguagem popular, dizemos a respeito do indivíduo que vive “no mundo da lua da fantasia.

Por outro lado, o princípio da realidade, como o próprio nome já diz, é onde a realidade consciente é levada em conta. Não é uma inibição desta busca de prazer, mas procura garantir um prazer seguro, dentro dos padrões da realidade sociocultural do indivíduo. É um princípio regulador “onde a procura de satisfação já não se efetua pelos caminhos mais curtos, mas faz desvios e adia o seu resultado em função das condições impostas pelo mundo exterior”.7

O trabalho de análise se propõe a trazer o conteúdo do inconsciente para o consciente, onde se acha a volição. É um processo mais de tomada de consciência e autoconhecimento do que de cura. Esta seria o resultado da decisão após a tomada de consciência. O indivíduo submetido a um processo de análise tem a vontade fortalecida, como se diz no jargão da psicanálise: um eu forte. O inconsciente é impulsivo, fonte de todo impulso; e qualquer indivíduo que não aceite a sua existência é o que mais sofre sua influência. Seu eu é fraco; está debilitado.

Ao contrário, a pessoa que sabe ser influenciada pelo seu inconsciente procurará conhecer os mais profundos motivos e irá trazê-los à consciência, podendo, somente então, fazer uso de sua razão para, através de um ato da vontade, decidir sobre os impulsos vindos do inconsciente.

Em Ellen White e na Bíblia

 A Sra. Ellen White reconhecia que o conteúdo do inconsciente está presente, de forma bem dinâmica, todo o tempo na vida psíquica do indivíduo. Eis uma de suas declarações a esse respeito: “As primeiras lições impressas na criança, raras vezes são esquecidas… as impressões feitas no coração, no princípio da vida, são vistas em anos posteriores. Podem estar sepultadas, mas raras vezes serão obliteradas.”8

O inconsciente é impulsivo, fonte de todo impulso; e qualquer indivíduo que não aceite a sua existência é o que mais sofre sua influência.

No texto bíblico existem alusões aos pecados por ignorância, por desconhecimento da consciência, “por inadvertência, inadvertidamente, descuidadamente, sem pensar”9 (Lev. 4), e atos ocultos ou por esquecimento (Lev. 5). Mas o texto que mais claramente toca no conceito de inconsciente é o de Provérbios 20:5, que diz: “Os pensamentos de uma pessoa são como água em poço fundo, mas quem é inteligente sabe como tirá-los para fora.” (BLH).

Um problema que muitos enfrentam com a Psicanálise é a idéia de que o homem é um ser impulsivo, ou dominado pelos impulsos. Como cristãos, podemos dizer que o ser humano não é impulsivo, mas que ele passou a ser assim, por causa da entrada do pecado em sua experiência. Nossa natureza pecaminosa é impulsiva e dominadora. Paulo a chamou de a “lei do pecado” que habita em nossos membros (Rom. 7). É a nossa ação dando-nos conta de que existe algo guerreando contra a nossa mente consciente.

Alguns cristãos ouviram dizer que Freud liberou os impulsos, daí a onda de pansexualismo. Tais pessoas, muito provavelmente, jamais leram uma palavra sequer acerca de seu trabalho. Uma leitura desprovida de preconceitos do texto freudiano mostrará que isso é uma interpretação errônea de seu pensamento. Ele orientou no sentido de liberarmos os impulsos através da fala, por 50 minutos, numa seção terapêutica, sob a orientação de um analista, mas foi entendido como se tivesse dito para liberarmos os impulsos pelo comportamento, o tempo todo, em qualquer lugar.10 Devemos ser honestos com o texto original.

Ellen White afirma que podemos ser libertados “das paixões e impulsos humanos”, e “vencedores de suas inclinações”. Todo aquele que é humano tem impulso. Para ser-mos vencedores de nós mesmos, é necessário admitir que existe um eu que briga consigo mesmo. Em linguagem psicanalítica, é a luta do eu contra o isso e o acima-do-eu.“Se não podeis controlar vossos impulsos, vossas emoções, segundo o desejais, podeis controlar a vontade, e assim se operará em vossa vida uma mudança completa.”12

Se o princípio da realidade estiver forte, então poderemos controlar o princípio do prazer, colocando-o sob o domínio da vontade.

“Muitos que não professam o amor de Deus controlam o espírito em considerável medida, sem o auxílio da graça especial de Deus. Cultivam o domínio próprio. Isto representa na verdade uma exprobração aos que sabem que, de Deus, podem obter força e graça, e todavia não exibem as graças do Espírito.”13

Muitos cristãos e não cristãos, que passaram ou passam por um processo analítico, encontram-se na situação descrita acima. “Cultivam o domínio próprio”; estão em condições de decidirem, ou não, por Cristo. Mas existem aqueles, mesmo dentre os cristãos, que por negarem o processo mental impulsiva, fazem todo tipo de esforços e penitências para vencê-las e não conseguem; não chegam ao ponto de se renderem a Cristo, reconhecidos de sua impotência e colocarem a vontade nas mãos do Mestre. Isso seria a única coisa que poderiam fazer, e é aquela que Cristo não fará sem nossa autorização. O conselho que Ele nos dá é: “Não deves demorar em examinar rigorosamente o próprio coração”.14 “Muitos se perderão enquanto esperam e desejam ser cristãos. Não chegam ao ponto de render a vontade a Deus. Não escolhem agora ser cristãos.”15

Não é estranho que o ser humano seja um ser impulsivo, uma vez que existem impulsos para o bem e para o mal. Ambos são produto do inconsciente. Contudo, “Cristo é a fonte de todo bom impulso”.16

O uso que Ellen White faz de termos como “paixão”, “propensão”, “impulso”, etc., é às vezes adjetivado, mostrando assim que em seu pensamento esses termos, em si mesmos, não são qualificativos. Por isso, é errôneo dizer ou pensar no sentido de que se se trata de impulso, então é mau, ruim e pecaminoso. Não podemos dizer que toda paixão seja condenável. Ela usa qualificativos como “vis”, “animalescas”, “concupiscentes”, “depravadas”, “corruptas”, etc., quando deseja condenar. Deveríamos estar atentos ao uso das palavras, para não cobrirmos algo como preconceituoso, por simples falta de conhecimento. Esta é uma peça que não raro o inconsciente nos prega, quando não estamos cientes do motivo inconsciente de nossos preconceitos.

As seguintes citações comprovam isso:

“Deus requer que controleis não só os pensamentos, mas também vossas paixões e afeições. … A paixão e as afeições são agentes poderosos. … Resguardai positivamente vossos pensamentos, vossas paixões e vossas afeições. … Elevai-as até à pureza, dedicai-as a Deus.”17 Aqui ela usa a palavra “paixão” como sentimento forte e profundo, que pode ser para o bem ou para o mal.

“Toda propensão animal deve ser sujeita às faculdades mais altas da alma.”18

Os compiladores de seus escritos fizeram o seguinte comentário sobre esses trechos:

“No mesmo contexto no qual são usadas algumas das expressões fortes acima referidas, ela insta que as paixões devem ser controladas por aquilo a que ela chama ‘faculdades mais altas, mais nobres’, ‘razão’, ‘restrição moral’ e ‘faculdades morais’. Ela escreve sobre temperança e moderação, e sobre o evitar excessos. No matrimônio, essas paixões comuns a todos os seres humanos devem ser sujeitas ao controle, devem ser dominadas.”19

Conclusão

O inconsciente é regido pelo princípio do prazer, como uma criancinha malcriada e manhosa que diz: “eu quero isto, deste jeito, e quero já.” O princípio da realidade, que rege a consciência, por sua vez, soa como que a dizer: “tudo bem, calma, vamos verificar se agora é a melhor hora e se este é o melhor jeito; mas fique tranqüila, vou garantir o seu prazer de maneira que seja mais seguro.”

Como foi dito acima, a principal função do eu é canalizar as energias vindas do inconsciente a fim de que sejam devidamente descarregadas, ou seja, é o eu que se encarrega de garantir um prazer genuíno e seguro. Ellen White diz que “as afeições juvenis devem ser refreadas, até chegar o período em que a idade suficiente e a experiência tomarão honrosa e segura a sua manifestação”.20 Podemos ver aí um paralelo com a Psicanálise.

Gostaria de acrescentar que creio na Bíblia como sendo a Palavra de Deus, e que Ellen White foi inspirada por Ele. Todo o conteúdo da Bíblia e do Espírito de Profecia é verdadeiro. Mas algumas verdades não es-tão claramente reveladas na Bíblia ou no Espírito de Profecia. No entanto, toda ver-dade vem de Deus. Às vezes Ele usou ateus para descobri-las. Algumas dessas verdades foram descobertas mesmo por “um judeu ateu e que falou a respeito de sexo”.21

No passado, Ele usou indivíduos e povos pagãos para cumprimento de Seus propósitos. É só recordar a experiência de Ciro, Dario, Assuero, Nabucodonosor, e da Assíria. Enquanto estiveram sob a ordem divina foram Seus instrumentos.

As considerações acima são suficientes para que o leitor possa familiarizar-se com a incomum intuição quanto aos princípios básicos de psicologia, evidenciados pelos escritos de Ellen White.

Referências

  • 1. Machado, R. Cardoso, Psicoterapia Centrada na Bí-blia, Rio de Janeiro, Juerp, 1993, pág. 13.
  • 2. White, Ellen G., Mente, Caráter e Personalidade: Guia para a Saúde Mental e Espiritual, Tatuí, CPB, 1989, Prefácio.
  • 3. Souza, César Vasconcellos, A teoria psicanalítica, (Vida e Saúde, junho de 1986), pág. 25.
  • 4. Cabral, Álvaro & Nick Eva, Dicionário Técnico de Psicologia, São Paulo, Cultrix, 1992.
  • 5. Souza, César Vasconcellos, Op. Cit., pág. 26.
  • 6. Freud, S. Formulações Sobre os Dois Princípios do Funcionamento Mental, (Obras Completas), vol. XII, Rio de Janeiro, Imago, págs. 273-286.
  • 7. Laplanche, Jean, Vocabulário da Psicanálise, São Paulo, Martins Fontes, 1992, págs. 364 e 368.
  • 8. White, Ellen, Op. Cit., pág. 149.
  • 9. Nichol, Francis D., SDABC, Washington, DC, R.H., 1978, vol. I, pág. 728. Convém salientar que na teoria psicanalítica, o “sem pensar”, “descuidadamente”, “esquecimento” é um “ato falho”; portanto, uma manifestação do inconsciente.
  • 10. “A cautelosa abordagem de Freud tem sido desrespeitada ou esquecida em muitos setores, e passou a ser popularmente suposto que a Psicanálise advoga uma liberdade irrestrita, não através da fala em isolamento, durante um período estritamente limitado de tempo, mas através de um comportamente sem restrições durante o tempo todo e em todas as situações, sem levar em conta o caos que isso poderá acarretar para a vida do próprio indivíduo e para a vida dos outros. Como a Psicanálise revelou as conseqüências mutiladoras de uma excessiva repressão, passou-se a supor que a Psicanálise defende a ausência de todos os controles. Como ela requer que ‘se solte tudo’ – embora por uns 50 minutos diários e sob a orientação de um terapeuta especialmente treinado e digno de confiança, que protegerá o paciente de ir longe demais ou depressa demais no desvendamento do inconsciente – passou a supor-se que a Psicanálise advoga ‘despejar tudo o que está reprimido’ em qualquer lugar e a todo momento. Assim, ‘conhece-te a ti mesmo’ converteu-se em ‘faz o que te apetece’.” (Ver Bettelheim, Bruno, Freud e a Alma Humana, São Paulo, Cultrix, 1990, pág. 31.
  • 11. Não se usa mais Id, Ego e Superego, por ser uma má tradução, além do que tais termos nunca foram utilizados por Freud.
  • 12. White, Ellen, Op. Cit., pág. 123.
  • 13. Idem, pág. 125.
  • 14. Idem, idem.
  • 15. White, Ellen, Caminho Para Cristo, Tatuí, SP; CPB, 1987, pág. 48.
  • 16. Idem, pág. 26.
  • 17. White, Ellen, Mente Caráter e Personalidade, vol 1, págs. 218 e 219.
  • 18. Idem, pág. 219.
  • 19. Idem, idem.
  • 20. Idem, pág. 221.
  • 21. Shafer Vernon W., O Cristão e a Psicanálise, Bise, vol. III, nº 2, novembro/93, pág. 46.