Em busca de uma teologia da face de Deus

No centro do Salmo 27, Davi responde ao apelo de Deus: “Busque a minha face” (v. 8, NVI) prometendo: “A tua face, Senhor, buscarei” (v. 8, NVI). A firme decisão do salmista coloca a noção da face de Deus no centro da estrutura quiástica desse salmo.1 Ele explica por que deseja olhar para a face de Deus: “para contemplar a beleza do Senhor” (v. 4) e ver “a bondade do Senhor” (v. 13).

Os antigos filósofos diziam que beleza, verdade e bondade constituem a tríade fundamental da vida humana. São qualidades básicas de nossa existência. Davi não conseguia imaginar a vida sem Deus, por isso Lhe pediu: “Não me escondas, Senhor, a Tua face” (v. 9). O ápice de sua oração está conectado à sua confiança pessoal em Deus: “O Senhor é a minha luz e a minha salvação; de quem terei medo? O Senhor é a fortaleza da minha vida; a quem temerei?” (v. 1).

As palavras de Davi nos levam a uma pergunta fundamental: O que há de tão significativo em buscar ou ver a face de Deus? A resposta curta é que o salmista quer ver a beleza do caráter de Deus – a verdade sobre Ele e Sua bondade.

A face de Deus

O termo hebraico panim (sempre plural) tem dois significados principais no contexto de nosso estudo: (1) “face” e (2) “presença”.2 Isso explica por que os tradutores interpretam o mesmo texto bíblico de maneira diferente. Alguns indicam a presença de Deus, e outros traduzem mais literalmente como a face Dele. A palavra panim tem vários significados, como “antes”, “na frente de”, “superfície” e “pessoa”,3 e ocorre 2.140 vezes na Bíblia Hebraica.4 O termo grego equivalente é prosopon, usado 76 vezes no Novo Testamento; também com os mesmos dois significados básicos.5

A narrativa bíblica da criação do homem contém imagens implícitas da face de Deus, o que sugere que a primeira coisa que Adão viu quando abriu os olhos foi o rosto divino (Gn 2:7). Ele estava na presença de Deus – em um relacionamento próximo com uma Pessoa divina. A existência de Adão começou ao ver a face de Deus. O calor dessa imagem alude à relação de puro amor entre eles.

Para nós, também, ver a face divina deve ser parte integrante de nossa caminhada com o Senhor, porque os seres humanos foram criados para viver em relacionamento de dependência e intimidade com Ele (Gn 1:26–2:3). Contudo, o pecado rompeu esse relacionamento e, em vez disso, o medo, a culpa e a vergonha passaram a fazer parte de nossa vida. Depois de comer o fruto proibido, Adão e Eva se esconderam e fugiram da presença de Deus (Gn 3:7-10).

Na bênção sacerdotal araônica, o rosto de Deus é mencionado duas vezes. Era o elemento mais desejável: “O Senhor os abençoe e os guarde; o Senhor faça resplandecer o Seu rosto sobre vocês e tenha misericórdia de vocês; o Senhor sobre vocês levante o Seu rosto e lhes dê a paz” (Nm 6:24-26). O brilho da face de Deus voltado a Seu povo expressa alegria e mostra aceitação, favor, respeito e perdão.

Muitos salmos atestam a mesma verdade fundamental: “Senhor, levanta sobre nós a luz do Teu rosto” (Sl 4:6). Em inglês, a New Living Translation diz: “Faze com que Teu rosto sorria para nós, Senhor.” Precisamos do sorriso de Deus, porque o sorriso Dele para nós nos permite sorrir uns para os outros.

Davi não poderia imaginar a vida sem esse favor: “Até quando esconderás de mim o Teu rosto?” (Sl 13:1). No Salmo 11, ele conclui seu pensamento com esta afirmação: “os retos Lhe contemplarão a face” (v. 7). O Senhor disse a Salomão: “Se o Meu povo, […] se humilhar e orar, buscar a Minha face e se afastar dos seus maus caminhos, dos céus o ouvirei, perdoarei o seu pecado e curarei a sua terra” (2Cr 7:14, NVI).

Buscar a face de Deus significa desejar Seu favor e Sua intervenção graciosa: “Agora havia fome […]. Davi buscou a face do Senhor”(2Sm 21:1, ESV). Nessa busca, arrependimento, petições, jejuns e louvores estão incluídos (Jl 2:12-15; Fp 4:6) porque buscar a face divina deve andar de mãos dadas com a total dedicação a Ele. Comparecer diante da face de Deus aponta para visita ao santuário (Dt 31:11; Is 1:12), mas “ninguém deve se apresentar diante de Mim [lit. ver meu rosto] de mãos vazias” (Êx 23:15; 34:20). Assim, a face divina aparece no contexto de expectativas e esperanças de que o Senhor estará com Seu povo, mudará sua situação e o abençoará.

Jacó, Esaú e a face de Deus

A história de Jacó lutando com um estranho e depois se encontrando com seu irmão Esaú é muito esclarecedora, porque toda a narrativa de Gênesis 32 e 33 é composta em torno da palavra “face”. O texto hebraico afirma literalmente que Jacó estava fugindo da face de Esaú (Gn 35:1); assim, “face” aqui significa uma pessoa.

A imagem de Esaú perseguiu Jacó por 20 anos; durante esse tempo, ele nunca visitou sua terra natal, seus pais ou se reconciliou com seu irmão. Portanto, antes que Jacó pudesse se encontrar com Esaú, ele precisava se encontrar com seu Deus. Antes de ver o rosto de seu irmão novamente, ele tinha que ver a face do Senhor.

A palavra face ocorre nesses dois capítulos em lugares cruciais, confirmando seu significado. Esse termo é utilizado quatro vezes em apenas um verso, embora as traduções em português geralmente não captem esse jogo de palavras. Uma tradução literal destaca os pensamentos de Jacó: “Eu cobrirei sua face com esses presentes que vão antes de minha face e, depois, quando eu ver seu rosto, talvez ele levante meu rosto” (Gn 32:20).

Jacó queria apaziguar, pacificar ou acalmar a raiva de Esaú, literalmente, cobrindo o rosto de seu irmão com presentes extravagantes para que ele não visse e se lembrasse do mal que Jacó lhe havia feito. Os muitos presentes foram sua tentativa de mudar a atitude de Esaú em relação a ele. A frase idiomática “levantar a face” significa “aceitar favoravelmente”, “ser gentil”, “perdoar”, “ser amigável” ou “receber outra pessoa”.

Jacó então lutou com “um homem” (Gn 32:24) em quem ele reconheceu uma Pessoa divina (de uma perspectiva cristã, essa Pessoa é identificada com o Cristo pré-encarnado).6 É por isso que ele chamou o lugar de Peniel, que em hebraico significa a “face de Deus”, e raciocinou: “Vi Deus face a face, e a minha vida foi salva” (v. 30). O que Jacó viu na face de Deus? O Senhor lhe deu um novo nome e o abençoou (v. 26-29).

Mais tarde naquela manhã, quando Esaú estava se aproximando dele, Jacó foi ao seu encontro curvando-se diante de seu irmão sete vezes (Gn 33:3). Porque Jacó primeiro se humilhou diante do Senhor, ele agora era capaz de se humilhar diante de seu irmão. E Esaú graciosamente o aceitou. Naquele momento de reconciliação (v. 4), Jacó explodiu em um reconhecimento especial. De acordo com Gênesis 33:10, ele confessou que viu a face de Deus em Esaú: “Se te agradaste de mim, aceita este presente de minha parte, porque ver a tua face é como contemplar a face de Deus; além disso, tu me recebeste tão bem!” (NVI). O que Jacó estava vendo no rosto de seu irmão? As mesmas expressões de amor, compaixão, perdão e graça que ele viu na face do Senhor. O sorriso de Deus em Jacó se reflete na aceitação de Esaú. O que as pessoas leem em nossa face quando interagem conosco?

O que encontrar na face de Deus?

1. A face de Deus nos dá a garantia de Sua presença (Gn 28:15; Mt 28:20; At 18:10).

2. A face de Deus provê estabilidade e equilíbrio emocional em um mundo de solidão, ansiedade e medo. Alguém me ama, cuida de mim e me protege (Jo 14:27; Fp 4:7).7

3. A face de Deus conduz e guia (Êx 33:15).

4. A face de Deus dá força intelectual, porque podemos confiar no infinito conselho e sabedoria divinos (Sl 73:23, 24; Pv 3:5-7).

5. A presença de Deus traz prosperidade e sucesso para cumprir Sua vontade, missão e Seu propósito. Ele capacita Seu povo a ser testemunhas fiéis (At 1:8; cf. Fp 2:13).

6. Ver a face de Deus pelos olhos da fé é a chave para uma vida vitoriosa (Sl 16:8).

7. A face de Deus oferece resistência e perseverança (Hb 11:27; Ap 14:12).

8. A face de Deus nos dá um senso de identidade (Is 6:1-8; 43:1; Gl 3:26-29; 4:5; 1Jo 3:1).

9. A face de Deus significa que Ele zela por nós, fala conosco e ouve nossas orações (Sl 32:8; 33:18).

10. Ver a face de Deus transforma vidas (2Co 3:18; Rm 12:1, 2).

Jesus afirmou: “Bem-aventurados os limpos de coração, porque verão a Deus” (Mt 5:8). Os redimidos, como habitantes da Nova Jerusalém, terão satisfação em ver a face divina. Os verdadeiros crentes verão constantemente Seu semblante, e esse encontro face a face será sua experiência mais elevada e definitiva. João descreve isso com exultação: “Nunca mais haverá qualquer maldição. Nela estará o trono de Deus e do Cordeiro. Os Seus servos o adorarão, contemplarão a Sua face, e na sua testa terão gravado o nome Dele” (Ap 22:3, 4).

A promessa de ver a face de Deus é a cena mais fascinante a respeito da proximidade dos redimidos com o Senhor. Eles viverão para sempre e se alegrarão em Sua presença. Ele estará permanentemente com eles, portanto, nunca mais precisarão buscar Sua face. Os salvos contemplarão o esplendor e a majestade do Senhor, Sua plena glória. E quanto mais conhecerem seu Rei e Salvador, mais ficarão empolgados para servir, obedecer e adorar a Ele. Cada dia, durante toda a eternidade, trará descobertas novas da bondade, do brilho e da grandeza de Deus e de Seu caráter de amor.

Ver a face divina deve ser parte integrante de nossa caminhada com o Senhor, porque os seres humanos foram criados para viver em relacionamento de dependência e intimidade com Ele.

Referências

1 O Salmo 27 foi escrito em forma de estrutura quiástica:

(A) v. 1-3

(B) v. 4

(C) v. 5, 6

(D) v. 7

(E) v. 8

(D’) v. 9, 10

(C’) v. 11, 12

(B’) v. 13

(A’) v. 14

2 Ver F. Brown, S. R. Driver e C. A. Briggs (eds.), A Hebrew and English Lexicon of the Old Testament (Nova York, NY: Houghton Mifflin, 1907), p. 815, 816; William L. Holladay (ed.), A Concise Hebrew and Aramaic Lexicon of the Old Testament (Grand Rapids, MI: Eerdmans, 1988), p. 293, 294.

3 Ver Brown, Driver e Briggs, A Hebrew and English Lexicon, p. 815, 819.

4 Abraham Even-Shoshan (ed.), A New Concordance of the Old Testament: Using the hebrew and aramaic text (Jerusalém: Kiryat-Sefer, 1990), p. 949-952.

5 John R. Kohlenberger III, Edward W. Goodrick e James A. Swanson, The Exhaustive Concordance to the Greek New Testament (Grand Rapids, MI: Zondervan, 1995), p. 861, 862.

6 Jacques B. Doukhan, “Genesis”, Seventh-day Adventist International Bible Commentary (Nampa, ID: Pacific Press, 2016), p. 368, 372.

7 A vida sem Deus é solitária. Esse aspecto foi destacado por Roger Scruton, The Face of God (Londres: Continuum, 2012), p. 153-178.