O Deus Jesus transcende as esferas do tempo e do espaço, e Se estabelece como Criador e Redentor da humanidade

Ao longo da História, a pessoa de Jesus sofreu ataques múltiplos e de diversas formas. Um desses ataques mais ferozes foi a negação de Sua historicidade. Recentemente, contudo, Ele tem sido posto sob fogo cerrado em uma perspectiva muito diferente. Os cientistas agora dizem que crêem na existência histórica de Jesus, mas que, para conhecer Sua pessoa, é necessário eliminar os mitos com os quais Ele ficou associado, por causa dos acréscimos feitos ao registro escrito por Seus seguidores. Afirmam que Jesus não disse todas as coisas nem realizou todos os feitos que a Bíblia Lhe atribui. Jesus precisa, nessa perspectiva, ser despido dos antigos mitos que O cercam, a fim de que o homem moderno possa ouvir Sua verdadeira mensagem.

Outra novidade da nova busca pelo Jesus histórico é que, pela primeira vez, o debate é trazido para o nível do homem comum. Antes disso, as discussões se limitavam ao ambiente acadêmico das universidades secularizadas, mas desde a criação do movimento conhecido como The Jesus Seminar (O Seminário de Jesus), as discussões foram trazidas ao fórum público. O Seminário de Jesus foi criado em 1985 por Robert Funk e John Dominic Crossan, entre outros, com os objetivos de atribuir um grau de consenso acadêmico às falas atribuídas pela Bíblia a Jesus e de tornar públicas suas descobertas. Seu desejo era “liberar” Jesus dos “mitos” a Ele associados.

Muitos dos recentes ataques ao Jesus histórico advêm das tentativas de descobrir o que realmente aconteceu na História. Isso tem produzido uma interessante contradição de métodos e pressuposições entre os cientistas que combinam o otimismo modernista em relação ao método científico, a valorização excessiva da informação nos últimos quinze anos (a assim chamada “Idade Mídia” ou “Idade Líquida”) e o ceticismo pós-moderno. Essa postura é um reflexo do que N. T. Wright chama de “imperialismo cultural do Iluminismo”, uma atitude que considera que somente nos últimos duzentos anos o homem descobriu o verdadeiro sentido da História. Antes disso, ela teria sido escrita por autores que faziam acréscimos livres ao seu relato, costurando fantasia e lenda em um tecido que chamavam de História.

Agora, os cientistas consideram que os evangelhos são narrativas nas quais a memória de Jesus foi embelezada pela presença de elementos míticos que expressam a fé da igreja nEle, e por ficções plausíveis que captavam a atenção dos ouvintes dos primeiros séculos da existência da igreja. Por isso, esses cientistas adotam uma postura que coloca o fardo da prova sobre o texto bíblico. Em outras palavras, todas as atividades que o evangelho atribui a Jesus devem ser consideradas fábulas até que se prove o contrário.

Os membros do Seminário de Jesus estão comprometidos com um naturalismo rígido, que exclui o sobrenatural do registro histórico. Dessa forma, nenhum relato evangélico sobre os milagres de Jesus deve ser considerado autêntico. Eles também negam a possibilidade de Jesus prever o futuro. Como os evangelhos descrevem, com exatidão, a queda de Jerusalém no ano 70, a conseqüência do naturalismo exagerado desses eruditos é que os evangelhos teriam sido escritos depois do ano 70. Em razão disso, os autores do evangelho deixam de ser testemunhas oculares e passam a ser pessoas que coletaram histórias de Jesus e lhes deram a forma de um relato condensado.

Desilusão histórica

A nova busca pelo Jesus histórico não nega a existência dEle, mas o Jesus que é buscado é muito diferente do que é apresentado no Novo Testamento. As culturas populares abraçam o culto da diversidade. Busca-se um Jesus que esteja disponível para ser moldado conforme as necessidades de cada um: o Jesus de Mel Gibson, o Jesus amante de Maria Madalena, e outros. Porém, o que impulsiona essa busca? Segundo o Dr. Wayne Meeks, professor jubilado da Universidade de Yale, autor do livro Jesus is the Question (Jesus é a Pergunta), uma razão para essa tentativa de se criar um Jesus mais ao gosto pós-modernista se deve, principalmente, a certa desilusão, agora geralmente compartilhada pelos cientistas, em relação à História.

No passado, as pessoas investigavam a Bíblia com a sensação de que, sozinhas, poderiam descobrir a verdade das coisas. Após o lluminismo, parece que o “gênio da dúvida” escapou da garrafa e está fora de controle. A ciência alterna momentos de confiança em que defende a validade do método científico e outros em que propõe que todas as coisas são relativas. Como resultado disso, quase todos nos tomamos cínicos.

As alternativas que surgem parecem não ser muitas. Corremos o risco de reverter a um autoritarismo fundamentalista e oportunista ou sucumbir a um relativismo absoluto. E é justamente porque a cristandade, de modo geral, ora faz uma coisa ora faz outra, que muitos são levados a questionar a historicidade de Jesus. Os riscos do autoritarismo e do relativismo advêm de cinco faltas que tendemos a cometer hoje em relação aos nossos métodos de interpretação bíblica e nossas atitudes religiosas.

Hiperliteralismo e hipersimbolismo

A hipervalorização do literalismo nos leva a afirmar que dizer que a Bíblia é verdadeira significa dizer que ela é literal. O sentido pleno de um texto é seu sentido literal. Como resultado, acabamos impondo nossa posição como a única possível e, com freqüência, excomungamos os que discordam de nós. Uma investigação mais atenta à natureza da tipologia e do simbolismo bíblico pode nos ajudar a desenvolver uma postura mais tolerante às pequenas diferenças.

Por outro lado, se descambamos para um hipersimbolismo em que precisamos encontrar uma explicação simbólica plausível para cada elemento das profecias, corremos o risco de gastar muita energia com minúcias insignificantes. E acabamos perdendo de vista o retrato de Cristo que nos é apresentado nesse e em outros textos do Novo Testamento.

A comunhão com Cristo produz enlevo genuíno, mas a religiosidade emotiva produz apenas imitação da real experiência com Ele

Cognitivismo religioso

Com o surgimento de um novo paradigma educacional influenciado pela relatividade e pela física quântica, e a adoção das metodologias construtivis-tas dele derivadas, tendemos, cada vez mais, a imaginar que ter conhecimento é a marca identificadora do cidadão autônomo e livre. Se aplicarmos essa lógica ao âmbito religioso, o conhecimento da doutrina passa a ser elemento definidor da fé que tem uma pessoa. Aqui está uma razão por que os debates teológicos atraem os membros da igreja.

Para ser justo, devo reconhecer que tais debates fazem parte de nossa herança denominacional desde épocas que muito antecedem à sedução de nossos educadores pelas propostas construtivistas. Porém, temo que nossa adesão, cada vez maior, a essa prática educacional voltada para os aspectos cognitivos leve à hipervalorização dos elementos doutrinários em detrimento das experiências de fé e graça que devem ser os elementos centrais da vida cristã: “porque pela graça sois salvos, mediante a fé; e isto não vem de vós; é dom de Deus” (Efés. 2:8). Não devemos abrir mão do papel relevante da revelação divina como expressa no relato bíblico, mas é preciso compreender que a língua é mais que regras da gramática, e saber acerca das coisas que Jesus ensinou não nos isenta de praticar Seus ensinos.

Individualismo

O individualismo é filho primogênito do construtivismo. A reflexão é a meta essencial do paradigma educacional emergente e, para que ela ocorra, muitas vezes é necessário que o indivíduo seja priorizado em detrimento do sujeito. Nessa perspectiva, a construção do conhecimento deve se dar com autonomia e de forma individual. Isso não significa que não haja espaço para a interação social, mas essa acaba subsidiando a aquisição do conhecimento e não a formação de valores. A valorização do indivíduo em detrimento do sujeito acaba por implicar que as necessidades da pessoa devem se sobrepor às exigências da sociedade. Cada um precisa encontrar seu próprio caminho e sua própria felicidade: a ética se toma uma questão de ótica e todas as formas de pensar o relato bíblico acabam relativizadas.

Incessante busca de novidade

Vivemos em uma sociedade capitalista que nos induz a um consumismo inconseqüente em que nosso êxito pessoal é medido pelo novo modelo de telefone celular que exibimos ou pelo televisor plasma que transformamos no altar da família. Como resultado disso, experimentamos verdadeiro comichão em busca de novidades. De certa forma, já fomos advertidos quanto a isso: “pois haverá tempo em que não suportarão a sã doutrina; pelo contrário, cercar-se-ão de mestres segundo as suas próprias cobiças, como que sentindo coceira nos ouvidos.” II Tim. 4:3. Trata-se de verdadeiro “complexo de eureka”.

Menos prejudicial quando fruto da expectativa criada por descobertas científicas como os papiros de Herculâneo, os rolos do Mar Morto, os achados de Nag Hammadi, entre outros, esse complexo descamba inclusive para a invenção de forças perseguidoras camufladas. Não que os cristãos fiéis não mais sejam perseguidos. Qualquer um que tenha freqüentado ambientes secularizados sabe que a perseguição aos cristãos ainda está em voga. Mas nunca fui capaz de compreender por que alguns têm que fazer circular documentos de sua própria fabricação que apontam para uma conspiração contra o remanescente fiel que acaba nunca se desencadeando.

Romantismo

O romantismo é, acima de tudo, uma atitude emocional doentia. E conhecido na História como o “mal do século”. Trata-se de rejeição da realidade, tomando-se opção por uma vida fantasiosa, abstração mental criada por aqueles que dele padecem. Essa deformação da realidade geralmente é acompanhada de sentimentalismo exacerbado que beira o erotismo. Quando damos rédeas soltas ao pensamento religioso e quando este não sofre restrições por parte da razão, é possível que a figura de Jesus assuma os contornos de um amante.

O poder de persuasão do romantismo religioso é bastante forte. Mesmo uma pessoa geralmente tão racional como Albert Schweitzer acabou sucumbindo a ele no final de sua obra The Quets for the His-torical Jesus (A Busca pelo Jesus Histórico). Uma vida de comunhão com Cristo produz sentimentos de enlevo genuínos e benéficos, mas a religiosidade emotiva pode produzir sensações de bem-estar que não passam de mera imitação da real experiência religiosa. “Eu fui ao jardim bem a sós, à fragrância pura e celeste; pude então ouvir doce e meiga voz, a voz gentil do Mestre.” Se uma experiência como essa não for fruto de verdadeira comunhão com Cristo, ela pode simplesmente indicar que o crente sucumbiu ao romantismo religioso. A ótica do consumo sugere que as necessidades dos homens os impelem para os objetos e cria tais necessidades por meio do marketing e das produções hollywoodianas. Essa mesma ótica acrescenta uma dimensão materialista à exclusão máxima do mundo real.

O que quero sugerir é que, embora a nova busca pelo Jesus histórico tenha incorporado metodologias que operam contra as principais denominações cristãs de nossa época, ela pode ser também reflexo de nossas próprias inadequações com respeito à interpretação da pessoa de Jesus e de como O apresentamos àqueles que nunca tiveram encontro pessoal com Ele. Se pudermos diminuir a importância que muitos cristãos agora dão a elementos como o literalismo, o cognitivismo, o individualismo, a busca de novidades e o romantismo, talvez possamos ter mais sucesso em canalizar essa busca em um modo mais positivo e que realmente conduza à pessoa histórica de Jesus.

Autoconsciência de Jesus

A topografia do eu, como proposta por Freud, tem exercido poderosa influência nos estudos acadêmicos acerca da pessoa de Jesus. Segundo Freud, a verdadeira identidade de uma pessoa só pode ser descoberta depois de vários anos de psicanálise. Assim, os cientistas têm tentado analisar a pessoa de Cristo, a fim de descobrir quem Ele pensava ser. De acordo com eles, construções criativas por parte da igreja primitiva moldaram as crenças em Jesus e, por isso, requer-se agora, um verdadeiro trabalho de detetive para se descobrir a autoconsciência de Jesus.

O modelo dialógico de Vigotsky propõe que quanto mais conhecemos nosso “eu”, mais descobrimos o “outro”. Assim, muitos cientistas modernos propõem que, quanto mais os discípulos criavam sua própria identidade, tanto mais também criavam a identidade de Jesus, que teria Se tomado o Cristo principalmente por Sua interação com os discípulos. Essa leitura processualista do desenvolvimento humano, conforme proposta por Norbert Elias, tem trazido os olhares construtivista e interacionista para a dimensão socio-psicológica da compreensão humana e defendido o que se tem convencionado chamar de conexionismo. Todos os seres humanos estariam intimamente ligados em uma rede de consciências, daí a necessidade de nos sentirmos parte de um mundo globalizado, e gastar tanto tempo com a internet e com as comunidades virtuais.

Essa postura radical que contempla a identidade como um processo e não como uma substância pode exercer influência negativa sobre a cristologia da igreja. Por outro lado, ela nos conclama a uma posição mais humilde em face da necessidade de compreensão mais profunda da identidade de Jesus. Não deveria surpreender-nos que as pessoas tenham dificuldades em aceitar a encarnação. Esse episódio evangélico se nos afigura como uma ruptura com a História, que nunca havia testemunhado fenômeno igual e com implicações tão incomensuráveis. Não é difícil aceitar uma versão mais fraca dessa teoria. É verdade mesmo que nos tomamos quem somos através das histórias que nos contam e as que contamos a nosso respeito.

Não seria algo surpreendente se Jesus Se tivesse tomado humano através de Sua interação com outros seres humanos, precisamente do modo como nós fazemos. Tampouco seria surpreendente se Jesus tivesse Se tornado mais e mais consciente acerca de Seu papel como Messias à medida que Seu ministério transcorria em direção àquele momento em que entregaria Sua vida pela raça humana. O que não podemos aceitar é que a idéia de Sua divindade tenha surgido unicamente da necessidade que os discípulos tinham de construir uma identidade para o Messias, que queriam contrapor às autoridades romanas ou a qualquer um que se lhes opusesse.

O homem Jesus é, de certa forma, produto de Sua encarnação e vida entre os homens. Mas o Deus Jesus, não. Este transcende as esferas do tempo e do espaço, e Se estabelece como Criador e Redentor da humanidade: “porque os atributos invisíveis, desde a criação do mundo, tanto o Seu eterno poder, como a Sua divindade, se entendem, e claramente se vêem pelas coisas que estão criadas.” Rom. 1:20.

“Saber acerca do que Jesus ensinou não nos isenta de praticar Seus ensinos”

Embuste científico

A busca pelo Jesus histórico tem sido sempre um empreendimento mais protestante que católico. Os católicos sempre conseguiram conviver, sem grandes dificuldades, com níveis múltiplos de interpretação bíblica. Contudo, desde 1950, até os católicos estão sucumbindo à necessidade de uma busca pelo Jesus histórico. Poucos empreendimentos teológicos têm tido conseqüências tão negativas para a cristandade que as conclusões do movimento do Seminário de Jesus.

O erudito bíblico Jacob Neusner que, mesmo sendo judeu, questiona a agenda do Seminário de Jesus em sua reconstrução do Jesus histórico, disse, não faz muito tempo: “Ou o Seminário de Jesus é o maior embuste científico desde o homem de Piltdown ou ele significa a completa destruição dos estudos neo-testamentários.” Eu espero que seja o primeiro caso.