O equilíbrio da igreja apostólica no livro de Atos e sua aplicacão nos dias atuais

Lucas Alves e Wellington Barbosa

Um olhar sobre o mundo e a postura das pessoas nos leva a constatar um alto índice de polarização no ar. Questões políticas, sociais, econômicas ou ideológicas estão marcadas por um destacado espírito de ruptura, evidenciado pelo discurso do nós contra eles.

Essa característica de nosso tempo também tem influenciado a percepção da vivência na igreja. De modo específico, este artigo toca em algumas polarizações que surgiram no que diz respeito à prática do discipulado. Longe de opinar sobre todos os aspectos dessa discussão, este texto aborda alguns extremos observados nas áreas da pregação, do crescimento de igreja, evangelismo, foco de trabalho e ministério à luz da experiência da comunidade apostólica, conforme Lucas retrata no livro de Atos. Acreditamos que a prática ­bem-sucedida da igreja do primeiro século, que em pouco tempo transtornou o mundo (At 17:6), deve nos inspirar a ser o que Deus deseja que sejamos como Seu povo escolhido.

Jesus ou doutrina?

Ao longo do tempo, algumas pessoas têm situado a ênfase da pregação cristã em dois extremos. Por um lado, existem aqueles que defendem a ideia de que se deve pregar somente sobre o relacionamento com a pessoa de Jesus, tornando a experiência religiosa bastante subjetiva e fluída. Por outro lado, alguns afirmam que a pregação deve ser essencialmente doutrinária e apologética, a fim de fortalecer os crentes nos fundamentos da fé cristã.

Ao observar a igreja apostólica, é notório que ela mantinha o equilíbrio entre esses dois pontos. No Pentecostes (At 2:14-36), o primeiro grande sermão de Pedro teve como argumento principal a pessoa de Jesus. Ele iniciou (v. 14) e concluiu (v. 36) sua mensagem destacando a messianidade de Cristo. Entretanto, logo a seguir, ao descrever o modo de vida dos primeiros cristãos, Lucas afirma que eles “perseveravam na doutrina dos ­apóstolos e na comunhão, no partir do pão e nas orações” (At 2:42). John Stott observa que “os novos convertidos não estavam desfrutando de uma experiência mística que os levou a desprezar sua mente ou a teologia. O anti-intelectualismo e a plenitude do Espírito são mutuamente incompatíveis, porque o Espírito Santo é o Espírito da verdade. Nem os primeiros discípulos imaginaram que, por terem recebido o ­Espírito, Ele seria o único Professor de que precisavam, e podiam dispensar os mestres humanos. Ao contrário, sentavam-se aos pés dos apóstolos, famintos por receber instrução, e perseveravam nela”.1

O discipulado cristão não deve alimentar o movimento pendular que ora enfatiza o relacionamento com Cristo ora destaca a doutrina, mas apresentar Jesus por meio da doutrina e a doutrina por meio de ­Jesus. Nesse sentido, Alberto R. Timm alerta que “jamais deveríamos transformar o relacionamento com Cristo num substituto às verdades bíblicas, nem enaltecer as verdades bíblicas em detrimento do relacionamento com Ele”.2 Assim, uma postura equilibrada, que apresenta Jesus e Sua doutrina, é a salvaguarda contra a espiritualidade abstrata que gera cristãos infrutíferos e o legalismo doutrinário que produz cristãos insuportáveis.

Quantidade ou qualidade?

Outro ponto debatido quando o assunto é o discipulado está relacionado com a qualidade e a quantidade dos novos discípulos. Nas extremidades dessa discussão estão numerólatras e numerófobos. Os primeiros enxergam o discipulado apenas em termos de resultados numéricos e reduzem a avaliação do trabalho pastoral à quantidade de pessoas batizadas em determinado período. Os últimos afirmam que a qualidade está acima da quantidade e que mais importante do que o número de batizados é quantos membros permanecem na igreja ao longo do tempo.

No livro de Atos essa disputa não se sustenta, pois quantidade e qualidade andavam lado a lado na igreja apostólica. Por diversas vezes Lucas menciona, em tom de alegria, como o número de discípulos se expandia, à medida que a mensagem cristã alcançava novos territórios (por exemplo, At 2:41; 4:4; 6:1, 7; 9:31; 11:24; 12:24; 16:5; 17:12; 21:20). Esse crescimento numérico, contudo, não estava dissociado do crescimento espiritual dos novos convertidos. Tanto o retrato de Atos 2:42 a 44 quanto o de Atos 4:32 apontam para uma igreja sólida em seu relacionamento com Deus e com o próximo.

Jay Gallimore, refletindo sobre o papel dos números no trabalho pastoral, faz uma afirmação relevante: “Ao avaliar o que está acontecendo em meu ministério, o número de pessoas que frequentam a igreja e de batismos é muito importante. A questão nunca deve ser se devemos usar os números, mas como os usamos. Se eles forem dissociados do objetivo final, que é desenvolver pessoas que sejam semelhantes a Cristo, então distorcerão a visão.”3

Não podemos ignorar o fato de que, na Bíblia, não existe qualidade estéril. ­Jesus afirmou na parábola do semeador que a semente que cai “em boa terra é o que ouve a Palavra e a compreende; este frutifica e produz a cem, a sessenta e a trinta por um” (Mt 13:23). Ellen White lembra ainda que “o ministro que ora, que possui uma fé viva, apresenta as respectivas obras, e grandes resultados acompanham seu trabalho, apesar dos obstáculos combinados da Terra e do inferno.”4 Inevitavelmente, o discipulado saudável gera muitos frutos para o reino!

Evangelismo pessoal ou público?

Nem mesmo a metodologia evangelística escapou dos debates que envolvem o discipulado. Para alguns, o evangelismo pessoal é a melhor forma de compartilhar a mensagem, abrindo mão de qualquer estratégia vinculada ao evangelismo público. Para outros, o evangelismo público está acima de todas as iniciativas pessoais.

De fato, a polarização entre evangelismo público e pessoal é inexistente no Novo Testamento. Em Atos, os cristãos proclamavam a mensagem a grandes multidões (At 2:6; 14:1), mas também pessoalmente (At 8:26-40) e nas casas (At 5:42; 20:20), ampliando as possibilidades de alcance do evangelho.

Russell Burrill destaca a importância de a igreja ser sensível à variedade de públicos e aberta à diversidade de métodos de alcance. Como especialista em crescimento de igreja, ele sugere que as “igrejas adventistas que crescem reúnem uma mescla de estratégias bem-sucedidas que se adequam às suas congregações e aos seus estilos de ministério”.5

Esse conceito não é recente no adventismo. Em 1895, Ellen White foi enfática ao dizer: “Vocês devem fazer visitas de casa em casa, como fiéis administradores da graça de Cristo. Enquanto trabalham, delineiam e planejam, novos métodos se lhes apresentarão à mente a todo momento, e pelo uso aumentarão as capacidades de seu intelecto. […] Alguns podem trabalhar silenciosamente, despertando interesses, enquanto outros falam em público.”6 O desafio que temos é muito grande, e ­grande deve ser nossa capacidade de articular metodologias que, fundamentadas biblicamente, auxiliem no cumprimento da missão.

Social ou missionário?

Além das questões sobre pregação, crescimento de igreja e evangelismo, outra discussão que também acompanha o tema do discipulado está relacionada ao foco do trabalho. De um lado se encontram aqueles que defendem uma abordagem puramente social, relevante para a comunidade, sem intencionalidade evangelística. Do outro estão os defensores de uma estratégia missionária agressiva, que não se ocupa com as condições sociais e está preocupada em compartilhar a mensagem da salvação com vistas ao reino vindouro.

Novamente, o livro de Atos apresenta a igreja apostólica num caminho intermediário. As necessidades sociais eram atendidas pela comunidade (At 2:44, 46; 4:32-35; 6:1-3), enquanto o evangelho era proclamado com poder a todo povo (At 4:33; 6:4).

Nesse sentido, uma das mais conhecidas declarações de Ellen White equilibra esses dois polos, ajudando a igreja a moderar seu discurso: “Unicamente os métodos de ­Cristo trarão verdadeiro êxito no ­aproximar-se do povo. O Salvador ­misturava-Se com os homens como Alguém que lhes desejava o bem. Manifestava simpatia por eles, ministrava-lhes às necessidades e granjeava-lhes a confiança. Ordenava então: ‘Segue-Me’.”7 Dessa maneira, o discipulado não se reduz à promoção de um evangelho social, mas também não se limita à proclamação das ­boas-novas desconectada da realidade social. Por meio do serviço abnegado, a igreja deve ser as mãos reconhecidas de Cristo para o mundo.

Pressão ou paixão?

Por fim, uma preocupação mais específica do contexto pastoral está relacionada com as lutas que um ministro enfrenta ao se empenhar no discipulado. Uma cena comum em qualquer concílio é a formação de rodas de pastores que compartilham suas experiências ministeriais com amigos que não se veem há certo tempo. Alguns vivem uma fase muito agradável no pastorado, enquanto outros enfrentam várias pressões à frente de suas igrejas.

Em realidade, alguns desafios são comuns a todos os pastores. Não há um único ministro que não tenha que lidar com o peso das expectativas pessoais, congregacionais, sociais e institucionais. Enquanto alguns sucumbem diante das pressões, outros as sublimam com base na paixão pelo ministério.

Pressão e paixão sempre caminharam juntas na experiência dos cristãos apostólicos. A tarefa de fazer discípulos é uma afronta ao reino das trevas e jamais será realizada sem oposição. Em Atos 4:1 a 22, Lucas narra o interrogatório a que Pedro e João foram submetidos perante o Sinédrio. Após tentar constrangê-los, a ordem dos líderes religiosos foi “que absolutamente não falassem, nem ensinassem em o nome de Jesus” (v. 18). E qual foi a reação da igreja? Os irmãos, unanimemente, oraram a Deus e pediram que os apóstolos fossem capacitados a proclamar a Palavra “com toda intrepidez” (v. 29).

Talvez o exemplo apostólico de sofrimento mais destacado seja o de Paulo. Por exemplo, em 2 Coríntios 11:16 a 30, ele listou algumas das situações desafiadores pelas quais passou em seu ministério. Entretanto, apesar das pressões, o apóstolo dos gentios foi capaz de dizer: “Eu de boa vontade me gastarei e ainda me deixarei gastar em prol da vossa alma. Se mais vos amo, serei menos amado?” (2Co 12:15). Em Atos 20:24, perante os efésios, ele afirmou: “Porém em nada considero a vida preciosa para mim mesmo, contanto que complete a minha carreira e o ministério que recebi do Senhor Jesus para testemunhar o evangelho da graça de Deus.”

Portanto, a solução para lidar com essa condição inerente de nossa vocação não consiste em sucumbir diante das pressões nem sublimá-las com base na paixão, mas em encontrar o equilíbrio em Cristo, que “não nos tem dado espírito de covardia, mas de poder, de amor e de moderação” (2Tm 1:7).

Conclusão

A posição equilibrada que encontramos no livro de Atos acerca dos temas polarizados com os quais nos deparamos atualmente deve ser o alvo pelo qual devemos trabalhar. Tanto membros quanto pastores são desafiados a superar esse espírito de ruptura que paira sobre a sociedade, para fazer da igreja um ambiente diferenciado, em que a graça de Deus reine de modo soberano.

Sem querer ser reducionistas quanto à complexidade dos pontos apresentados, cremos que as experiências mencionadas a partir do relato neotestamentário sejam suficientes para abrir um caminho moderado pelo qual o discipulado possa ocorrer, alcançando seu propósito principal: a formação de crentes maduros em ­Jesus Cristo, preparados para compartilhar as ­boas-novas do reino e herdar a salvação eterna. 

Referências

1 John R. W. Stott, The Message of Acts: The Spirit, the church & the world (Leicester, Inglaterra; Downers Grove, IL: InterVarsity Press), p. 82.

2 Alberto R. Timm, “Podemos ainda ser considerados o ‘Povo da Bíblia’?”, Revista Adventista, junho de 2001, p. 16.

3 Jay Gallimore, “Measuring the pastor’s success”, Ministry, maio de 1990, p. 14.

4 Ellen G. White, Ministério Pastoral (Tatuí, SP: Casa Publicadora Brasileira, 2015), p. 18.

5 Russell Burrill, How to Grow an Adventist Church (Fallbrook, CA: Hart Books, 2009), p. 31.

6 Ellen G. White, Ministério para as Cidades (Tatuí, SP: Casa Publicadora Brasileira, 2012), p. 79.

7 Ellen G. White, A Ciência do Bom Viver (Tatuí, SP: Casa Publicadora Brasileira, 2015), p. 49.

Lucas Alves, doutorando em Ministério, é secretário ministerial para a Igreja Adventista na América do Sul

Wellington Barbosa, doutorando em Ministério, é editor da revista Ministério