Antigamente eu pensava que compreendia a fina arte da disciplina. Sempre a via como punição; e algumas vezes envolvida em mágoa. Mas, foi quando estava concluindo o meu tumultuoso primeiro grau que me deparei com uma nova dimensão da disciplina: restauração.

Eu estava empenhado em desafiar determinado professor, e criando um clima mais impróprio para o ensino que o desejado por aquela escola missionária. Um dia o diretor tomou tempo para falar comigo. Sentou-se à minha frente e em 15 minutos mudou a concepção que eu tinha acerca de mim mesmo, minha vida, e meus relacionamentos. O que ele falou naquela ocasião permaneceu comigo durante muito tempo. Ele confiou em mim. Aceitou-me. Falou comigo, valorizou-me e considerou minhas opiniões. Respondi-lhe com a resolução de jamais fazer qualquer coisa que pudesse manchar o conceito que ele mantinha a meu respeito. Da perspectiva de tempo e maturidade, essa experiência convenceu-me de que disciplina é, primariamente, restauração.

Eu havia experimentado uma manifestação de graça. A graça revela a atitude de Deus para conosco. Ele não apenas nos ama. Aceita-nos. Alegra-Se em gastar tempo conosco. O primeiro quadro que as Escrituras nos apresentam de Deus é o de um Criador sorridente com Sua criação. A respeito das coisas trazidas à existência, em cada dia da semana da criação, a Bíblia diz: “E viu Deus que isso era bom”. Mas, ao referir-se à criação dos seres humanos ela afirma: “E viu Deus que isso era muito bom”. Deus muito Se alegrou ao trazer à existência seres criados “à Sua imagem e semelhança”.

O prazer do Pai

Quando Jesus iniciou Seu ministério terrestre, mostrou a satisfação que Deus pela humanidade inteira. Como nosso representante, Ele ouviu do Pai a afirmação: “Este é Meu Filho amado em quem Me comprazo” (Mat. 3:17). Até então, Jesus não ha-via pregado nenhum sermão, curado leprosos, ou dado vista a algum cego. Não havia “feito” qualquer dessas coisas em Seu ministério, todavia Seu Pai agradava-Se nEle, por causa daquilo que Ele era. O valor que Lhe dedicava não era fundamentado em Sua performance, mas em Sua personalidade.

Deus também está prazeroso conosco, considerando que estamos ligados a Ele através de Cristo. A satisfação que sente por nós não é devido a nossa performance, mas em virtude de Sua apreciação da nossa unicidade. Jesus investe tempo com pecadores, embora seu es-tilo de vida O desagrade, porque o ardente desejo de estar junto a Suas criaturas é maior do que a mágoa causada por seus pecados.

Brennan Manning fala a esse respeito: “Aqui está uma revelação que brilha como a estrela da manhã: Jesus veio para os pecadores, para aqueles rejeitados, como cobradores de impostos, e para aqueles que estão desesperados em virtude de suas escolhas erradas e dos sonhos desfeitos. Ele veio para os executivos, meninos de rua, superastros, lavradores, pescadores, toxicômanos, traficantes, aidéticos, vendedores, empregados e patrões. Jesus não apenas fala com essas pessoas mas senta-Se à mesa com elas – cônscio de que Sua mesa, ocupada com pecadores, escandalizará os burocratas religiosos que, investidos de autoridade própria, justificam sua condenação da verdade e rejeição do evangelho da graça”.1 Mais suscintamente Ellen White declara que Ele veio “para oferecer aos homens uma taça das graças celestiais, mediante Sua bênção que santificaria as relações da vida humana.”2

A perspectiva de Deus

Afim de cumprir sua sagrada vocação de viver o exemplo de Cristo, a Igreja deve aceitar a perspectiva divina para a humanidade. Primeiro, Deus nos ama e nos estima, não por causa do que fazemos, mas, por causa do que somos. Segundo, Ele nos aprecia e quer tomar tempo conosco. Terceiro, a Igreja de Cristo é composta de pecadores, pessoas que tomaram muitas decisões erradas na vida, e que estão à espera de respostas para suas indagações. A Igreja não é uma vitrine expondo pessoas ricas, famosas e bonitas. Ela está cheia de membros alquebrados e com o coração sangrando, em virtude dos altos e baixos da vida.

Richard John Neuhaus descreve a verdadeira Igreja de Deus como sendo a igreja visível, não invisível. É esta Igreja, com todas as suas fatigantes e nauseabundas particularidades… A verdadeira Igreja é a igreja verdadeiramente vista.”3 Essa Igreja deve agir em sua comunidade com a mesma atitude de Deus. Então as pessoas encontrarão nela um porto seguro para as aflições da vida. A igreja será um lugar onde os pecadores serão amados, estimados, e apreciados por sua individualidade. O testemunho da Igreja não consiste em que seus membros sejam perfeitos, mas que ela ame tão perfeitamente como faz o Pai celestial.

Quando um doutor da lei perguntou a Jesus: “Quem é o meu próximo?”, ele queria permissão para estabelecer barreiras. Se Jesus definisse um irmão para aquele interlocutor, certamente ele saberia quem não deveria ser seu irmão. O Mestre, no entanto, recusou-Se a fazer isso. Em contrapartida narrou a parábola do Bom Samaritano. Dessa forma, transferiu a vocação de amar, da teoria para a prática. Um irmão é qualquer um que necessite de nosso amor e assistência. A Igreja precisa reconhecer isso.

Verdadeira disciplina, então, é restaurar na igreja um ambiente amoroso, onde a compaixão, amizade e o louvor criam uma diferença tão radical do mundo, que os de fora quererão tornar-se parte do grupo. O alvo da igreja é fazer que “todos sejam um; e como és Tu, ó Pai, em Mim e Eu em Ti…” (João 17:21). Qualquer tentativa para ver a disciplina como punição ou exclusão é negar o objetivo do Evangelho. Deus deseja fazer-nos “crescer e aumentar em amor uns para com os outros…” (I Tess. 3:12). Esse amor não é direcionado apenas aos “bons”, mas, também, aos pecadores maus do rebanho. Somos ordenados a amar, e nisso “progredindo mais e mais” (I Tess. 4:1).

Aceitação dos pecadores não significa conivência com seus pecados. A graça é um negócio de risco; alguns tirarão vantagem de sua liberdade. Outros se alegrarão nela por algum tempo, rejeitando-a depois; e ainda outros permitirão que ela se tome a parte mais importante de sua vida. Muitos querem aceitar a graça e protegê-la de abusos. Estabelecem regras artificiais para mostrar a outras pessoas o que elas devem fazer para “andar na luz”. Legalismo é, geralmente, a tentativa humana de salvaguardar o maravilhoso dom da salvação de Deus. No entanto, apesar de todo o perigo que a liberdade possa oferecer, o cristão é chamado para amar mesmo àqueles que podem, às vezes, fazer mau uso dela.

Não é a aceitação em si mesma que produz licenciosidade. “Pelo contrário, o gesto de aceitar a um irmão o tomará forte. Jamais ele será confundido em questões de certo ou errado, se seu ensinamento e estilo de vida pessoal estabelecerem padrões claros. Por exemplo, uma pessoa que usa linguagem profana não imagina que você aprova seu comportamento, só porque o aceita como indivíduo. Enquanto ela ouve seu falar reverente e aprende a Palavra de Deus; e, mais importante, adquire conhecimento dEle, compreende claramente que a profanação é inconveniente. Mas se você comunica rejeição a essa pessoa, provavelmente ela nunca será alcançada pelo toque de Deus, através de você.

Nosso mundo é um mundo sensível. Recebemos constantemente uma enxurrada de mensagens dizendo-nos que podemos fazer uso de nossa liberdade em nosso caminho. A sensível aproximação que honra a liberdade pessoal pode ser aplicada em cada importante área da vida. O velho modelo “industrial”, onde as decisões eram tomadas de cima para baixo não é um modelo desejável.

O perigo do relativismo

Relativismo secular é o termo usado para descrever o processo de escolher individualmente um curso de ação sem considerações externas. Possivelmente a maior questão com que se defronta a comunidade cristã da graça é o relativismo que rasteja na Igreja. Removendo os absolutos, não há consenso de verdade ou comportamento. Se nada realmente importa, não há necessidade de comprometimento pessoal. Dennis Prager, um historiador e radialista judeu, adverte quanto a isto: “Esta geração acredita que cada coisa é relativamente cada coisa. O bem e o mal não existem. Tudo é relativo. Não há verdade. Cada coisa é determinada pela ordem do dia de alguém.”5

Quando eu era um jovem, no fim dos anos 50 e início dos anos 60, a Igreja oferecia uma clara instrução sobre o que significava ser um cristão adventista do sétimo dia. Bons membros não usavam jóias de nenhum tipo. Éramos vegetarianos puros. As senhoras não usavam qualquer tipo de adorno exterior. Não comíamos produtos de origem suína e não íamos a teatros e cinemas, temerosos de que os anjos nos abandonassem à porta dessas casas de espetáculos. Teologicamente nós possuíamos a verdade, e ainda assim muitos caíam em erro.

A Igreja de hoje desafia cada uma das pressuposições acima mencionadas. Some-se a isso o surgimento de ameaças teológicas, algumas vezes. Teologia às vezes se parece com um outro ecleticismo “a sua maneira”. Mas esse processo realmente tem sido saudável. Com ele, a Igreja ganha uma oportunidade para explorar mais completamente o significado de graça, livrando-se a si mesma de alguma extensão de ornamento cultural. Essa nova visão, no entanto, traz embutido um perigo: falta de parâmetros claramente definidos. Devemos lembrar-nos de que o dom da cruz nunca está separado dos requerimentos da cruz.

Antigamente a Igreja parecia falar exclusivamente do requerimento, ou seja, santificação. Mas, durante os últimos 20 anos, tem-se falado muito mais a respeito do dom. E agora, com a emergência do relativismo, mesmo a definição do requerimento pode mostrar-se um exercício inquietante. Cada membro o define de uma maneira deferente. Há uma variedade muito difundida entre a congregação quanto à santificação dos salvos – um tipo de relativismo congregacional. Na prática, as igrejas têm permitido cada pastor definir o que significa andar com o Senhor. Assim, as instruções variam. A ênfase difere. E a maneira como a disciplina é compreendida ou administrada também varia.

Como é possível conviver com tal crise? Através das Escrituras. A Palavra de Deus suplanta tendências culturais e modifica padrões. O alvo da hermenêutica bíblica é encontrar os princípios eternos e aplicá-los ao contexto cultural na existência. Os padrões mudam freqüentemente, mas os princípios jamais. Aplicações da verdade variam com o tempo e de acordo com o lugar, mas os princípios sobre os quais estão baseadas, não mudam.

Disciplina no Novo Testamento

Em busca da aplicação de princípios bíblicos ao assunto da disciplina na igreja, é interessante lembrar que o Novo Testa-mento usa duas palavras para o processo: Paideo significa educação ou instrução de crianças, com ênfase sobre ensinamento e aprendizado. A outra palavra, gumnaxo, tem a conotação de treinamento e exercício. O significado primário é adequar alguém em alguma coisa na qual não foi inicialmente treinada. Por sua natureza, essa palavra transpira positivo reforço em direção ao alvo de educação e treinamento, sem a sugestão de punir ou banir do companheirismo. O evangelho da graça compele a igreja a providenciar um clima onde ensinamento e aprendizado combinam com treinamento e exercício. A igreja necessita ser como um lugar seguro, onde podemos falhar e, todavia, ser amados e ensinados nos requerimentos de Cristo para a nossa vida.

Os líderes religiosos dos dias de Cristo não providenciaram um porto seguro para os pecadores. Eram condenatórios e juizes autonomeados, como quando eles arrastaram a mulher apanhada em adultério. Jesus não excusou ou negou seu pecado. Ele enalteceu o princípio de pureza sexual, ao mesmo tempo em que apontava um novo tipo de comportamento. Em lugar de condenar a mulher, Ele a amou, aceitou-a e perdoou. Disse: “Nem Eu tampouco te condeno. Vai, e não peques mais” (João 8:10 e 11).

Na parábola do Filho Pródigo, Jesus retratou a disposição de Deus em aceitar o retomo dos pecadores, ao descrever o pai colocando uma nova veste em seu filho (Luc. 15:22). Isso deve ter sido chocante para Seus ouvintes. E enquanto Ele continuava falando do anel colocado no dedo do pródigo, o povo mal respirava. O anel significava acesso do filho às posses do pai. Justamente o filho que esbanjara toda a sua herança, agora tem livre acesso às riquezas paternas. Tudo o que o pai possuía era seu. Para muitos, esse era um quadro muito radical a respeito de Deus.

Ainda hoje, poucos dentre nós permitiriamos a nossos filhos desobedientes terem acesso a muitas coisas que possuímos, mesmo que eles dessem provas de que se tomaram corretos. Entretanto, através da parábola, verificamos que é o poder positivo da graça que estimula o arrependimento. Quando pecadores vêm a profundidade do amor e da aceitação de Deus, sua resistência definha e um desejo de agradar-Lhe invade o coração. Infelizmente, muita medida disciplinar tomada em nome de Cristo, é antes uma negação da graça, em lugar de aplicação dos Seus princípios eternos.

O pai da história contada por Cristo promoveu uma festa pelo filho que retomava. Uma festa revela o valor e a alegria sentidos em relação ao objeto de sua atenção. Quando crianças comemoram seu aniversário, a atenção da família centraliza-se no aniversariante. Ele sabe que é amado e apreciado. Quem sabe, se a igreja realizasse mais festas pelas pessoas que retomam a ela, isso se repetiría cem vezes mais do que acontece atualmente.

Viver no centro da graça é experimentar a apreciação, o amor, a aceitação e o perdão de Deus. Uma vez que as pessoas O contemplem, as palavras “vai, e não peques mais” soam atraindo a urgente rendição da vida a Cristo, e crescimento nEle.

Pequenos grupos

 A melhor maneira de expressar estima e apreciação deveria ser a formação de pequenos grupos. Adotar uma atmosfera de alegria e amor, unidos à aceitação, deve ser o modo mais compatível para experimentar o verdadeiro significado da disciplina. Pequenos grupos provêm maneiras para aprendizado na vontade do Senhor. Estudar, orar e partilhar juntos são atitudes que desenvolvem uma disciplina que guia e protege os cristãos em sua viagem para o reino. As forças são readquiridas e renovadas quando se partilha mutuamente lutas e vitórias. As considerações de cada um produzem incentivo para uma entrega profunda e estabeleci-mento de compromissos perenes.

Quando negligenciamos os princípios da graça de Deus, é possível que qualquer tentativa de purificar a Igreja simplesmente limite seu crescimento espiritual. Disciplina eclesiástica, baseada sobre a graça, é muito diferente do tradicional modelo de descobrir peca-dos, decidir quem é culpado e, então, censurar ou desligar da comunhão. O modelo da graça é trabalhoso e requer paciência com o errante. Confiar na operação interior, efetuada pelo Espírito Santo, pode ser um processo demorado até que Ele revele o intento do coração.

Paulo fala da disciplina eclesiástica em I Coríntios 5: “Mas agora vos escrevo que não vos associeis com alguém que, dizendo-se irmão, for impuro, ou avarento, ou idólatra, ou maldizente, ou beberrão, ou roubador; com esse tal nem ainda comais” (v. 11). O homem encontrado em tal situação deveria ser desligado da comunhão – não por ser mais pecador que os demais, mas por causa da persistência no pecado. Essa pode ser a única explicação, desde que o próprio Jesus cercou-Se do mesmo tipo de pessoas das quais Paulo aconselha os cristãos Coríntios a afastarem-se.

Jesus não Se distanciou delas pelo fato de serem muito pecadoras. Pelo contrário, aproximou-Se, justamente porque sabia que estavam enfermas pelo pecado. Comeu com elas. Convidou para que se tomassem Seus discípulos. Até mesmo permitiu que uma mulher adúltera tocasse Seus pés. No entanto, Jesus falou diretamente com aqueles cujos corações entrincheiravam-se contra o poder do Seu amor. Ele disse: “Estes sofrerão juízo muito mais severo” (Luc. 20:47).

A Igreja deve proteger-se daqueles indivíduos que permanecem insubmissos à maneira amorosa com que Deus os trata. Muitos que despedaçam o corpo de Cristo deveriam enfrentar a disciplina antes que destruam o espírito de unidade. Se persistem em atacar o corpo de Cristo, devem ser afastados da comunhão e tratados como gentios e publicanos (Mat. 18:17). Em outras palavras, a igreja deve tratá-los como pessoas pelas quais Cristo morreu, buscando ganhá-las outras vez.

Os evangelhos contêm muitas advertências contra os que oprimem o povo de Deus. Muito freqüentemente a igreja mira sua disciplina para as pessoas cujos pecados são flagrantes, mas negligencia chamar às contas os que destroem o ambiente de fraternidade. Nós não podemos permitir que lobos permaneçam com as ovelhas, se que-remos prover um porto seguro para os pecadores arrependidos. A igreja deve cuidar bastante para oferecer uma disciplina com toque suave.

Referências:

  • 1. Brennan Manning, The Ragamuffin Gospel, págs. 19 e 20
  • 2. Ellen White, O Desejado de Todas as Nações, pág. 144.
  • 3. Richard John Neuhaus, Freedom for Ministry, pág. 9.
  • 4. Jerry Cook e Stanley Baldwin, Love, Acceptance, and Forgiveness, pág. 19.
  • 5. Dennis Prager, entrevista publicada em Door, No-vembro/Dezembro de 1990, pág. 11.