ALGUNS DOS MOMENTOS MAIS SIGNIFICATIVOS DA VIDA PODEM VIVER-SE À SOMBRA DA IMINÊNCIA DA MORTE

DONALD C. BEATTY

(Vice-diretor do Serviço de Capelães da Administração de Veteranos, Washington, D. C., E. U. A.)

Cremos que nossos pastôres, médicos, enfemeiros e instrutores bíblicos apreciarão a leitura deste artigo. O autor, munido de ampla e valiosa experiência, aborda com acêrto êste tema que encontra eco nas fibras mais sensíveis do coração humano. — N. da R.

“NESTE local paravam os peregrinos aguardando a hora feliz da sua partida, quando se divulgou a notícia de que chegara ao povoado um mensageiro da Cidade Celestial, com novas de grande importância para uma tal Cristã, viúva de Cristão, o peregrino. Perguntou-se por ela, e logo deram como a casa em que se alojava. Entregou-lhe, então, o mensageiro uma carta, cujo conteúdo era o seguinte: ‘Salve, boa mulher! Tem esta o fim de fazer-te saber que o Mestre te chama, e espera que, vestida de imortalidade, compareças perante Sua presença dentro do prazo de dez dias.’

“Vendo Cristã que sua hora chegara, e que haveria de ser a primeira de seu grupo a atravessar o rio, mandou chamar Grande Coração para participar-lhe a notícia. Disse ‘êste que se alegrava muito da notícia, e mais se teria alegrado se o mensageiro o houvesse chamado. Pediu-lhe então Cristã conselho no tocante aos preparativos para a viagem. O guia forneceu-lhe tôdas as informações de que necessitava, e acrescentou: ‘E nós, que te sobrevivemos, acompanhar-te-emos até à margem.’

“Em seguida, chamando os filhos, abençoou-os, dizendo-lhes que ainda reconhecia com grande satisfação o sinal que lhes pusera na testa; alegrava-se muito de vê-los ao seu lado, e de que houvessem conservado tão brancas as vestes. Por fim legou aos pobres o pouco que possuía, e instou com os filhos e filhas a que estivessem atentos ao momento em que o mensageiro viesse buscá-los.” — Bunyan, La Peregrina, págs. 184 e 185.

Certamente os cristãos modernos não estão dispostos a aceitar a proximidade do fim de sua vida terrena, na maneira em que o fêz Cristã, protagonista da história de Bunyan. Não desejamos enfrentar-nos com a realidade da morte. Não queremos dela falar. E isto é prova firme de que muita gente nem sequer deseja nela pensar. Por isso nos valemos de um subterfúgio. Dizemo-nos: “Será melhor que o paciente não saiba da gravidade do seu estado.” É comum que embora o melhor juízo médico indique que o fim está próximo, mantenha-se a pretensão de que, conquanto seja certo que a situação é grave, não é crítica. Mais de um paciente morre na inconsciência do estado de coma, do qual não se recuperará, e não terá a oportunidade de conversar com seus queridos. As despedidas, comuns ao partir para uma curta ausência, amiúde são negadas a quem empreenderá a grande viagem. Existe um desapiedado convencionalismo, uma conspiração do silêncio que tornam dificultoso, senão impossível, que a pessoa gravemente enfêrma fale de sua morte iminente.

Depois de realizada a cerimônia fúnebre de uma senhora de oitenta anos de idade (para quem, por coincidência, fôra lida a despedida de Cristã), ouviu-se dizer a uma das filhas que com ela haviam estado nos últimos dias: “Durante a última semana mamãe começou a pensar que não mais melhoraria, mas eu não a deixei falar disso.” Essa filha pensava haver feito coisa acertada. Esperava que o haver ela sufocado o desejo materno de falar sôbre o fim de sua vida, seria aprovado pelos ouvintes. E houve, com efeito, muitos movimentos de cabeça aprobatórios, como se sua ação houvesse sido natural e judiciosa.

Disse um capelão, ao relatar suas experiências com os moribundos, que o procedimento adotado nos hospitais era o de nunca dar a entender aos pacientes gravemente enfermos, que porvàvelmente se achavam próximos do fim de sua vida. Os médicos do hospital, acrescentou, nunca informam o paciente de que não há de restabelecer-se. Instruem-se as enfermeiras para que não respondam a perguntas nesse sentido, ou, pelo menos, dissimulem a gravidade da enfermidade de quem as interroga. E considerava-se, mesmo, que o capelão cometera êrro ao permitir que os pacientes falassem da possibilidade de morte próxima.

E êstes não são casos isolados nem situações fora do comum. Ao contrário, o empenho para que o enfêrmo não encare francamente a probabilidade do fim da existência terrena, parece ser mais uma regra do que exceção.

Por Que Havemos de Falar Dela?

Pareceria que em nosso tempo a idéia da instabilidade da existência humana haja penetrado no pensamento e sentimentos de tôda pessoa. Sabe-mos que a morte chega a todos. Por certo, quanto mais jovens formos, mais inclinados nos sentiremos a pensar em que chegará para os demais e não para nós. Mas todos estamos convencidos de que alguma vez nos tocará a hora de morrer. Entretanto êste convencimento é aceito pela inteligência e não pelos sentimentos. Sabemos que é uma verdade, mas teoricamente, não como coisa real aplicável a nós também. Talvez isto origine em parte a facilidade com que tratamos de não falar nem mesmo pensar neste assunto.

Procedemos acertadamente ao tratar de não tocar no assunto do fim da existência? É certo como pensam alguns, que o simples reconhecimento do provável desenlace de uma enfermidade grave precipita a morte, e de outro modo esta não ocorrería? Pensam bem os médicos que sustêm que não deveria dizer-se a nenhum paciente, sob nenhuma circunstância, que provavelmente não haverá de restabelecer-se? Verdade é que para muitos enfermos não é necessário dizer-lhes com essa palavras. Têm êles um modo surpreendentemente certo de apreciar a situação. Às vêzes criam voluntàriamente um pequeno drama de engano, fazendo com que seus amigos e parentes considerem sua enfermidade como um contratempo temporário, ao passo que estão intimamente convencidos de que a morte está próxima. Deixar-nos-emos arrastar nós também por êste intento de escapar de uma das realidades mais solenes da vida?

Uma rápida resposta a êste interrogatório faz-nos volver à pergunta que encabeça êste capítulo. Por que havemos de falar dela? Que se ganha com dizer a uma pessoa que ela se encontra gravemente enfêrma? Se há de morrer, morrerá, e se se restabelece, que vantagem há em haver-lhe falado? Por certo não é possível dar uma única resposta a essas perguntas. Temos, porém, uma história verídica como exemplo. Benjamim e Alice haviam convivido durante vinte e sete anos. O filho mais velho já estava casado e vivia noutra cidade. Os outros estudavam no colégio. Alice adoeceu e havia já várias semanas estava no hospital da localidade. Certo dia Benjamim foi ter com o pastor e despejou-lhe o coração angustiado. “É muito provável, disse, que Alice não melhore. Os médicos já me informaram do estado dela. E ela não conhece a gravidade do seu estado!”

Pouco depois o pastor visitou Alice, e ela lhe falou serenamente de sua enfermidade grave; disse-lhe que não experimentava melhora nenhuma, e se a situação não mudasse, nunca mais se restabelecería. “Mas estou um pouco triste por Benjamim. Êle não sabe da gravidade do meu estado!”

A resposta do pastor foi mais ou menos esta: “Todos esperamos que a senhora se restabeleça. Sei que os médicos lhe estão dedicando cuidado especial. Mas se a senhora sente isso, por que não fala a respeito, a Benjamim? Se êle mostrar desejo de falar sôbre o assunto, não o dissuada.” Falando de-pois com Benjamim, fêz-lhe quase a mesma sugestão: Se Alice quisesse falar-lhe, não a impedisse.

Dois dias mais tarde Benjamim contou o acontecido, com lágrimas nos olhos, mas com o rosto que refletia uma luz interior. Êle e Alice haviam revivido sua vida de casados. Haviam falado dos filhos e das esperanças que nêles tinham. Ambos haviam evocado os pequenos incidentes, ora tristes ora alegres, de seus primeiros anos. Durante alguns momentos se haviam limitado a conservar as mãos unidas sem pronunciar uma palavra. Agora Alice estava em estado de coma. Parecia não reconhecê-lo quando entrava no quarto ou dêle saía. Mas “haviam consertado tudo”.

Não é mister que a morte seja uma calamidade irremediável. Às vêzes, por certo, aterra-nos ou desanima a maneira em que abrevia a vida que promete. Mas, amiúde, sobrevém como a culminação ou coroação de uma vida bem vivida. Nestas circunstâncias, parece inútil, se não quase cruel, não dar lugar a que a pessoa faça uma recapitulação da vida passada e expresse seu amor e afeto àqueles que hão de ficar neste mundo. Por isto dizíamos a princípio que alguns dos momentos mais significativos da vida podem reviver-se à sombra da iminência da morte. Não deveria, acaso, aceitar-se com reverência esta experiência, em lugar de considerá-la um acontecimento fora do comum?

Seguramente muita gente se surpreenderá ao ver quão amiúde quem vive no vale da sombra da morte deseja falar livremente dêsse grande acontecimento que se aproxima. Uma dessas pessoas era uma mulher idosa que, nas últimas fases do câncer, estava sendo tratada na casa do filho e da nora. Amigos e vizinhos visitavam-na assiduamente, estando ela acamada. Todos queriam ajudá-la de alguma maneira. Muitos dêles lhe dirigiam palavras de animação — ou pelo menos assim o pensavam. Falavam do que faria quando se restabelecesse, e tratavam de fazer-lhe sentir que estava de muito bom semblante, apesar de que tinha sôbre o criado-mudo um espelho de que se utilizava.

Um ministro chegado de uma cidade distante, informado da gravidade de seu estado, e percebendo com acêrto que ela estava mais bem informada que ninguém de seu estado real, abordou o assunto, dizendo-lhe: “Irmã Isabel: informaram-me ser muito difícil que se restabeleça.” Sua resposta foi instantânea: “Oh! sente-se, por favor aqui junto a mim, para conversarmos! O senhor é a primeira pessoa com quem posso falar, depois de muito tempo. Os demais me falaram do muito que poderei trabalhar em meu jardim nesta nesta primavera. Mas, então, eu não mais estarei aqui!’’

Prosseguiram falando de muitas outras coisas relacionadas com os seus últimos dias. E sem que ninguém com ela instasse, começou a falar das satisfações que lhe haviam proporcionado os filhos; de sua pena de não poder ver crescerem os netos; de sua esperança de haver cumprido sua missão, e de que seus últimos dias fôssem isentos de responsabilidades. Mencionou, também, pensamentos acêrca da vida futura e o temor de que lhe sobreviesse a morte antes de estar inteiramente preparada para enfrentá-la.

Disse-lhe o pastor que se vivera valorosamente, muito provável seria que haveria de morrer da mesma maneira. Considerava que seus últimos atos neste mundo concordassem com o que realizara a vida tôda. Seus amigos e parentes compreenderíam que se chorava, essas lágrimas revelariam o seu estado de fraqueza física. Falaria dessas coisas aos filhos? Sim, fá-lo-ia, caso não lhes fôsse muito penoso.

Quando os filhos compreenderam os anseios da mãe por falar-lhes do que sentia, decidiram-se a escutá-la, pois assim o desejava. As últimas semanas em que estêve consciente abundaram em tranqüilas satisfações, tanto para ela como para a família. Nunca deixaram de estar agradecidos por êsses últimos dias de intimidade passados juntos.

Falaremos, então, acêrca da morte?