O livro de Samuel começa com a experiência de Elcana e suas esposas. “Tinha ele duas mulheres: uma se chamava Ana, e a outra Penina; Penina tinha filhos; Ana, porém, não os tinha” (I Sam. 1:2). Inconformada com sua esterilidade, Ana se põe a orar insistentemente a Deus, pedindo que lhe dê um filho (vs. 9-18).

Pelo conteúdo do livro de Samuel, o seu início não poderia ser mais apropriado. Ele começa com uma mulher estéril, derramando sua alma perante o Senhor. Ora, angustiada e insistentemente, por um filho. Somente ela sabia o quanto a humilhação sofrida por parte de sua rival Penina a incomodava, bem como a falta que fazia um líder que Deus pudesse usar. Aqui, Ana pode ser vista como um tipo de Israel; com uma diferença: ela faz o que Israel não está fazendo. Espiritualmente estéril, a nação não clamava a Deus por mudanças.

Na Bíblia hebraica, o livro de Samuel encontra-se imediatamente após o livro de Juízes, como se este fosse uma introdução àquele. Notemos como o livro de Juízes termina: “Naqueles dias, não havia rei em Israel; cada um fazia o que achava mais reto” (Juízes 21:25). Esse verso resume tudo o que estava acontecendo naqueles dias. Mas enquanto a esterilidade de Ana a incomodava, Israel não parecia muito preocupado, embora sua situação fosse um tanto crítica. Jamais deveríamos, como líderes, ficar conformados com a esterilidade de nossas congregações. Deveríamos clamar para que Deus faça das nossas comunidades estéreis agrupamentos férteis, frutíferos.

Ana está clamando. Nem se alimenta. É bom lembrar que, na experiência de adoração em Israel, a comida era um fator importante. Fazia parte da própria adoração. Era uma espécie de celebração da bondade de Deus, Mas Ana está jejuando, não para dobrar ou convencer a Deus, mas para saber o que estava errado no seu relacionamento com Ele. Muitas vezes oramos, não para saber qual a vontade de Deus para nós, mas para que Ele faça a nossa vontade. Com Ana é diferente. Ela quer saber o que há de errado em sua vida. Recusa-se a agir como se tudo estivesse bem. Muitos descrentes pensam que estamos enganando-nos a nós mesmos e, por isso, não se deixam atrair pelo evangelho que pregamos. Ana é sincera. Abre seu coração a Deus, derrama sua alma em adoração.

Eli, o sacerdote

O pedido de Ana por um filho não é um sentimento egoísta. O filho não é somente para ela, mas também para a nação. Conforme se vê, Samuel é, depois de Moisés, um dos personagens mais proeminentes do Velho Testamento. O nome que ela dá ao seu filho é interessante. Existem várias explicações sobre o seu significado, mas todas vão praticamente na mesma direção. Pessoalmente, prefiro aquela segundo a qual Samuel significa “pedido de Deus”. Seu nascimento foi uma resposta direta ao pedido de sua mãe. Ana então o dedicou ao Senhor.

Samuel seria o último dos juízes e o primeiro dos profetas. Ele deveria liderar a transição da teocracia para a monarquia. Dentro desse cenário de transição, há um personagem chamado Eli, de cuja liderança temos muito o que aprender. Não apenas com seus acertos, mas, principalmente, com os seus erros. Enquanto Ana orava, Eli a estava observando. Ele era uma espécie de rei; pelo menos essa é a ideia no relato original hebraico. Seu trabalho era proteger o sagrado na casa de Deus. E enquanto observava Ana orando, a impressão que teve foi a de que ela estava embriagada, e, em sua responsabilidade como vigia da casa do Senhor, advertiu: “Até quando estarás tu embriagada? Aparta de ti esse vinho!” (v. 14).

É uma tristeza quando um líder não sabe diferenciar entre a angústia de alma de uma pessoa e um estado de embriaguez. É bem verdade que nos tempos do Velho Testamento não havia o costume de orar silenciosamente. Esse era um costume dos pagãos. E Ana estava orando dessa forma. No entanto, aquela não era uma oração qualquer, rotineira, que devesse seguir os moldes litúrgicos. Ela estava triste. Chorando. Angustiada. Derramando sua alma perante o Senhor.

O sacerdote não teve sabedoria espiritual para discernir entre uma oração sincera e uma adoração pagã. Uma atitude lamentável. Quando falta discernimento por parte de um líder, o que se pode esperar do povo?

Ana aceitou a orientação de Eli, mesmo sabendo que ela carecia de discernimento. Voltou para casa e continuou seu relacionamento normal com o esposo. E concebeu Samuel. Deu-o à luz, no tempo aprazado, e após desmamá-lo levou-o ao templo entregando-o ao Senhor, aos cuidados de Eli.

Mensageiro de Deus

Os filhos de Eli – Hofni e Finéias – transgrediram as leis que limitavam a porção dos sacerdotes nos sacrifícios, chegando a exigir a carne antes que o sacrifício fosse oferecido. Como se isso não bastasse, usavam da autoridade que tinham para obrigar as mulheres que serviam no templo a se prostituírem com eles. Tratavam com desdém as coisas de Deus. Para eles, trabalhar para o Senhor, no lugar sagrado, não fazia qualquer diferença. Por isso o filho de Ana iria substituí-los futuramente.

Diante da situação, o menino Samuel foi usado como mensageiro de Deus para advertir o sacerdote Eli: “Disse o Senhor a Samuel: Eis que vou fazer uma coisa em Israel, a qual todo o que a ouvir lhe tinirão ambos os ouvidos. Naquele dia suscitarei contra Eli tudo quanto tenho falado com respeito à sua casa: começarei e o cumprirei. Porque já lhe disse que julgarei a sua casa para sempre, pela iniquidade que ele bem conhecia, porque seus filhos se fizeram execráveis, e ele os não repreendeu. Portanto, jurei à casa de Eli que nunca mais lhe será expiada a iniquidade, nem com sacrifício, nem com oferta de manjares” (I Sam. 3:1 1-14).

Essa advertência foi comunicada na íntegra a Eli através do menino Samuel e ele reconheceu que vinha do Senhor: “Então, Samuel lhe referiu tudo, e nada lhe encobriu. E disse Eli: É o Senhor: faça o que bem Lhe aprouver” (v. 18). Porém, não tomou nenhuma providência.

Segundo os versos 27 a 30, Deus comissiona a um homem o anúncio da ruína dos filhos de Eli. Não sabemos quem é o tal homem, mas Deus o sabe. Embora Eli seja bem conhecido de todos, o Senhor necessita usar um desconhecido para lhe dar uma mensagem. Na censura feita, é dito que Eli estava honrando mais a seus filhos do que a Deus, permitindo, inclusive, que se apropriassem do melhor das ofertas, deixando para Deus somente o que era desprezível.

Apesar de tudo o que estava acontecendo, Eli ainda era o grande líder. As pessoas ainda o viam como tal, embora estivesse vivendo uma vida vazia. Em seu lugar, ministrava o jovem Samuel. “Naqueles dias, a palavra do Senhor era mui rara” (I Sam. 3:1). Havia um silêncio da parte de Deus. Não porque Ele não quisesse falar, ou não pudesse, mas Eli não estava ouvindo. Enquanto isso, Samuel estava quase para ver o Senhor. Deus queria que Samuel se aproximasse de Eli para que este percebesse o que estava acontecendo. Deixara de falar com Eli, mas falava com Samuel. Deus fala a quem quer ouvir. Não corramos o risco de perder a eternidade por não darmos ouvidos à voz de Deus. Há muitos líderes que estão perdendo a vocação, o ministério, a família e até a salvação, por não ouvirem o conselho de Deus.

É curioso como Eli se mostrou pronto a repreender uma mulher que orava, mas não repreendeu seus filhos, adúlteros e ladrões.

O julgamento divino

Eli não estava sendo cuidadoso com as boas coisas que Deus lhe havia outorgado. Por isso seu sacerdócio não seria para sempre, como o Senhor havia dito. A ideia, no original hebraico, é que seria eterno até que outra coisa fosse dita. Deus nos tem abençoado com dons especiais e privilégios, como o de trabalhar em Sua Causa. Temos nós lidado sabiamente com essas coisas?

No julgamento que Deus trouxe sobre Eli, uma nação pagã foi utilizada: “Então, pelejaram os filisteus: Israel foi derrotado, e cada um fugiu para a sua tenda: foi grande a derrota, pois foram mortos de Israel trinta mil homens de pé. Foi tomada a arca de Deus, e mortos os dois filhos de Eli, Hofni e Finéias” (I Sam. 4:10 e 11).

A derrota sofrida por Israel não poderia ser maior e mais vexatória. Além de sofrer uma grande baixa, os dois filhos de Eli foram mortos e ainda perderam aquilo que era o símbolo da presença de Deus com eles: a Arca do Senhor. Quando o mensageiro levou a trágica notícia, Eli caiu, quebrou o pescoço e morreu. Ele era mais culpado do que seus filhos. Poderia tê-los corrigido, mas não o fez. Por isso, Deus não poderia julgar somente os filhos.

Mas as consequências daquela tragédia não param por aqui. A nora de Eli teve um filho, cujo nome, Icabode, significa “foi-se a glória”. Diferente de Ana cujo filho tinha um nome que significava “presente de Deus”. Era apenas o início do julgamento divino sobre a casa de Eli.

Deus vê a liderança de Sua obra com muita seriedade. Em quaisquer níveis, precisamos exercê-la com cuidado e santa responsabilidade.

A conivência de Eli com os pecados dos seus filhos resultou no julgamento divino através da morte deles, a brutal matança dos sacerdotes em Nebo, a própria morte do sacerdote e, finalmente, a expulsão de Abiatar do sacerdócio: “Expulsou, pois, Salomão a Abiatar, para que não fosse mais sacerdote do Senhor, cumprindo, assim, a palavra que o Senhor dissera sobre a casa de Eli, em Silo.” (I Reis 2:27).

Eli julgou a Israel durante 40 anos. No entanto, seu trabalho foi maculado pelo sacrilégio dos seus filhos, e pelo fato de não tê-los expulsado de seu sagrado ofício. Deus não pôde deixar impune tal ato. Ele leva muito a sério Seus líderes e o trabalho que realizam.

JOSÉ PEREIRA DOS SANTOS, Secretário ministerial da Associação Paulista Leste