As narrativas da Ceia do Senhor no Novo Testamento, acham-se representadas em duas diferentes tradições que se encontram principalmente em alguns relatos nos Evangelhos e na Primeira Epístola aos Coríntios. Encontramos diversos relatos nos Evangelhos, nos quais se fala de Jesus partindo o pão antes e depois da última ceia, bem como de outras narrativas relacionadas com Ele partindo o pão, conhecido como a Eucaristia. Na Igreja Católica, o sacramento da Eucaristia é conhecido por diversos nomes, tais como: Santa Comunhão, Ceia do Senhor e Missa. Este sacramento é celebrado e entendido como um descendente direto da última ceia,1 observada por Jesus e Seus discípulos e pela igreja primitiva.

Em tudo o que se tem escrito com respeito à Ceia do Senhor, o problema principal gira em torno de várias perguntas relacionadas com isso, as quais são interpretadas e respondidas de várias maneiras. A. Schweitzer mostra que a crítica sempre gira em torno dessas perguntas. Os eruditos investigam se o ambiente que cerca o estabelecimento das instituições é defensável e se a exegese desses fatos é correta.2 A maioria deles tem que ver com o assunto da cronologia e com a relação que existe entre a Ceia do Senhor e a Páscoa.

Neste artigo, limitar-nos-emos a estudar o fato histórico da última Ceia do Senhor; a perguntar que espécie de ceia foi ela; e, finalmente, a analisar seu significado.

MARCO HISTÓRICO

A Ceia do Senhor tem sido objeto de muitos e recentes debates entre os eruditos. O centro desse debate é a relação entre a Ceia do Senhor e a Páscoa judaica. Antecedentes daquela refeição, a qual Jesus e Seus seguidores tomaram juntos no aposento alto, são encontrados no mundo antigo. As pessoas comiam principalmente para satisfazer sua fome e sentir o prazer proporcionado pela comida e a bebida.3 Não obstante, havia outros motivos além dessa razão básica. B. Klappert comenta que, nas religiões antigas, o comer e o beber eram simbolicamente orientados; isto é, o companheirismo particular e público, estavam ligados com o aspecto sagrado.4 As pessoas nutriam o pensamento de que se as famílias e os clãs se agrupassem em torno de um banquete religioso, recebiam por intermédio deste uma porção do poder divino, consumando a reunião com a Divindade.

Na religião helenística, essa refeição Deipnón tinha o sentido de uma refeição sagrada, era coisa comum e desempenhava um papel importante. Cria-se, como em outras práticas religiosas antigas, que eles se assentavam à Trapeza Tou-Theou (a mesa de Deus) e, por meio desse banquete, entravam em comunhão com a Divindade. O termo Deipnón não desempenha um papel importante na LXX. As festividades e sacrifícios realizados nos tempos do Antigo Testamento, relacionados com alimentos de cunho cultuai, apresentam as pessoas comendo diante do Senhor e regozijando-se (Deut. 12:7).

O autor alemão já citado, B. Klappert, faz referência ao período em que a Páscoa era comida por Israel, o período nômade. O cordeiro era morto pelo chefe da família no dia 14 de Nisã, ao entardecer (Êxo. 12:8).5 Depois da reforma de Josias (621 A.C), a morte dos cordeiros e o comer a Páscoa passaram a ser efetuados em Jerusalém. No tempo de Jesus, o costume de celebrar a Páscoa continuava relembrando a aplicação do sangue sobre o umbral da porta e a libertação do povo de Israel.

No conceito posterior do judaísmo, encontram-se paralelos com a refeição cultuai além da comunidade de Qumran no Mar Morto. I. H. Marshall, diz que o mais importante para nós, no que respeita a esta seita de Qumran, é que eles tinham refeição em comum.6 O sacerdote presidia a bênção sobre o pão e o vinho no início da refeição. Há indícios de conceito escatológico da seita, referente a comer com o Messias, no qual se fala de pão novo e beber vinho novo.

Em geral, no Novo Testamento, a palavra é usada com significado teológico e com a finalidade de culto, em I Cor. 11:20.

Kuriakón deipnón, a Ceia do Senhor. A refeição na noite de confraternização da comunidade constitui um serviço divino. A expressão “ a Ceia do Senhor’’ (Kuriakón deipnón) ocorre somente em I Cor. 11:20 e seu significado está relacionado com a frase em I Cor. 10:21 (Trapeza Kurión) “Mesa do Senhor’’.7 Em ambas as passagens a palavra Senhor (Kurios) está bem arraigada na tradição e na designação Ceia do Senhor (I Cor. 10:22; 11:27 e 31 em diante). Os relatos da Ceia do Senhor chegaram até nós de quatro maneiras (S. Mat. 26:17-29; S. Mar. 14:12-26; S. Luc. 22:15-20; I Cor. 11:23-25).

DE QUE ESPÉCIE FOI A ÚLTIMA CEIA?

Na discussão acerca da relação entre a Ceia do Senhor e a Páscoa, não houve até agora nenhum entendimento. A. Higgins, diz que a dificuldade em se chegar a uma conclusão repousa nas importantes diferenças entre os eruditos nessa questão.8 Tais argumentos podem ser tão diferentes de ambos os lados, que jamais poderia ser obtido um completo acordo. O problema surge das diferenças existentes entre os evangelhos sinópticos, por um lado; e da descrição da Ceia pelo próprio Senhor, e os acontecimentos que cercam os três evangelistas, por outro.

Aparentemente, os evangelhos sinópticos confirmam que Jesus celebrou a Páscoa com Seus discípulos e que a Ceia do Senhor se originou da Páscoa (S. Mat. 26:17-29; S. Mar. 14:12-25; S. Luc. 22:7-20). O Evangelho de S. João, contudo, sugere que a Ceia do Senhor ocorreu antes da festa da Páscoa (S. João 13:1, 2, 21-30). É interessante notarmos como muitos eruditos concordam com o ponto de vista de que a Ceia do Senhor foi a ceia da Páscoa e vice-versa.

Eruditos contemporâneos, como I. Howard, Marshall, A. J. Higgins e R. P. Martin, estão de acordo em que os Evangelhos sinópticos sugerem que a Última Ceia de Jesus foi uma ceia de páscoa.9 O banquete que os discípulos foram convidados a preparar para celebrar a Ceia do Senhor (S. Mar. 14:12-16; S. Luc. 22:1-3) é claramente denominado de a Páscoa.10 Além do aspecto controvertido entre a Ceia do Senhor e a Páscoa, há também o problema da cronologia de S. João, como foi salientado acima. O Evangelho de São João. (S. João 13:1-3, 21-30) coloca a Ceia do Senhor antes da festa da Páscoa.

SIGNIFICADO DA CEIA DO SENHOR

A Ceia do Senhor representou para Jesus o mais importante banquete, depois daquele em que tomou parte na Galiléia. Este último, revestiu-se de um solene significado original derivado da Páscoa.11 “De acordo com o relato dos Evangelhos sinópticos, Jesus celebrou a Última Ceia como uma ceia de páscoa. O erudito inglês em Novo Testamento, R. P. Martin, diz que o significado da páscoa de Jesus não está naquilo que Ele fez, mas no que Ele disse;12 em outras palavras, Jesus deu nova e viva interpregação ao verdadeiro significado da Páscoa.

É interessante notarmos como Jesus mandou Seus discípulos irem ao encontro de um homem que levava um cântaro de água. Dir-se-ia que Jesus fez arranjos antecipados para que eles pudessem celebrar a Ceia sem problemas. O Dr. Marshall, comenta que Jesus possuía certo conhecimento de Sua situação e estava dando os passos necessários para evitar ser preso antes de Se preparar para isso.13 Jesus conhecia o perigo iminente que O cercava, e estava determinado a celebrar a Última Ceia sem interrupção.

Um segundo ponto de importância com relação à natureza da Ceia do Senhor é Sua despedida dos discípulos.14 O Evangelho de S. Lucas apresenta a Jesus como desejando muito comer aquela páscoa com os discípulos antes de Sua morte. Dessa forma, não há dúvida de que a Ceia teve o sentido de que Jesus Se estava despedindo de Seus discípulos. O ato de Jesus, em relação com o que Ele disse e fez, parece não estar muito claro entre os eruditos, como indicou H. Shumann.15

As palavras da instituição são encontradas em diversos exemplos (S. Mat. 26:26; S. Mar. 14:22; S. Luc. 22:19). O significado do pão é bastante claro em São João. A. Schweitzer diz que tomado do seu contexto completo, São João 6:51-58 nos permite entender pela fé que o discurso de Jesus fala sobre o pão desde o versículo 26.16 O pão simboliza a carne de Cristo; isto é apoiado pelo capítulo 6:56, cuja linguagem deve ser considerada apenas em sentido espiritual, especialmente os versos 60-65.

A importância do cálice está relacionada com a idéia do concerto (Êxo. 26:3-11) que Deus fez com o povo de Israel. O pacto fracassou por causa da desobediência e rebelião dos israelitas. O profeta Jeremias fala acerca de um novo pacto que seria feito, e o seu cumprimento foi anunciado por Jesus na última ceia com os discípulos. Esse concerto não se baseia em sacrifícios de animais, senão no sangue do Filho de Deus, o qual é capaz de satisfazer as exigências da lei. Era necessário o sangue de Cristo para a redenção. Mais adiante, Jesus interpretou Sua morte como o meio de ratificar o novo concerto mencionado por Jeremias (cap. 31:31-33). Observa-se isto nas palavras de Jesus: “Isto é o Meu sangue, o sangue do novo testamento…’’ (S. Mat. 14:24). Elas são quase idênticas às palavras de Êxo. 24:8, onde se encontra a ratificação do antigo concerto com Israel. O pronome “Meu” indica que Jesus colocou Seu sangue em contraposição ao do concerto dos animais do Antigo Testamento, e que Ele via Sua morte como pondo término ao antigo concerto e dando-lhe cumprimento; como sacrifício Supremo, precisava introduzir o novo e dar-lhe permanente validade.

REFERÊNCIAS

1. A. J. Higgins, The Lord´s Supper ín the New Testament. (Londeres: SCM Press DTD. 1952, pág. 9

2. Albert Schweitzer, The Problem of the Lord s Supper, traduz. A. J. Mattill (Macon: Mercer University Press, 1982), págs 58 e 59

3 I Howard Marshall, Last Super and Lord s Supper (Grand Rapids: W. B Eerdman´’s Publishing Company. 1980).

4. Colin Brown, gen. ed. The New International Dictionary of New Testament Theology. 3 vols. (Grand Rapids: Zondervan Publishing House. 1975). vol. 2: Lord s Supper, by B. Klappert. pág. 520.

5. Brown, 2:521.

6. Marshall, pág 23.

7. Gerhard Kittel, ed . Theological Dictionary of the New Testament, trans. Geoffrey W Bromiley. 10 vols. (Grand Rapids: W B. Eerdman’s Publishing Company, 1964) vol. 2: deipnón deipnéo, por Johanns Behm, pág 34.

8. Joachim Jeremia. The Eucharistic Words of Jesus (Oxford: Basil Blackwell. 1955), págs 177-183 Ele dá uma lista pormenorizada dos eruditos que concordam com isto, tais como Julicher. Zahn. Merx, Billerbeck, Dalman. W Bauer, L E. Carpenter. A. Schweitzer, Torrey. Schnewind. Entre os que não concordam estão: Straus, Renan. Goetz. Batiffol, J. Weiss. Welhausen, Burkitt, Heitmuller, G. Beer, Loisy, Schlatter, Oesterley. Lietzmann, K. L. Schmidt, Bultmann, Dibelius.

9. Ver Marshall, pág. 57; Higgins. pág 13: e R. P Martin. Worship ín the Early Church (Grand Rapids: W. B. Eerdman’s Publishing Company, 1975), pág 110.

10. Marshall, pág 57.

11. R. P Martin. The Worship of God (Grand Rapids: W. B. Eerdman s Publishing Company, 1982), pág. 151.

12. Martin, Worship in the Early Church, pág. 116.

13. Marshall, pág 77.

14. Idem, pág 80 Aqui ele da uma explicação pormenorizada da ideia de uma ceia de despedida.

15. Idem. pág. 83

16 E. Schweitzer, The Lord s Supper According to the New Testament. M Davis (Philadelphia: Fortress Press. 1967), pág 34.