Ao lermos o Novo Testamento, particularmente os Evangelhos, por certo já ficamos matutando a respeito de uma expressão que lhes aparece freqüentemente nas páginas. Volta e meia está ela embutida em um versículo, valorizando um conceito, dando força a uma declaração, identificando a autoria de um texto, levando confiança a algum ser humano, envolvendo de esperança uma promessa.
Refiro-me à expressão ‘‘Filho do homem”, usada cerca de oitenta e sete vezes, trinta e uma das quais só no Evangelho Segundo São Mateus. Dos livros do Novo Testamento que a mencionam, o de Atos é o que menos alusões faz, isto é, uma única vez, ficando as restantes por conta dos quatro Evangelhos e do Apocalipse, este com pelo menos duas vezes.
Uma vez que essa expressão figura tão amiúde na parte citada das Escrituras, acabamos desejando saber mais a seu respeito. Provavelmente, quando foi usada pela primeira vez; que significado teria; se foi Jesus a única pessoa a utilizá-la, e coisas dessa natureza.
‘‘QUEM É ESSE FILHO DO HOMEM?”
Na verdade, a curiosidade em querer saber quem é o Filho do homem não é um interesse das pessoas que vivem neste século, apenas; os próprios contemporâneos de Jesus manifestaram também o desejo de saber mais com respeito à pessoa que Se chamava por esse nome, e tiveram o ensejo de fazer a pergunta diretamente a Jesus.
Depois da ressurreição de Lázaro, Jesus foi introduzido triunfalmente em Jerusalém. Semelhante manifestação despertara grande inveja entre os líderes religiosos de Seus contemporâneos, que já pensavam em eliminar fisicamente tanto a Jesus como a Lázaro. Em meio a esse clima de intolerância, Filipe e André levam a nosso Senhor as novas de que alguns gregos querem vê-Lo (S. João 12:20-23). Cristo fez várias declarações de profundo significado, entre as quais a de que atrairia todos a Si, quando fosse levantado. A declaração levou alguns ouvintes a compararem as afirmações de Cristo com o que dizia a Lei. Crendo acharem contradição entre ambos, perguntaram então: ‘‘Quem é esse Filho do homem?” (verso 34). Evidentemente, queriam saber mais sobre a pessoa de Jesus do que sobre o título em si, e Jesus lhes falou da luz que ainda estava a sua disposição, e que devia ser aproveitada.
FALTA DE CRONOLOGIA RÍGIDA
Visto que os escritores dos Evangelhos não seguiram uma ordem cronológica rígida na apresentação dos assuntos que os impressionaram, e sobre os quais foram impelidos a escrever, torna-se difícil dizer com exatidão quando Jesus Se serviu pela primeira vez desse título referente a Sua pessoa. Se formos ao livro de São Mateus, por exemplo, verificaremos que esse autor cita a expressão, inicialmente, em ligação com a declaração de um escriba, que prometia seguir a Jesus para onde quer que fosse nosso Senhor. Jesus lhe respondeu, então, que enquanto as raposas tinham covis, e ninho as aves dos céus, Ele não tinha onde reclinar a cabeça (S. Mat. 8:20).
Se Mateus tivesse deixado para citar esse incidente um pouco depois, haveria coincidência entre os Evangelhos sinópticos sobre o emprego, pela primeira vez, da expressão Filho do homem; pois Marcos e Lucas começam a usá-la no ocorrido com o paralítico de Cafarnaum, enquanto o autor do primeiro Evangelho usa esse fato em segundo lugar. Com as palavras ‘‘para que saibais que o Filho do homem tem na Terra poder pa-ra perdoar pecados” (S. Mar. 2:10), dirigidas a Seus opositores, Jesus mandou que o paralítico se erguesse e andasse, conduzindo o mesmo leito no qual fora trazido.
O ocorrido no qual o apóstolo João cita inicialmente o título Filho do homem, nada tem que ver com os dois exemplos já mencionados. João impressionou-se com o encontro entre Jesus e Natanael. Conta ele como, finalizando o diálogo que teve com o homem que Lhe trouxera Filipe, Jesus disse: ‘‘Na verdade, na verdade vos digo que daqui em diante vereis o céu aberto, e os anjos de Deus subirem e descerem sobre o Filho do homem” (S. João 1:51).
Um resumo dos assuntos nos quais aparecem as palavras Filho do homem, referindo-se a Cristo, levar-nos-ia a uns dez ou doze temas diferentes, salientando-se aqueles que dizem respeito à morte e à segunda vinda de nosso Senhor. Para se ter uma idéia, só no Evangelho Segundo São Mateus o primeiro desses assuntos está ligado com a expressão em apreço mais de oito vezes, enquanto o segundo conta com nada menos que onze vezes.
Mas são também juntados ao título, assuntos como a pobreza de nosso Senhor, Sua autoridade para perdoar pecados, Sua identificação com pecadores aos quais procurava salvar, a transfiguração, e outros; sendo que o evangelista São João o liga com a serpente do deserto, da qual Jesus falou a Nicodemos; com a faculdade de exercer o juízo a que fez referência após a cura do paralítico de Betesda; com a necessidade de comermos Sua carne, bem como com Sua glorificação, esta salientada na oração intercessória do capítulo dezessete do quarto evangelho.
Certamente, uma das ocasiões bastante significativas às quais está ligada a expressão Filho do homem, é aquela na qual Jesus procura saber o que os homens pensam dEle. ‘‘Quem dizem os homens ser o Filho do homem?” (S. Mat. 16:13), perguntou Jesus a Seus discípulos, tornando depois a pergunta mais individual, ao perguntar-lhes o que eles próprios pensavam dEle.
O Evangelho de Lucas liga o título Filho do homem com um dos momentos mais significativos da vida de nosso Senhor, ou talvez o maior deles—aquele instante em que Judas O beijou como sinal da identificação previamente combinada com os que deveriam prender a Cristo. ‘‘Judas, com um beijo trais o Filho do homem?” perguntou Jesus ao traidor (Luc. 22:48), como se ao mesmo tempo estivesse oferecendo ao Seu relutante discípulo a última oportunidade de mudar os rumos de sua sinuosa vida.
Vemos assim que os fatos comuns da vida e obra de nosso Senhor, bem como aqueles aspectos de maior importância, estiveram em grande parte associados com o título pelo qual passou a ser conhecido, tanto pelos que O amaram, como por aqueles que não tiveram coragem de aceitá-Lo ou os que chegaram mesmo a aborrecê-Lo.
MENCIONADO EM MAIS TRÊS LIVROS
Não foram só os quatro evangelistas que falaram de Jesus como o Filho do homem. O livro de Daniel, no Antigo Testamento, e os de Atos e Apocalipse, no Novo, também fazem referência ao título em questão, com a diferença que nos Evangelhos é o próprio Jesus quem se intitula Filho do homem, enquanto nesses outros três livros da Bíblia nosso Senhor é chamado por esse nome.
O profeta Daniel conta como o Filho do homem passou a fazer parte de suas visões. ‘‘No primeiro ano de Belsazar, rei de Babilônia” (Dan. 7:1), foram-lhe mostrados em sonhos quatro animais com características diferentes. Tratava-se de animais simbólicos (Dan. 7:17), utilizados para representar povos ou nações. Depois de descrever o quarto desses animais, começa o profeta a falar sobre uma cena, ao que tudo indica, de julgamento. Nesta, viu ele vindo nas nuvens do céu ‘‘um como o Filho do homem” (Dan. 7:13), que Se dirige ao Ancião de dias ou o presidente do tribunal daquela sessão de juízo. É a única vez em que o profeta se refere a Cristo, utilizando essa expressão.
No livro de Atos, a referência ao título é feita por Estêvão, primeiro mártir cristão. Embora o rosto desse homem de Deus brilhasse com a refletida glória do Céu, sua vida não foi respeitada. A sanha daqueles que se sentiram ofendidos, fizera-o silenciar. Antes, porém, que as primeiras pedras atiradas atingissem o alvo, Estêvão pôde descrever a cena que lhe trouxe encorajamento. ‘‘Eis que vejo os Céus abertos”, disse ele, “e o Filho do homem, que está em pé à mão direita de Deus” (Atos 7:56). Possivelmente se tenha lembrado do nome que tantas vezes ouvira o próprio Cristo usar, enquanto aqui esteve.
O autor do Apocalipse, o apóstolo João, também autor do quarto Evangelho, viu o Filho do homem em pelo menos duas ocasiões, ao receber as visões que escreveu e dirigiu às Sete Igrejas. Na primeira delas, descreve ele um Ser que Se encontrava entre os sete castiçais, logo descritos como as sete igrejas. “Vestido até os pés de um vestido comprido, e cingido pelos peitos com um cinto de ouro’’ (Apoc. 1:13) percorria o Filho do homem os corredores dos sete períodos da história da Igreja de Deus neste mundo.
A próxima vez em que João menciona um acontecimento no qual aparece o Filho do homem é em Apocalipse 14:14. O cenário descrito aqui, difere muito do anterior. Agora, o apóstolo O vê com uma coroa de ouro na cabeça, e com uma foice aguda na mão, uma característica típica da Segunda Vinda de nosso Senhor.
UM TÍTULO PREFERIDO
O Seventh-day Adventist Bible Commentary, vol. 5, pág. 581, apresenta, ao que parece, algumas hipóteses para a existência da expressão Filho do homem. Sem seguir exatamente a ordem em que elas são apresentadas, podemos citá-las, como: 1) Um nome usado por alguns judeus, referente ao dirigente messiânico do novo reino a ser estabelecido; 2) uma designação preferida pelo próprio Cristo: 3) o milagre pelo qual o Criador e a criatura se uniram em uma pessoa divino-humana.
Embora nenhuma das três possibilidades deva ser excluída, a segunda, pelo menos, parece ser a mais fácil de comprovar, em virtude da multiplicidade de fatos com os quais Jesus ligou a expressão. Não existe uma preocupação maior, da parte de nosso Senhor, ao usar o título, que nos permita tirar conclusões de que não se tratava de nome comum. É muito mais natural concluirmos que, quando juntava a expressão a qualquer tipo de declaração que fazia, estivesse apenas evitando o pronome pessoal.
Jesus poderia ter dito a Nicodemos, por exemplo, quando lhe falou a respeito da necessidade de nascer de novo, tudo aquilo que foi dito, valendo-Se de um pronome pessoal. Poderia ter explicado a seu interlocutor: “E, como Moisés levantou a serpente no deserto, assim importa que EU seja levantado’’ (S. João 3:14); ou ter recomendado aos ouvintes que trabalhassem pela comida que “permanece para a vida eterna, a qual EU vos darei’’; ao contrário, porém, usou no lugar desse pronome pessoal o título Filho do homem, dizendo-lhes que este lhes daria a vida eterna. Não significa isso, entretanto, que não tenha usado esses pronomes em algumas ocasiões. A verdade é que usava, indiferentemente, tanto uma coisa quanto a outra.
Também não usou o título por vaidade ou para engrandecimento pessoal, pois do contrário teria cometido um contra-senso. Quando explicou à mãe de Tiago e João que o pedido que esta Lhe fazia era inspirado nos costumes das pessoas influentes deste mundo, mas que a verdadeira grandeza consiste em servir, acrescentou: “Bem como o Filho do homem não veio para ser servido, mas para servir, e para dar a Sua vida em resgate de muitos.’’ S. Mat. 20:28.
Seria uma incoerência, portanto, associar a uma lição de humildade uma expressão que visasse ao engrandecimento próprio. Jesus, porém, sempre foi aquilo que ensinou. Não disse aos homens nada em que não pudesse servir-lhes de exemplo. Encarnava as verdades que indicou às pessoas. Não só ensinou o caminho, mas era “o caminho, a verdade, e a vida”.
OUTROS “FILHO DO HOMEM’’
Uma segunda razão que nos leva a pensar na expressão Filho do homem como um título comum com o qual Jesus Se dirigia às pessoas, é o fato de outras pessoas também terem recebido esse nome. A diferença, como já vimos, está em que Cristo Se intitulou Filho do homem, enquanto as demais pessoas receberam essa designação.
É o caso, por exemplo, do profeta Ezequiel, no Antigo Testamento. Em noventa e duas ocasiões diferentes, foi ele chamado por Deus de filho do homem. E em que pese ter sido filho de sacerdote, e ser um profeta grandemente utilizado por Deus para a transmissão de temas do mais alto significado, ninguém, por certo, será levado a pensar que o nome pelo qual Deus insistia em chamá-lo, sugeria que se estivesse identificando com a humanidade, ou que tivesse parte na Divindade. Quando muito, Deus deve ter usado esse nome de natureza óbvia, como uma demonstração de carinho para com Seu fiel servo; ou então, para que Ezequiel não viesse a esquecer-se de suas origens, depois de ter tido as visões que lhe vieram às margens do rio Quebar.
Evidentemente, Ezequiel não escolheu esse título, como ocorreu com Jesus. Sempre que a ele se refere, afirma que é Deus quem o está tratando dessa maneira. Noventa e duas vezes, conta que lhe veio a “palavra do Senhor’’, dizendo-lhe o que, como filho do homem, devia fazer ou di-zer. A primeira vez que isso aconteceu, foi quando Deus lhe disse: “Filho do homem, põe-te em pé, e falarei contigo’’ (Ezeq. 2:1). Na ocasião, foi enviado “aos filhos de Israel”, às nações que se haviam rebelado contra Deus. A série de utilizações da expressão filho do homem se completa, em seu livro, com a recomendação de que colocasse coração, olhos e ouvidos naquilo que lhe seria dito (Ezeq. 44:5) “de todos os estatutos da casa do Senhor, e de todas as suas leis”. Na ocasião, foram-lhe repetidas as instruções a respeito de como os sacerdotes deveriam exercer seu ministério, e como deviam comportar-se de um modo geral.
O profeta Daniel não só observou “um como o Filho do homem”, em sua visão dos quatro animais, como recebeu o nome de filho do homem, na visão do capítulo oito do seu livro, isto é, a visão do carneiro e do bode. No verso 17, o profeta relata suas reações físicas e psicológicas ao tomar conhecimento do que lhe foi apresentado, e como foi reanimado por alguém que lhe falava. Rosto em terra, em virtude da prostração que lhe sobreveio, ouve falar-lhe uma voz: “Entende, filho do homem, porque esta visão se realizará no fim do tempo.” Como no caso de Ezequiel, o mensageiro celestial parece estar usando aqui uma expressão de carinho para com alguém que recebeu a elevada incumbência de transmitir mensagens de tão grande significado; e, todavia, sem que o nome desse ao seu possuidor um caráter especial, além do que já lhe era inerente.
Uma das mais antigas alusões, entretanto, deve ser talvez a que se referia ao patriarca Jó. Acha-se no capítulo 16 e verso 21 do seu livro, e expressa uma aspiração da parte do homem considerado mais paciente, no sentido de que houvesse alguém que pudesse “contender com Deus”. Diante da falta de compreensão dos seus amigos, os quais o responsabilizavam terrivelmente pelos seus infortúnios, exclamou o patriarca:” Ah! se alguém pudesse contender com Deus pelo homem, como o filho do homem pelo seu amigo!”
Sem compreender ainda os verdadeiros motivos de ter sido colocado sob tão dura prova, pensava Jó que, se fosse possível alguém discutir com Deus a seu respeito, talvez sua inocência pudesse ficar comprovada. Aqui no mundo, insinuava ele, as coisas pareciam mais fáceis: um representante da raça humana defendia a causa de outro, por quem revelava afeição! O que ele não podia ver naquele momento de aflição, porém, era que esse Advogado que tanto desejava, existia; e estava interessado em seu caso. A defesa que tanto almejava estava a caminho!
Temos ainda menção feita à expressão filho do homem, em geral referente a pessoas comuns, nos livros dos Salmos e do profeta Isaías, o que sugere o uso normal desse título através de grande parte das Escrituras. Não oferece ele, portanto, fortes razões para se crer que fosse mais do que um designativo que nosso Senhor escolheu, para com ele tornar conhecidos ao homem os mais elevados conceitos da vida eterna. Os homens e o próprio Satanás puderam, ou tiveram que chamá-Lo de Filho de Deus; mas, somente Ele, Se chamou pelas três palavras usadas mais de 80 vezes — Filho do homem.
ALMIR ALVES DA FONSECA, redator de O Ministério