Milhares de adventistas no Brasil são oriundos do catolicismo romano. Em maior ou menor grau, foram anteriormente influenciados a crer que Cristo está presente e morto nos elementos do pão e vinho eucarísticos. Diante disso, é importante conhecermos um pouco sobre a origem e o desenvolvimento da doutrina da transubstanciação. Sintetizar a história e o desenvolvimento desse ensinamento é um desafio. São mais de 1.500 anos de história. A questão é difícil, até porque, segundo Hermann Sasse, “nenhum livro sobre assunto dessa espécie foi escrito ou poderá ser escrito com absoluta imparcialidade”.1

Os primeiros ensaios da doutrina da transubstanciação surgiram durante a Era Patrística, aproximadamente entre os anos 100 e 600.

De Inácio a Jerônimo

A carta de Inácio de Antioquia aos romanos, escrita aproximadamente no ano 110, apresenta fortes ensaios da transubstanciação. Parte da carta diz: “eles se abstêm da eucaristia e da oração, porque não admitem que a eucaristia seja a carne do Salvador Jesus Cristo, a carne que sofreu por nossos pecados, a carne que o Pai por Sua bondade a ressuscitara. Eles pois que contradizem o dom de Deus morrem em suas discussões.”2

Tem-se dito que, por este escritor ter vivido num tempo em que predominava a heresia dos docetistas, os quais afirmavam que Jesus não viera em carne, declarações tais como essa são compreensíveis dentro do contexto que o cercava. Aparentemente clara, a posição de Justino Mártir tem gerado muitas discussões. Cerca do ano 150, enviou ao imperador romano, Antônio Pio, duas apologias em que defende a fé cristã. Sobre a eucaristia, afirmou: “Mas da mesma forma que pela Palavra de Deus, Jesus Cristo encarnou, tornou carne e sangue para a nossa salvação, assim também este alimento, que se tornou Eucaristia graças à oração formada das palavras de Cristo que sustenta e assimila à nossa carne e o sangue de Jesus encarnado: tal é a doutrina que nós recebemos.”3

Essa antiga declaração de Justino Mártir tem sido criticada como imprudente, pois em outras passagens no Diálogo de Trifo enfatiza apenas um sentido metafísico para a Ceia do Senhor.

Irineu, bispo de Lion, martirizado no ano 202, escreveu contra os gnósticos, e sobre a eucaristia declarou: “Porque nós oferecemos a Deus coisas de Sua própria criação e anunciamos a comunhão da carne com o Espírito; porque assim como o pão, produto da terra, quando recebe a invocação de Deus, não é mais pão comum, mas Eucaristia, consistindo de duas realidades, uma terrena e outra espiritual, as-sim também nosso corpo quando recebe a Eucaristia não é mais corruptível, mas possui a esperança da ressurreição para a eternidade.”4

Segundo alguns, essa declaração de Irineu não fundamenta a transubstanciação. Estaria afirmando apenas que os cristãos não deveriam receber a Ceia do Senhor simplesmente como uma realidade de coisas terrenas como o pão e o vinho, produtos da terra, mas como coisas sagradas. Orígenes (185-253), célebre professor da Escola de Alexandria, destacou-se pelo uso da interpretação alegórica tal como escreveu: “Ninguém poderia escutar a Pa-lavra de Deus, se não fosse santificado, quer dizer, se não é santo de corpo e de espírito e se não lavou as suas vestes. Dentro de alguns instantes ele vai entrar no banquete nupcial, vai comer a carne do Cordeiro, vai beber o sangue da salvação. Que ninguém entre nesse banquete de vestes poluídas.”5

Até aqui, apresentamos declarações de pais da Igreja do segundo e terceiro séculos. Não há condições de se estabelecer a doutrina católica romana da tansubstanciação tal como ela é hoje, ou pelo menos como foi na Idade Média, se procurarmos suas bases em afirmações do primeiro e segundo séculos. Elas são esparsas, denotando que o foco da atenção daqueles teólogos não era o mesmo da Idade Média, como ainda veremos.

Estabelecer a tansubstanciação fica mais difícil quando chegamos a Agostinho, bispo de Hipona, África, após o ano 300. É considerado pela Igreja Católica Romana o mais douto dentre os santos e o mais santo entre os doutores. Esse pai da Igreja foi anti-realista em relação à Ceia do Senhor; não aceitava a presença real do Senhor Jesus Cristo, morto ou vivo, nos elementos da eucaristia. Apresentou uma interpretação simbólica para as palavras de Cristo: “Quem ousará comer a seu Senhor? Eu sem embargo disse: Ele que me come, vive em mim. Comer a Cristo é comer a vida. Não é morto para ser comido, antes Ele vivifica os mortos… Seja comido Cristo; comido vivo, porque da morte ressuscitou.”6

Pelo que se pode notar, Agostinho cria no Cristo presente na Ceia, mas não morto. Sua presença não poderia ser nos ele-mentos, porque, segundo suas palavras, ninguém deveria ter a pretensão de comer a seu Senhor. Tratava-se de uma presença espiritual e viva, pois Ele já havia ressuscitado. Esse pensamento influenciou muito a Berengário, no século XI, e a Lutero, monge agostiniano e principal reformador do século XVI.

Lutero, porém, desenvolveu, em contraposição à doutrina da transubstanciação, a doutrina da consubstanciação, ensinando a presença de Cristo vivo embaixo e por cima dos elementos do pão e do vinho eucarísticos. Ele não poderia basear-se totalmente em Agostinho para desenvolver a consubstanciação, pois este não chegou a definir uma possível presença de Cristo vivo nos elementos ou embaixo deles.

É justamente em Agostinho e em Ambrósio que se tornam distintas duas linhas teológicas que iriam causar influência em teólogos futuros, como Pascásio Radberto, no século IX; Berengário, no século XI; Lutero, Calvino e Zwínglio, no século XVI, estendendo-se aos nossos dias. Enquanto Agostinho propunha uma interpretação simbólica para as palavras de Cristo quanto ao pão e ao vinho, na instituição da Ceia, Ambrósio é a grande autoridade no realismo sacramental que prevaleceu nos séculos seguintes. Falando da transformação operada na eucaristia, escreveu: “Reconhecemos que isto não é o que a natureza formou, mas o que a bênção consagrou e que a força da bênção ultrapassa a força da natureza, porque pela bênção a natureza se encontra transformada… A palavra de Cristo que pode fazer do nada o que não existia, então não poderia mudar as coisas existentes naquilo que elas não eram ainda? Porque quem dá a natureza às coisas a ‘fortiori’ pode mudá-la.”7

É interessante que a Idade Média não conseguiu descobrir a diferença e notar as duas linhas de pensamentos antagônicos desses pais da Igreja. Foi somente a partir do século IX que a polêmica quanto à presença real se tornou importante, e quando a Igreja sentiu necessidade de definir o dogma. Por quase 500 anos, os dois tipos de sacramento coexistiram lado a lado.

A presença real do corpo e do sangue de Cristo não podia ser entendida de maneira mais realista ou mais espiritual. A diferença podia ser tolerada porque a questão quanto à relação que realmente existe entre o corpo do Senhor crucificado e ressurreto, de um lado, e o corpo de Cristo no sacramento, do outro, ainda não se tornara problema teológico. É apropriado consultar Jerônimo, um dos mais cultos entre os pais da Igreja, falecido no ano 420. Em seus escritos, nada há que se pareça com a presença real. São suas estas palavras, na Epístola 98:13: “O pão representa o corpo de Cristo e a eucaristia é um memorial da redenção.”8

De Pascásio ao Concilio de Latrão

O desenvolvimento da doutrina da transubstanciação ocorreu de forma lenta e sem grande resistência, nos primeiros séculos. A influência do realismo sacramental de Ambrósio de Milão foi, porém, decisiva para o estabelecimento da doutrina a tal ponto que nenhum teólogo do início da Idade Média jamais duvidou serem o pão e o vinho respectivamente o corpo consagrado e o sangue de Cristo. O único caso de um encontro tratar da eucaristia foi incidental. O Sínodo 787 (Nicéia II) decidiu em favor da adoração de ícones ou imagens, rejeitando a resolução anterior, tomada pelo Sínodo de 754. Este havia se posicionado contra a adoração de imagens na Igreja, a não ser a imagem de Cristo nos elementos da eucaristia.

Comentando a decisão do Sínodo de 787, Hermann Sasse declara: “A decisão de 787 pressupunha a doutrina e assim entendeu a questão em parte, que o pão e o vinho consagrados não são imagens, figuras ou símbolos, mas são o verdadeiro corpo e sangue de Cristo.”9

O começo das discussões teológicas mais acirradas em torno da eucaristia aconteceu no ano 831, com o lançamento de uma obra favorável à transubstanciação, o primeiro livro medieval sobre o assunto, escrita por Pascásio Radberto. Abstendo-se de usar a palavra transubstanciação, ele a substituía por “transformação”. A esse teólogo coube o mérito de ter, pe-la primeira vez, estabelecido a diferença entre a substância e a espécie na eucaristia. Radberto cria no milagre da consagração, segundo o qual o pão e o vinho seriam transformados em corpo e sangue reais de Cristo, sendo o próprio corpo que nasceu da virgem Maria, foi crucificado e ressuscitou dos mortos

Ratramno, um de seus principais oponentes da época, não negava que o pão e o vinho consagrados eram o corpo e o sangue de Cristo, mas distinguia o corpo do sacramento do corpo histórico. Para ele, os elementos não eram transformados e permaneciam pão e vinho reais. Apenas virtualmente eram o corpo e sangue de Cristo.

Historicamente, existem três interpretações para o acontecimento e significado da Ceia do Senhor: sacrifício, comemoração e celebração.

Eucaristia como sacrifício é a linha teológica que segue a interpretação de Ambrósio de Milão e a de Pascásio, a qual foi instituída pelos concílios na Igreja Católica Romana. A idéia de comemoração segue o pensamento de Rabano Mauro, no século IX (em oposição a Radberto), e por Berengário, no século XI, alcançando seu grande defensor no reformador suíço do século XVI, Ulrico Zwínglio.

Os que vêem na Ceia do Senhor uma comemoração, fundamentam-se nas palavras de Cristo: “… fazei isto em memória de Mim” (Luc. 22:19), procurando apoio também em Agostinho, uma vez que ele rejeitou a presença de Cristo morto nos elementos.

O aspecto de celebração é característica do pensamento de Agostinho, Lutero, Melancton e Calvino, com alguma diferença entre este e Lutero. Esse conceito rejeita a interpretação da Ceia como sacrifício, considerando-a um absurdo, recusando igualmente a idéia de comemoração.

Pascásio explicava a transformação ou conversão dos elementos no corpo e sangue de Cristo como um mistério. Segundo alguns autores, isso representava herança de Agostinho, o qual em sua teologia mostrou-se influenciado pelo neoplatonismo. Acredito que o pensamento do bispo de Hipona constituía uma barreira para os intérpretes realistas e, até certo ponto, dividia as opiniões. Sendo a maior autoridade teológica entre os pais da Igreja, Agostinho iria afetar o trabalho de quase todos os teólogos, incluindo Pascásio, que se posicionou no extremo com o radicalismo sacramental, explicando a transformação dos ele-mentos como uma conversão misteriosa.

Em 1088, ouviu-se forte voz em oposição à presença real de Cristo morto nos elementos da eucaristia. Berengário, arce-diago da igreja de Angers, França, e professor da Teologia, em sua obra A Sagrada Cena Contra Lanfranco, manteve a tese agostiniana, defendendo a presença simbólica. A referência feita ao pão e ao vinho, como corpo e sangue de Cristo, ensinava Berengário, é figurada. Foi a partir do século XI que as duas linhas de interpretação se tornaram mais visíveis e claras: de um lado, os realistas, seguindo Pascásio Radberto; e, do outro lado, os simbolistas, seguindo Berengário, que foi bem mais longe do que Agostinho, combatendo o “mistério” dos gregos com racionalismo, e considerando a presença real como absurdo lógico e contrário ao “culto racional” de Rom. 12:1.

A diferença básica entre Berengário e Agostinho, nesse assunto, é o racionalismo do primeiro em contraposição ao misticismo neoplatônico do segundo. O resultado mais importante da controvérsia berengária foi a definição dogmática que, para a Igreja Romana, solucionou as disputas em torno da presença real. Em 1097, Berengário foi forçado a aceitar uma fórmula pela qual se entendia a conversão ou transformação como significando que o corpo de Cristo era “despedaçado pelos fiéis”. Suas obras foram condenadas à fogueira e ele veria o mesmo fim, se não tivesse se retratado com juramento.

O cardeal Belarmino, que viveu alguns anos após o Concilio de Trento, confirmou o que foi exigido de Berengário: “Dizemos que o corpo de Cristo colocado sobre o altar, verdadeira e propriamente é posto, tirado, levado das mãos à boca, e desta ao estômago; e isto mesmo foi Berengário obrigado a reconhecer no concilio celebrado em Roma no pontificado do papa Nicolau; que o corpo de Cristo era sensivelmente tocado e partido pelas mãos do sacerdote.”10 O próprio Berengário, envergonhado por sua negação, mais tarde escreveu: “Confundido pela loucura do papa, e porque Deus, punindo-me por meus pecados não me deu um coração mais firme, lancei-me no chão e confessei com ímpia voz que tinha errado, temendo que o papa anunciasse imediatamente contra mim a sentença de excomunhão e que como necessária conseqüência, a população me levasse à pior das mortes.”11

Não obstante essa tremenda coação, a doutrina da presença real de Cristo morto nos elementos e comido pelos fiéis, estava ainda longe de sua vitória. Embora não abertamente, por medo de opressão, havia os defensores das idéias de Berengário. A luta estava se acentuando e o IV Concilio de Latrão, realizado em 1215, veio colocar um ponto final na luta, dando ao novo dogma o cunho de oficialização.

A palavra transubstanciação apareceu no Concilio de Latrão, no pontificado de Inocêncio III, em novembro de 1215, na primeira parte dos 70 capítulos que se supõe haverem sido redigidos pelo próprio Inocêncio III, e que se referiam à extirpação das heresias. Entre as decisões de Latrão, citamos os sete pontos seguintes:

” 1) Que Jesus Se acha presente na Eucaristia todo inteiro em corpo, sangue, alma e divindade, real e substancialmente, e não em sinal, figura ou virtude; 2) que não resta substância alguma do pão e do vinho unida ao corpo e ao sangue, senão as meras aparências; 3) que Cristo Se acha todo inteiro sob cada uma das espécies e sob cada uma de suas partes destacadas; 4) que o corpo e o sangue existem não somente quando se recebem, mas antes e depois; 5) que o verdadeiro corpo do Senhor permanece inteiro em todas as hóstias que restam depois da comunhão; 6) que Cristo, filho único de Deus, deve ser adorado no santo sacramento, ainda exterior conforme os ritos e ofertas da Igreja; 7) que é comido não só espiritualmente, mas também real e sacramentalmente.”12

Precisamos honestamente reconhecer que a dogmatização da transubstanciação não foi suficiente para silenciar as objeções e que agora começaram a surgir perguntas mais difíceis de responder, tais co-mo: “Se realmente ocorre um milagre de transformação, porque o pão e o vinho permanecem com a mesma aparência?” O Concilio de Latrão simplesmente afirmou a transformação dos elementos, mas não explicou como ela ocorria.

Era fácil condenar os pontos de vista de Berengário e obrigá-lo a retratar-se; difícil, porém, foi refutar as seguintes objeções: “Qual é a relação entre o corpo de Cristo

Não é a questão dos pobres a mais importante.

O grande tema para a Igreja Católica Romana é o projeto eucarístico que está no Céu e o corpo de Cristo no sacramento? Se Seu corpo deve estar no Céu e na Terra ao mesmo tempo, como pode estar sobre muitos altares simultaneamente? Como se pode explicar que a conversão da substância deixa todos os acidentes do pão e do vinho inalterados?”13

De Tomás de Aquino a Trento

Tomás de Aquino (1225-1274) é o teólogo católico medieval cujas sínteses da teologia cristã e da filosofia de Aristóteles se tornaram um clássico da teologia católica por vários séculos. Tomás de Aquino é considerado entre os doutores católicos como o teólogo clássico no campo da doutrina eucarística. Foi ele quem deu à Igreja Romana aquele conceito de transubstanciação que essencialmente se tornaria o dogma de Trento. Aquino procurou explicar a transubstanciação através da filosofia aristotélica. A grande vantagem dessa interpretação do dogma era que o milagre da transubstanciação situava-se na esfera da metafísica e da espiritualidade. Esse foi o mais flagrante exemplo da grande síntese entre a fé cristã e a filosofia aristotélica.

A doutrina da transubstanciação tal como foi formulada por Tomás de Aquino contém a doutrina da concomitância. Segundo a teoria de Aquino, o sangue de Cristo está junto com o corpo depois da consagração do pão, e, igualmente, o corpo com o sangue depois que foi consagrado. O corpo e o sangue, além disso, se fazem acompanhar pela alma de Cris-to e por Sua natureza divina. O Concilio de Trento (1545-1563) aceitou e confirmou a doutrina de Aquino sobre essa questão, incluindo expressamente a alma e a divindade de Cristo na concomitância. Mais tarde, o papa Paulo VI, referindo-se à doutrina tomista, afirmou: “A Igreja quis reconhecer na doutrina de São Tomás de Aquino, a expressão particular-mente elevada, completa e fiel, quer do seu magistério, quer do sensus fidei de todo o povo de Deus.”14

É assim que Aquino explicou a transformação da substância dos elementos enquanto eles permaneciam inalterados. “A substância que é sujeito tem duas propriedades: primeiro, não ter necessidade de um fundamento intrínseco para ser sustentada, mas sustenta-se a si mesma; segundo, ser fundamento dos acidentes, sustentando-os e por isso diz-se que sub-está. Acidente é o ser cuja essência deve estar em outra coisa. Convém que o ser deles seja acrescido ao ser da substância e dependa desta. A substância, diz Aristóteles, é o simples ser e se realiza por si mesma; todos os outros gêneros de seres diversos da substância são seres de certo modo e existem pela substância. Por conseguinte, a substância é o primeiro entre os seres.”15

Em sua Sessão XIII, de 11/10/1551, o Concilio de Trento afirmou a presença real como uma “conversão” do pão e do vinho no corpo e sangue de Cristo, conversão esta também chamada de transubstanciação. Tomás de Aquino deu um toque refinado à doutrina da transubstanciação, o que salva a Igreja Católica de ser acusada de ensinar canibalismo ou propor na missa o “almoço” de Cristo morto e presente. Diante da acusação de magia na missa, os teólogos católicos se defendem dizendo que não são pronunciadas palavras mágicas e que eles não fazem qualquer milagre; pois as palavras são de Cristo e Ele mesmo é o consagrador dos elementos.

Em terminologia moderna, o que o Concilio de Trento definiu poderia ser expresso da seguinte maneira: o pão e o vinho, sem perder suas propriedades, ou, sem que alguma mudança tenha acontecido neles no plano do fenômeno, deixaram de ser no plano metafísico o que eram; ao invés, sobre este plano Jesus Cristo mesmo tornou-Se presente de modo misterioso.

Depois de Trento

Não seria de esperar, que, após as declarações do Concilio de Trento, um cardeal da Igreja Católica Romana tivesse a coragem de admitir com dúvida que o texto bíblico referente à instituição da Ceia do Senhor fosse suficientemente explícito para se concluir que ocorra a transubstanciação: “Não é de todo improvável que não haja na Escritura passagem clara e expressa que prove a transubstanciação, sem a declaração da Igreja.”16

Outro fato notável é que a Igreja Ortodoxa Grega, a qual antigamente estava em comunhão com as igrejas do Ocidente, ja-mais creu na doutrina da transubstanciação. Para a Igreja Oriental, o corpo e o sangue de Cristo são verdadeiros mistérios que não são mudados em carne humana. A Igreja Católica Romana tem oficialmente sua doutrina ligada ao Concilio de Trento. Atualmente, porém, outras explicações pretendem substituir a interpretação escolástica, por terem outras filosofias tomado o lugar do pensamento tomista. F. X. Durrwell, teólogo católico moderno, expressa a nova tendência da interpretação: “Não se fala mais de uma substância nova, mas de determinação de um novo sentido.”17

Ora, essa nova tendência no catolicismo, analisada à luz da História, é a voz abafada dos simbolistas descendentes de Agostinho e Berengário que está tentando tomar o lugar dos realistas descendentes de Ambrósio e Mascásio. Como está claro, a Igreja Católica é conservadora, mantendo-se fiel às declarações de Trento; este é um assunto a respeito do qual poucos expressam opinião. O próprio Durrwell, embora aponte a existência de tendências simbolistas, declara-se conservador das idéias tridentinas: “Nem o pão, nem o vinho, nem a refeição, nem a assembléia, sejam eles compreendidos segundo uma filosofia de intenção ou de natureza, poderão justificar a presença eucarística.”18

Nota-se, porém, que já há uma certa abertura da Igreja para o diálogo, princípalmente tendo em vista o ecumenismo. Isso se torna evidente quando um novo elemento, por muito tempo esquecido, é introduzido no assunto da eucaristia, o Espírito Santo: “Quando Ele Se torna pre-sente para a Igreja na Eucaristia, é pela força do Espírito que o pão e o vinho se tornam o corpo e o sangue de Cristo. É pelo Espírito Santo que a igreja se torna o corpo de Cristo, o sacramento na presença do mundo do Cristo pascal.”19 O método de Durrwell é “explicar” como se realizaria a transubstanciação fugindo do aristotelismo de Tomás de Aquino. Mas se alguém afirma que a eucaristia perdeu sua importância dentro da Igreja Católica romana está enganado. É seu propósito fazer desse assunto “o projeto do mundo, a direção da história, isto é, o projeto eucarístico”.20

Não é a questão dos pobres a mais im-portante. O grande tema para a Igreja Católica Romana é o projeto eucarístico. Pode-se falar da eucaristia como visitação, refeição, encontro, projeto, reconciliação, festa, celebração, comunhão ou sinal de unidade, mas a Igreja dirá: A eucaristia é muito mais do que isso: é a presença e o sacrifício de Cristo.

Kari Rahner, um dos principais teólogos católicos da atualidade, e talvez o mais ecumênico entre eles, produziu um livro no qual fala sobre a presença real de Cristo em termos de “visita”. Ele procura conciliar católicos e evangélicos, propondo a necessidade dessa visita pelo fato de que Cristo tem prazer em estar conosco, ser honrado e adorado. Lembra que a estrutura básica da eucaristia é um banquete, mas não decepciona os católicos conservadores: “Este princípio implica certamente a presença real de Cristo, pois o alimento oferecido não é senão o Seu corpo e o Seu sangue, mas vai mais além desta simples afirmação, pois apresenta-se como sendo destinado a ser tomado como alimento.”21

Não se vê, ecumenicamente falando, alguma concessão da parte da Igreja Romana no que se refere á eucaristia. A caminhada em direção ao diálogo é visível, mas a questão permanece no mesmo ponto: o fiel católico realmente crê que, por um milagre de fé, o pão e o vinho deixam de ser o que eram antes, transformando-se na carne e sangue reais de Cristo, o qual é partido e comido em todas as missas. É muito apropriado saber o pensamento do papa João Paulo II, que tem pregado o diálogo entre católicos e evangélicos, e é considerado o papa mais missionário de todos os tempos.

Diz ele: “O sacerdócio ministerial ou hierárquico, o sacerdócio dos bispos e dos presbíteros e, ao lado deles, o ministério dos diáconos, estão em relação muito íntima com a Eucaristia. Esta é a principal e central razão de ser do sacramento do sacerdócio, que nasceu efetivamente no momento da instituição da Eucaristia e juntamente com ela. Não é sem motivo que as palavras ‘fazei isto em memória de Mim’ são pronunciadas imediatamente depois das palavras da consagração eucarística, e que nós as repetimos todas as vezes que celebramos o santo sacrifício.”22

Por esta e outras declarações do líder maior da Igreja Católica, é evidente a im-portância que essa Igreja dá à eucaristia como sacrifício. João Paulo II é guardião da transubstanciação, pois se realmente ocorre o sacrifício de Cristo na eucaristia, são necessários os altares, as missas e os sacerdotes. Caso contrário, toda a estrutura eclesiástica da Igreja estaria abalada, pois tanto altares, como missas e sacerdotes seriam desnecessários.

Referências:

  • 1 Hermann Sasse, Isto é o Meu Corpo, Porto Alegre: Casa Publicadora Concórdia. 1967, pág.5.
  • 2 Raphael Gioia Martins, Ceia ou Missa? Livraria Independente Editora, s.d., pág.40.
  • 3 Lucien Deis. A Ceia do Senhor, São Paulo: Edições Paulinas, 1977. pág. 30 e 31.
  • 4 Raphael Gioia Martins, O Sacramento da Eucaristia, Livraria Independente Editora, 1962, pág. 43.
  • 5 Jean-Jacques Von Allmenn, Estudos Sobre a Ceia do Senhor, São Paulo: Editora Duas Cidades, 1968, pág. 75.
  • 6 Fr. Amador Del Fueyo, Obras de San Agostinho. São Paulo: s.d., pág. I4I.
  • 7 V. Héris, A Eucaristia Ministério da Fé. São Paulo: Edições Paulinas, 1987, pág. 55.
  • Raphael Gioia Martins, Op. Cit., pág. 66.
  • 9 Hermann Sasse, Op. Cit., pág.12
  • 10 Guilherme Dias. Inovações do Romanismo, Livraria Evangélica, 1912, pág. 57.
  • 11 Philip Schaff, História da Igreja, vol. 4. pág. 84.
  • 12 Raphael Gioia Martins, Ceia ou Missa, pág. 84.
  • 13 Hermann Sasse. Op. Cit., pág. 27.
  • 14 Tomás de Aquino, Exposição Sobre o Credo. Rio de Janeiro: Presença Edições, 1975, pág. 1.
  • 15 ibid., págs. 98 e 99.
  • 16 Guilherme Dias, Op. Cit,, pág. 57.
  • 17 F.X. Durrwell. A Eucaristia. Presença de Cristo, São Paulo: Edições Paulinas, 1976, pág. 26.
  • 18 Ibid., pág. 28.
  • 19 Ibid., pág. 56.
  • 20 Aturo Paoli, Fraternidade no Mundo. Exigência da Eucaristia. São Paulo: Edições Paulinas. 1980, pág. 80.
  • 21 Kari Rahner. A Eucaristia e os Homens de Hoje. São Paulo: Edições Paulinas, s.d., pág. 162.
  • 22 João Paulo II, Eucaristia: Sacramento do Amor, pág. 13.