ZINALDO A. SANTOS

Uma das crenças fundamentais da Igreja Adventista do Sétimo Dia afirma: “Um dos dons do Espírito Santo é a profecia. Esse dom é uma característica da Igreja remanescente e foi manifestado no ministério de Ellen G. White. Como a mensageira do Senhor, seus escritos são uma contínua e autorizada fonte de verdade e proporcionam conforto, orientação, instrução e correção à igreja. Eles também tornam claro que a Bíblia é a norma pela qual deve ser provado todo ensino e experiência.”

Que a doutrina adventista não se deriva de Ellen White é muito claro: a Bíblia é sua fonte inegável. Mas os críticos, por ignorância ou má fé, não economizam distorções a respeito do seu ministério e da maneira como a Igreja Adventista o vê. Com o objetivo de ajudar a esclarecer dúvidas a respeito da manifestação do dom profético na vida e obra da Sra. White, Ministério entrevistou o Dr. Juan Carlos Viera, diretor do Centro de Pesquisas Ellen White, localizado em Washington, Estados Unidos. Uruguaio de nascimento, o Dr. Viera serviu à Igreja na América do Sul, durante muitos anos, como pastor distrital, evangelista e administrador. Posteriormente, fez doutorado em missiologia, nos Estados Unidos.

A seguir, os principais trechos da entrevista, concedida por ocasião do concilio da Associação Ministerial, em Foz do Iguaçu, PR.

Ministério: Quais os questionamentos atualmente levantados sobre a autoridade bíblica?

Dr. Juan Carlos Viera: Os movimentos que surgem nos ambientes evangélicos e católicos tratam de certas formas de hermenêutica, certos métodos, como por exemplo, o método histórico-crítico e outros métodos de investigação e interpretação das Sagradas Escrituras. Esses métodos colocam certas dúvidas sobre a autoridade da Bíblia. Como adventistas do sétimo dia, continuamos crendo que a Bíblia é a autoridade final da nossa doutrina, porque a aceitamos como sendo inspirada por Deus. Embora a mensagem bíblica nos tenha chegado através de mensageiros humanos, cremos que essa mensagem tem suficiente autoridade para que seja aceita. Essa posição é muito clara na Igreja Adventista. É possível que alguns até já estejam começando a questioná-la, individualmente, mas essa é a posição oficial da Igreja em relação à Bíblia.

Ministério: Tais questionamentos afetam, de certa forma, o ensinamento sobre o dom de profecia?

Dr. Viera: Pode afetar. O fato de alguém questionar a Bíblia é o primeiro passo para questionar também outros escritos inspirados. Na verdade, ao questionar a Bíblia, a pessoa já questionou antes os escritos de Ellen White; afinal, é mais fácil questionar um profeta contemporâneo que um da antiguidade.

Ministério: Que críticas são feitas mais freqüentemente, boje, aos escritos de Ellen White?

Dr. Viera: A principal crítica, feita durante os últimos anos, refere-se ao uso que ela fez de outras fontes. A ideia que um profeta recorra a outros escritos e utilize frases de outros autores, tem sido muito questionada. De modo que a Igreja tem sido obrigada a fazer uma profunda investigação para ver se não ocorreu a mesma coisa com os profetas bíblicos. Felizmente, a conclusão é afirmativa; escritores bíblicos, especialmente no caso de Lucas, o evangelista, e no do apóstolo João, ao escrever o Apocalipse, também usaram outras fontes. Um ex-diretor do White Estate, Pastor Robert Olson, escreveu um livro intitulado 101 Perguntas Sobre o Santuário, no qual ele conclui, com base em profunda investigação, que o apóstolo João utilizou em muitas ocasiões referências ao Livro de Enoch, que circulava profusamente nos dias apostólicos. A frase “vi um novo Céu e uma nova Terra”. por exemplo, aparece no tal livro; e o apóstolo a usou textualmente para expressar sua própria visão.

Ministério: Como harmonizar essa prática com o fato de que Deus inspira o profeta?

Dr. Viera: A Bíblia afirma que Deus fala “de muitas maneiras, aos pais, pelos profetas” (Heb. 1:1). De modo que podemos pensar em mais de um modelo de comunicação da parte de Deus com Seus mensageiros. Um deles é o modelo visionário, ou seja, a comunicação processada através de visões. A Bíblia está cheia de exemplos. Há o modelo testemunhai, exemplificado pelos evangelistas Mateus e João: e o histórico, do qual Lucas também é um notável exemplo. Em todos esses modelos está presente o fator inspiração. Deus inspirou o profeta no processo de relacionamento com a mensagem que tencionava transmitir: através de visões, testemunho pessoal, ou testemunhos históricos, busca de informação em outras fontes.

Ministério: Quão abrangente é a expressão “espírito de profecia”?

Dr. Viera: Esse é um termo que se tornou um tanto familiar aos adventistas do sétimo dia, e que, de alguma maneira, não diz toda a realidade. A maior manifestação do dom de profecia é a Bíblia. Apesar disso, às vezes mencionamos algo como “a Bíblia e o espírito de profecia”, como se fossem duas coisas diferentes. A maior manifestação do espírito de profecia é a própria Bíblia, pois a expressão significa basicamente a voz do Espírito através dos profetas. Isso é o que explica João em Apocalipse 19:10, onde o anjo refere-se a outros profetas (“irmãos”) que, como João “mantém o testemunho de Jesus”, “o espírito de profecia”. Quando nos apropriamos dessa expressão para referir-nos apenas à Sra. White, limitamos a sua aplicação. E isso nem sempre soa bem. Realmente, todos os profetas de Deus estão incluídos na expressão espírito de profecia.

Ministério: O lema de Lutero – Sola Scriptura – é o mesmo da Igreja Adventista do Sétimo Dia?

Dr. Viera: Exatamente. Cremos na Bíblia e a aceitamos como regra de fé e prática religiosa: é a base de tudo porque é a voz de Cristo à Sua Igreja. O que chamamos de “espírito de profecia”, a respeito de que melhor seria dizermos o dom profético manifestado na Igreja Adventista, tem como propósito básico levar-nos à Bíblia, ajudar-nos a entendê-la. Seria muito ofensivo para a própria irmã White, saber que em algum momento estamos usando seus escritos como uma segunda Bíblia. Nunca foi seu propósito substituir a Bíblia, ou fazer de seus escritos a base de nossa doutrina. O único propósito dos escritos da Sra. White, e ela o disse muitas vezes, é o de conduzir-nos às Escrituras e ajudar-nos a compreendê-las.

Ministério: A Sra. White é a última palavra em termos de interpretação teológica para os adventistas?

Dr. Viera: Um momento crítico na vida da Igreja foi o ano de 1888, quando foram discutidos dois grandes temas. Um estava relacionado com as profecias de Daniel 7 e 8, e o outro era a justificação pela fé. Em várias oportunidades foi perguntado à Sra. White qual era a sua interpretação sobre os chifres de certos animais que aparecem na profecia de Daniel 7. Havia uma discussão muito intensa entre dois teólogos adventistas da época, e eles queriam ter o apoio da Sra. White. Sua resposta foi que deveriam ir à Bíblia, em vez de procurar sua opinião. Deveriam estudar profundamente a Bíblia para encontrar nela a base de qualquer conclusão. A Sra. White jamais tencionou ser a última palavra de interpretação profética para a Igreja. Agora, o que ela define são os pilares da nossa fé. Ela diz que esses pilares foram revelados através da inspiração: e que eles não podem ser removidos. Quais são eles? A segunda vinda de Cristo, o sábado, o estado inconsciente dos mortos, a doutrina do santuário celestial.

Ministério: O senhor concorda que alguns problemas relacionados com a compreensão do trabalho da Sra. White, são devidos à compilação e tradução deficientes?

Dr. Viera: Sempre esperamos que as compilações e traduções do material de Ellen White sejam uma ajuda para a igreja. As compilações têm realmente o perigo de que o compilador oriente o livro. Tem-se criticado, por exemplo, o livro Mensagens aos Jovens. A crítica é que ele deve ter sido compilado por um adulto que não compreendia os jovens, e que buscou as declarações mais negativas da Sra. White sobre a recreação e outros aspectos da vida juvenil, resultando num livro muito negativo para a juventude. Esse perigo realmente existe. Mas o objetivo das compilações é ajudar a Igreja, reunindo todas as referências sobre um determinado tema; normalmente elas trabalham com um tema específico, como o lar, a educação dos filhos, etc. Da minha própria experiência como compilador, tenho sentido que é uma solene responsabilidade fazer esse trabalho. Precisamos estar seguros de dar a mensagem correta. Depois que preparamos os manuscritos, eles passam por várias mãos. Temos a comissão de manuscritos, cujos membros devem ler detalhadamente o material, para que haja a segurança de que ele contém a mensagem da Sra. White, e não a do compilador. Apesar de que o texto é o da Sra. White, o compilador pode selecionar de tal maneira que acabe dizendo uma coisa que ela não quis dizer. Somos conscientes do problema e trabalhamos atentamente para evitá-lo.

Ministério: Alguns críticos dizem que a Sra. White fez declarações de cunho racista. O que o senhor diz a respeito disso?

Dr. Viera: Minha resposta é que se houve uma pessoa que não foi racista e que se esforçou por trabalhar em favor dos negros, por todos os meios, foi a irmã White. É certo que, em alguns momentos, ela deu alguns conselhos que eram oportunos para sua época. Por exemplo, ela mencionou que os obreiros de cor, negros, deveriam pregar naquelas áreas especialmente habitadas por negros. Alguns têm entendido isso como racismo: mas, para a época em que ela viveu, era o melhor conselho. Também existe a sugestão relacionada à escolha de um cônjuge, o que é muito importante. Em seu tempo, um casal misto enfrentaria muitos problemas que afetariam diretamente os filhos: e qualquer pessoa que se aventurasse nesse tipo de união conjugal sabia disso. Agora, aqui no Brasil ou em meu país, o Uruguai, não temos nenhum problema. Mas precisamos lembrar que quando a irmã White deu tais conselhos, o racismo era muito forte em seu país. Tão forte que acarretava grandes tragédias. Era uma situação contextualizada.

Ministério: A Sra. White enfrentou momentos difíceis em sua vida conjugal?

Dr. Viera: O profeta é um ser humano, através de quem Deus apresenta Seu ideal para todos – pessoas e instituições. Mas entre o ideal e o real há uma grande diferença. Às vezes pensamos que Deus transforma o profeta num ser perfeito para o serviço. Davi não era perfeito, cometeu pecados graves, e apesar disso Deus o usou. Nem sempre o profeta pode cumprir o ideal que lhe foi comunicado. A mesma coisa aconteceu com a irmã White. Deus lhe comunicou o ideal para esposos e pais. Entretanto, ela e seu esposo tiveram problemas com os filhos, ou seja, se os deixavam ou não, para ir pregar. Nos primeiros anos, o primogênito ficou sob os cuidados da família Hastings. Bem, ela precisava decidir se cumpriria a tarefa recebida de Deus ou se ficava em casa com seu filho. O filho Edson era um tanto rebelde, até que na juventude converteu-se e se tornou um pastor. Mesmo entre o casal houve problemas. Ambos tinham personalidades fortes e, em determinado momento, houve atritos. Essas coisas nos ajudam a entender que o profeta é um ser humano, com debilidades. Os profetas bíblicos também eram assim. Nenhum deles foi perfeito, mas Deus os usou poderosamente.

Ministério: Segundo o Manual da Igreja, não podemos fazer da aceitação do dom de profecia uma prova de discipulado. O que realmente isso quer dizer?

Dr. Viera: Efetivamente, a própria Sra. White favorece essa ideia. O conselho que a Igreja dá é que uma pessoa, antes de ser batizada, tenha aceito o dom de profecia na vida da irmã White como uma manifestação genuína dos dons espirituais. Porém, uma vez que a pessoa já seja membro da Igreja, o conselho é que não deve ser eliminada, se não crer nessa manifestação. Por que? Bem, há outras questões que também estão no mesmo contexto. Por exemplo, se uma pessoa não devolve o dízimo, não a eliminamos, embora saibamos que ela não está totalmente convertida, nem convencida da autenticidade da Igreja Adventista; por isso não quer apoiá-la financeiramente. O mesmo acontece com o assunto do dom de profecia. Se a pessoa não está totalmente convencida, devemos ajudá-la a compreender melhor o assunto, para que o aceite plenamente. Agora, quanto a ocupar cargos ou funções de responsabilidade, o conselho é bem específico: se uma pessoa não aceita qualquer uma das 27 doutrinas da Igreja, não deve ser eleita para cargo algum.

Ministério: Como a Igreja Adventista se posiciona no contexto do cristianismo?

Dr. Viera: Nós cremos ser a Igreja remanescente da profecia bíblica. O que isso significa? Somos o povo a quem Deus está utilizando para exaltar a fé de Jesus, os mandamentos de Deus e o testemunho de Jesus. Essas são as características da Igreja remanescente. Isso não quer dizer que seja uma Igreja perfeita. Às vezes poderíamos transmitir a interpretação do remanescente de Apocalipse 12 e 14. mas também devemos nos lembrar que a Igreja remanescente vive no período de Laodiceia, em Apocalipse 3. Assim o remanescente não é um povo perfeito, e jamais deveria colocar-se na posição de criticar outras denominações. O fato de que Deus o chamou para uma missão especial não significa que é perfeito. A doutrina da Igreja é perfeita, é a Igreja de Deus, mas nós, os indivíduos que a compomos, somos imperfeitos. Às vezes acusamos outras igrejas de serem Babilônia, ou suas filhas, quando realmente a própria Sra. White menciona que isso de fato ocorrerá somente quando elas rechaçarem a última mensagem. Neste momento, nenhuma Igreja é filha de Babilônia, até que rejeitem a advertência final. Nossa posição agora deve ser de respeito às demais denominações, porque nelas há pessoas sinceras, que finalmente aceitarão a mensagem, unindo-se a nós. Devemos ser cuidadosos para não nos adiantarmos aos fatos. Podemos estar criticando hoje alguém que será nosso futuro irmão. Somente no momento decisivo indicado pela profecia, as igrejas que rejeitarem a advertência divina formarão Babilônia.

Ministério: Que avaliação o senhor faz do atual momento do mundo, à luz da moldura escatológica apresentada pela Sra. White?

Dr. Viera: Primeiramente, é bom lembrar que a escatologia da irmã White está perfeitamente alinhada com a escatologia bíblica. Basicamente o que ela faz é comentar as profecias de Daniel e Apocalipse. Mas eu estou convencido de que estamos muito próximos da segunda vinda de Jesus. Portanto, todas as condições e situações, sejam elas econômicas, políticas ou religiosas, vão se afunilando para esse acontecimento. Eu creio que a globalização, a turbulência econômica, a comunicação em todos os seus ramos (satélite, internet, etc.) indicam duas coisas: primeira, a possibilidade que a Igreja tem de concluir sua missão em curto prazo. Segunda, a oportunidade de o mundo preparar-se, também em curto prazo, para o conflito final. A globalização tem uma face positiva, que é a criação de oportunidades para a igreja fazer seu trabalho rapidamente, e outra negativa, que é o uso que o mundo também fará para municiar-se tendo em vista última batalha. O que desejo alertar é para que, em meio às mudanças que ocorrem no mundo, não nos adiantemos aos fatos. Parece que alguns irmãos são caçadores de decretos, e vivem procurando mostrar que a lei dominical já está em marcha. Devemos ser cuidadosos. Quando essa lei for ditada, será uma lei especial que incluirá a pena de morte. A Sra. White não está se referindo a legislações restritas a certas regiões, que proíbem a comercialização no domingo. Lamentavelmente, temos alguns pregadores que estão enfatizando muito essa questão como se fosse já o cumprimento da profecia. Creio, sim, que todo o cenário está sendo montado para os eventos finais, mas não devemos nos adiantar.

Ministério: A encíclica papal Dies Domini foi muito comentada entre nós. Como o senhor a analisa?

Dr. Viera: Interpreto-a no contexto do mundo preparando-se para o conflito final. Já mencionei que todos os aspectos econômicos, políticos e religiosos focalizam nessa direção. E sabemos que no aspecto religioso haverá certas organizações que tomarão a liderança mundial. Não é de estranhar que essas organizações estejam dando seus passos, ditando pautas, em direção aos seus objetivos finais. Devemos encarar as encíclicas papais como documentos de uma organização religiosa que promovem suas doutrinas, não as nossas. O papa é o sumo pontífice católico e promoverá suas doutrinas católicas. Não há nada de estranho que ele exalte o domingo como dia de culto, e até tente lhe dar uma base bíblica. Mas esse é apenas um evento, dentre muitos outros que contribuem para o desfecho esperado.

Ministério: A Sra. White, com freqüência. associa a volta de Cristo ao término da pregação do evangelho. Está Deus dependente de nós, neste sentido, ou cumprirá Seus desígnios apesar de nós?

Dr. Viera: A irmã White claramente expressa que a Igreja é o meio que Deus escolheu para dar a mensagem ao mundo. Também diz que o não desempenho dessa tarefa, pela igreja, tem retardado a volta de Jesus. E diz mais: que a terminação da obra acontecerá com uma grande demonstração do poder do Espírito. Assim, as palavras de Cristo aos discípulos, de que eles seriam testemunhas, mas deveriam esperar a dotação do Espírito Santo (Atos 1:8), também se cumprirão na Igreja Adventista. Se olharmos do ponto de vista humano, falta muito para a terminação da obra. Aproximadamente a metade da população mundial não conhece o nome de Cristo. Mas o Espírito usará instrumentos humildes, de uma maneira que vai surpreender, segundo Ellen White. Não sabemos quais surpresas acontecerão, mas a manifestação do Espírito será verdadeiramente gloriosa. Como pastores, nosso papel é preparar a igreja para esse momento, e animá-la a manter seu relacionamento com Cristo, de tal modo que esteja preparada para a Sua volta qualquer que seja a época em que ela ocorrerá. Se daqui a três, cinco, dez ou mais anos, tanto faz.

Dr. Juan Carlos Vieira