W. EARLE HILGERT
(Professor de Bíblia e Teologia Sistemática no SDA Theological Seminary)
“E SAIU Caim de diante da face do Senhor, e habitou na terra de Nod, da banda do oriente do Éden. … e êle edificou uma cidade.” (Gên. 4:17.)
Caim apresenta-se como o primeiro representante de um homem que possui o que nós agora chamamos “saber fazer”. Ressalta de sua experiência com Abel, que se vangloriou de suas realizações e não pôde conceber que outro o superasse.
Melhor que qualquer outro, Caim sabia fazer a terra produzir melhores colheitas, e depois da terrível experiência com Abel, quando saiu da presença do Senhor e Lhe deu as costas, determinou-se a mostrar que possuía grau mais elevado de sapiência. Soube organizar, soube construir a primeira cidade de que possuímos registo na história da humanidade. Em nosso mundo de 1955, Caim ter-se-ia sentido perfeitamente à vontade.
Com que freqüência ouvimos a expressão: Saber fazer! Ela não é muito bela nem muito precisa. É uma espécie de mestiça híbrica que representa um vago sentimento de superioridade sentido por nossa geração sôbre os que a precederam, e às vêzes penso até que mesmo nós, adventistas do sétimo dia, que cremos numa “cidade que tem fundamentos, e cujo artífice e construtor é Deus”, e por ela esperamos — mesmo nós, algumas vêzes somos tentados a cair numa espécie de engano acêrca do calendário pois sentimos que nosso avô não andava em automóvel nem jamais viu um dêles; porque nossa avó lavava roupa sôbre uma tábua, dentro do tanque, e nunca ouviu rádio, não viu televisão, nem se maravilhou com a vista de um aeroplano; ambos não foram tão espertos quanto nós; e, um passo adiante — que de algum modo êles não foram tão bons quanto nós somos; que de alguma forma Deus nos tem abençoado a nós mais do que a quaisquer outras pessoas, com a concessão de muitas coisas materiais. Poderemos esquecer que êles nunca tremeram ante o pensamento das bombas atômicas. Mas mes-mo nesse sentido, sabemos construir grandes bombas. E contanto que paguemos os impostos, construí-las-emos em quantidade maior do que o fazem os nossos semelhantes, e estaremos garantidos— sabemos fazê-las. E com o que sobre podemos prover-nos de comodidades matérias, e a vida pode sernos agradável — com uma entrada reduzida e prestações módicas.
É a velha, velha história de confundir os meios de produção com o bem que alguém espera vir a fazer. E num olhar restropectivo para o tempo de Caim, vemos que seus descendentes adotaram a filosofia de vida que êle preconizou. Lembrai-vos de que havia aquela família extraordinária do músico Jubal “pai de todos os que tocam harpa e órgão”, e Tubal-Caim, o homem que, mais que ninguém, sabia fazer maiores e melhores curiosidades. Eram gênios. Eram peritos em artes e ofícios.
Havia, também, o seu pai, Lamec, homem conhecido por três coisas no comêço da história do mundo. Tanto quanto sabemos, foi êle o primeiro homem a desfazer os laços de família e introduzir a poligamia. Foi o segundo homem, pelo que sabemos dos nossos registos, a cometer assassínio. Foi, também, pessoa que sabia, depois de cometer essa ação, compor um poema a seu respeito. Êsse era Lamec, homem que exemplificou essa filosofia de vida, homem forte, artista, literato, no verdadeiro sentido da palavra, disposto a romper com a organização social do seu tempo; sem, entretanto, ser homem bom, mas homem que, com sua família, exemplificava a filosofia de vida que seu antepassado Caim iniciara; homem que, com sua família, representa a espécie de mundo de que Deus afinal disse haver-Se arrependido de ter feito, e o destruiu. Mas êles sabiam fazer.
Enoc — Um Contraste
Havia também Enoc, o sétimo depois de Adão. E sabeis que, ao contarmos as gerações de Adão, nos descendentes de Caim, de Set, afigura-se-nos que Enoc e Lamec foram contemporâneos. É-nos dito que “Enoc andou com Deus… trezentos anos,… e… Deus o tomou.” Não nos é dito, porém, que Enoc foi grande inventor. Não há menção de haver sido homem de artes e letras. Tanto quanto sabemos, Enoc não se salientou em saber fazer, mas possuía qualidades mais importantes — Enoc sabia a respeito do que; Enoc sabia a respeito de quem. O profeta Judas, muitos séculos depois de Enoc, diz-nos o que Enoc sabia: “E dêstes profetizou também Enoc, o sétimo depois de Adão, dizendo: Eis que é vindo o Senhor com milhares de Seus santos; para fazer juízo contra todos e condenar dentre êles todos os ímpios, por tôdas as suas obras de impiedade que impiamente cometeram, e por tôdas as duras palavras que ímpios pecadores disseram contra Êle.” (Vs. 14 e 15).
Ao olharmos para Lamec e seu grupo vemos o reflexo do mundo em que Enoc estava testemunhando de Deus, bem como aquêle andar diário de Enoc com Deus. Durante mais de 100.000 dias, andou Enoc com Deus. Dia a dia, embora Enoc vivesse no mundo em que estava, formou e desenvolveu o caráter pio tal que o Senhor Deus finalmente o retirou dêste mundo ímpio diretamente para as côrtes da glória. Enoc sabia o que e conhecia quem.
Outro homem que sabia o que, foi Jó. Lembrai-vos de como se sentou sôbre a cinza, sofrendo de maneira indizível fisicamente, e talvez ainda mais mentalmente, com seus três amigos a inquirirem-no dia a dia, dizendo: “Certamente você procedeu de maneira terrível, para que Deus o trate desta forma,” e a própria espôsa foi ter com êle, dizendo-lhe: “Amaldiçoa a Deus, e morre!” Não havia no mundo pessoa alguma que compreendesse a sua situação, ninguém que dêle se compadecesse. Doía-lhe o corpo todo. Não obstante, em meio de tudo, Jó conhecia quem. “Eu sei que o meu Redentor vive, e que por fim Se levantará sôbre a Terra: e depois de consumida a minha pele, ainda [e podeis perceber um sorriso de confiança na face de Jó] em minha carne verei a Deus” (Jó 19:25 e 26).
Outro homem, o apóstolo Paulo, conhecia quem. Ao estar sentado naquele velho calabouço romano, após anos de prisão, tendo atrás de si o trabalho de sua vida, e com nenhuma outra perspectiva futura além da morte pelo martírio, foi-lhe possível escrever ao amigo mais querido: “Não me envergonho, porque eu sei em quem tenho crido, e estou certo de que é poderoso para guardar o meu depóstio até aquêle dia” (II Tim. 1:12). O apóstolo Paulo conhecia quem.
Possamos nós viver num mundo que mede suas normas pelo materialismo, um mundo em que a medida de tôdas as coisas, quase se diria, é saber fazer — possamos, como Enoc, que viveu num mundo idêntico, e Jó, e o apóstolo Paulo, saber em quem temos crido, e que é poderoso para guardar até aquêle dia, o que a Êle confiamos.