A resposta para os males do nosso mundo, no contexto do santuário celestial
Eles clamavam em alta voz: ‘Até quando, ó Soberano, santo e verdadeiro, esperarás para julgar os habitantes da Terra e vingar o nosso sangue?” (Ap 6:10).
“Milhares de milhares O serviam; milhões e milhões estavam diante dEle. O tribunal iniciou o julgamento, e os livros foram abertos” (Dn 7:10).
Muitos anos atrás, eu viajava para a costa norte dos Estados Unidos, para fazer uma palestra sobre o santuário em uma faculdade adventista. Assim que nos sentamos, eu e o passageiro ao meu lado conversamos a respeito do propósito de nossa viagem. Quando pensei que a conversa havia terminado, repentinamente ele me fez esta pergunta: “Sobre o que você vai falar?”
Enquanto eu lutava para descrever o assunto de minha palestra, de maneira que fizesse sentido para ele, ocorreu-me o pensamento de que, como adventistas, nós temos desenvolvido uma linguagem específica a respeito do tema santuário, que não é fácil traduzi-la em termos comuns para o público em geral. Em um dos meus livros sobre o santuário,1 deixo claro que, a fim de compreendermos plenamente o ensino central desse tema, necessitamos focalizar seus princípios básicos. Fazendo isso, todo o processo do santuário antigo se divide em três segmentos fundamentais:
- Expiação no pátio exterior – apontando o Calvário.
- Intercessão no lugar santo – figura do ministério de Jesus, nosso grande Sumo Sacerdote, desde a ascensão até o fim do tempo da graça.
- Serviços solenes do Dia de Expiação anual – simbolizando o juízo.
Desejo focalizar os aspectos do terceiro segmento.
Coçando onde o povo coça
Se a doutrina do santuário deve permanecer relevante e forte, ela deve como que fazer contato com o mundo contemporâneo, falando a seus problemas e anseios. Em outras palavras, deve “coçar onde o povo está coçando hoje”.
Qual é o maior desejo das pessoas ao nosso redor (e mesmo nosso desejo)? Entre outros, gostaria de sugerir os seguintes: justiça, perdão, reconciliação, paz, comunidade, renovação, segurança. E quais são os problemas que enfrentamos? Xenofobia, alienação, solidão, aborrecimento, estresse, desespero, desavenças, futilidade. Este artigo aborda justamente um desses anseios contemporâneos – o desejo por justiça. A justiça não apenas está intimamente entrelaçada com juízo, mas constitui-se o objetivo fundamental dele. Assim sendo, é um tema central do santuário.
Enquanto eu preparava minha tese doutoral sobre a doutrina do santuário na igreja adventista, em uma sala da Biblioteca Tiago White, na Universidade Andrews, tive a companhia de outro doutorando que pesquisava sobre Daniel 7. Lembro-me perfeitamente do dia em que ele literalmente pulou da cadeira, quebrando o silêncio do ambiente e anunciou: “Achei!” Estudando cuidadosamente o texto original, ele havia descoberto que o juízo descrito em Daniel 7 estava acontecendo no tempo histórico, contemporaneamente às atividades do “chifre pequeno” na Terra – o que significava que o juízo estava acontecendo pré-advento. Ele sempre havia acreditado desse modo, mas a razão de seu entusiasmo foi o fato de ele haver realmente visto isso no texto.
Os adventistas têm a tendência de confinar esse juízo (pré-advento) a comparativamente poucas pessoas que têm reivindicado o nome de Deus ao longo dos séculos. Mas, uma leitura cuidadosa de Daniel 7, em conjunção com Daniel 8 e as seções correspondentes no livro de Apocalipse, indicaria que o juízo pré-advento inclui, em seu escopo, o fiel povo de Deus – “os santos do Altíssimo” (Dn 7:18, 22); o povo apóstata de Deus, simbolizado pelo “chifre pequeno”, “Babilônia” e a besta que surgiu do mar, de Apocalipse 13 (Dn 7:8, 11, 20-22, 25, 26; Ap 13:5-8; 16:10, 11; 18:2, 15-20); “os reis” e “os habitantes da Terra” cooperando com Babilônia (Ap 17:1, 2; 19:17-20)); o demônio – “a antiga serpente”, o enganador de todo mundo (Ap 12:9; 20:1-3) e, finalmente (em certo sentido), o próprio Deus (Ap 15:2-4; 19:1, 2, 11-16).
Embora seja impossível desembrulhar tudo isso em um só artigo, na verdade, a lista mostra os amplos parâmetros dessa extraordinária sessão do tribunal celestial. Daniel 7 significa o confronto de nações, instituições e indivíduos com apavorante gravidade desse tribunal em sessão, agora e com suas profundas implicações para cada pessoa na Terra. Acreditar de outra forma é responsabilizar Deus, inadvertidamente, pela injustiça. Pois em Apocalipse 16, as sete últimas pragas do santuário celestial são derramadas apenas sobre os que têm “a marca da besta” – indicando claramente “ter havido uma avaliação prévia, a fim de imprimir a marca legalmente a alguns e não a outros”.2
Por que é importante
Num tempo de crescente impaciência e frustração das pessoas com a administração de justiça no mundo, essa mensagem de juízo, corretamente conduzida, alcançará o constante desejo humano por justiça.
Senti isso durante um voo da Alemanha à África do Sul, em 1995. A senhora que sentou ao meu lado, percebendo que eu era pastor, quis saber minha opinião sobre os genocídios em Bósnia e Ruanda. Ela não podia entender como os perpetradores daquelas atrocidades podiam continuar impunes. Enquanto eu observava a profundidade da preocupação dela, comecei a lhe falar sobre o juízo e, com surpresa, percebi tranquilidade em seu rosto. Quando terminei de falar, ela sorridente compreendeu que, em última instância, há Alguém que levará os perversos à justiça.
Em ligação com isso, sempre me sinto fascinado pelo Salmo 73, com suas descrições a respeito do mal e o destino de seus perpetradores. Asafe, a quem é atribuída a autoria desse Salmo, confessou que “faltou pouco para que se desviassem” os seus passos, ao invejar a prosperidade do ímpio. Inflados pela arrogância, eles reivindicavam os céus e a Terra e, nesse processo, chegavam a questionar a sabedoria de Deus (Sl 73:6-11). “Sempre despreocupados”, aumentavam suas riquezas, enquanto os piedosos e humildes sofriam tormento e escárnio (v. 12-15).
Esse é o grande enigma dos séculos. É a vida imparcial? Há justiça? Isso quase levou Asafe ao agnosticismo; em muitas maneiras ainda contamina nossa mente hoje. “Quando tentei entender tudo isso, achei muito difícil para mim”, disse Asafe, “até que entrei no santuário de Deus, e então compreendi o destino dos ímpios” (v. 16, 17).
Qualquer que seja o significado das palavras de Asafe, elas certamente apresentam o santuário como o lugar em que nossa visão é desanuviada, o enigma da vida é esclarecido, e nós obtemos um claro conceito da justiça final. Vista através da lente do santuário, a descoberta de Asafe pode nos trazer, em nossos dias, o senso de segurança, reconciliação, paz, renovação e esperança.
O clamor do mundo
No tempo presente, o espectro da injustiça nos oprime. Há os produtores e disseminadores da pornografia que, com seus multibilionários empreendimentos, fazem naufragar anualmente incontáveis famílias e vidas. Assim também fazem os que traficam drogas ilícitas e seres humanos; assassinos facínoras; terroristas, audaciosamente mutilando e matando pessoas inocentes; os chefes do crime organizado, e aqueles que oprimem o pobre desamparado. Se catalogássemos todas as injustiças da sociedade contemporânea, poderíamos encher inacabáveis volumes enciclopédicos.
Os Estados Unidos estão entre os melhores países do mundo em relação à justiça. No entanto, é um país em que um homem que mata um inocente jovem negro de 17 anos, anda livremente e continua administrando seus negócios. Por outro lado, uma mulher negra em Tampa, Flórida, que disparou uma arma de advertência contra uma parede, a fim de assustar o marido abusador – sem ferir ninguém – foi condenada a 20 anos de prisão.
Hoje, mil pontos de conflito ao redor do mundo estão adormecidos, latentes, mas não mortos, porque a justiça nunca foi realizada. Genocídios revoltantes e crimes contra indivíduos e humanidade continuam sem solução e sem punição.
Em 16 de fevereiro de 1997, o programa 60 Minutos, da rede CBS apresentou uma reportagem de Bob Simon, sobre a Comissão de Reconciliação e Verdade da África do Sul. A comissão se esforçava para compreender plenamente os trágicos eventos que tiveram lugar durante os anos cruéis do apartheid. Ao descrever a maneira pela qual a comissão trabalhava, Simon, talvez involuntariamente, usou uma linguagem que extravasou o clamor universal por justiça: “As vítimas contam suas histórias, histórias de atrocidades literalmente indescritíveis… Então, tudo o que os perpetradores têm é a chance de confirmar seus crimes e, fazendo assim, tornam-se elegíveis para anistia. Tudo o que eles têm que fazer é dizer a verdade. Nem mesmo precisam dizer que sentem muito – nada de pedido de desculpas, nenhum remorso nem justiça.”3
A comissão certamente respondeu ao profundo desejo humano de perdão e, seu arquiteto, Nelson Mandela, recebeu os merecidos elogios de todo o mundo. Por outro lado, a comissão poderia ser vista, essencialmente, como símbolo da impotência humana diante do gigante maligno que paira sobre muitos sistemas ou indivíduos poderosos. Charity Kondile, mãe de um garoto que foi assassinado e queimado por agentes da polícia secreta, disse dolorosamente: “Imagine, algumas pessoas estão presas porque roubaram um chocolate. Agora, homens que cometem crimes tão bárbaros são anistiados. Acho ridículo, inacreditável!”4
É contra essas e muitas outras questões desoladoras que nós devemos proclamar a mensagem de um juízo em sessão, agora. Ao aceitarmos que as “almas” debaixo do altar, em Apocalipse 6:9, 10, se referem aos mártires através dos séculos, estamos certos. Porém, se nós pensamos que a referência é apenas a eles, limitamos a afronta feita a um Deus ofendido – um Deus que registra a queda do menor pardal, que sofre pela crueldade cometida contra todo ser humano sobre a Terra.
É verdade que acreditamos na misericórdia. Cremos na graça. Sem elas, onde estaria qualquer um de nós? Todavia, noto que quando Paulo, o inigualável campeão da graça entre os líderes cristãos primitivos, apareceu na corte de Félix, a mensagem que ele apresentou não incluiu nenhuma das duas coisas. Diz o relato: “Quando Paulo se pôs a discorrer acerca da justiça, do domínio próprio e do juízo vindouro, Félix teve medo” (At 24:25).
Algumas vezes, pensamos que Deus é demasiadamente bom para punir pessoas – que Ele deixa esse trabalho sórdido para o demônio. Mas, se o próprio Deus não fizer justiça contra os autores de atrocidades e crimes sanguinários cometidos ao longo dos séculos, então vivemos em um universo imoral. Diante do mal extremo, há um sentimento no qual a pressa em direção à misericórdia é insensível, irresponsável, até mesmo imoral – um sentimento de que a inércia é criminosa. Em missão para a Organização das Nações Unidas, ONU, durante o genocídio em Ruanda, o general aposentado Romeo D’Allaire, do exército canadense, em vão pediu ajuda a seus superiores – alimento, remédio, dinheiro e três mil soldados. Tragicamente, a ONU nunca respondeu.
A lembrança daquele pesadelo catastrófico e particularmente de sua impotência no rastro daquela experiência sombria abalou o equilíbrio mental de D’Allaire e o enviou para tratamento psiquiátrico. Houve ocasião em que ele tomava nove tranquilizantes e antidepressivos por dia, para livrá-lo da loucura. Em fevereiro de 2001, durante uma entrevista a Kevin Newman, da rede ABC de televisão, D’Allaire confessou abertamente que esteve a ponto de cometer suicídio.5
A injúria contra a injustiça está profundamente sepultada na mente humana.
Verdade presente
Olhar os atos de injustiça e tragédias apenas como sinais do tempo, frequentemente, significa deixar de partilhar da indignidade que afeta as pessoas normais. Podemos parecer insensíveis, com a cabeça nas nuvens, alheios às aflições comuns às pessoas ao nosso redor. Somente quando podemos partilhar da indignação coletiva da sociedade, em relação ao fracasso de nossos sistemas humanos, podemos apontar a realidade da justiça cósmica.
Uma grande lista de santos do Antigo Testamento, em sincronia com “as almas debaixo do altar” no santuário celestial, clama por juízo, justiça, vindicação. Eles representam o clamor de milhões através dos séculos e ao redor do mundo que foram vitimados por causa de sua fé, religião, raça, origem étnica ou crenças políticas. Se essa não é uma das preocupações mais básicas da sociedade contemporânea, então devemos estar ouvindo notícias de outro planeta.
O juízo referido por Paulo na corte de Félix – juízo futuro nos dias do apóstolo – está em sessão agora. E a mensagem de Deus a ser proclamada “a toda nação, tribo, língua e povo”, em “alta voz”, é a seguinte: “Temam a Deus e glorifiquem-nO, pois chegou a hora do Seu juízo” (Ap 14:6, 7). “O tribunal iniciou o julgamento, e os livros foram abertos” (Dn 7:10).
Félix temeu, mas nenhum dos filhos de Deus necessita temer. O antigo Dia da Expiação em Israel terminava com esta declaração feita ao povo: “Vocês estarão puros de todos os seus pecados” (Lv 16:30). No juízo descrito em Daniel 7, o Ancião de Dias “pronunciou a sentença a favor dos santos do Altíssimo” (v. 22); e em Apocalipse 19:9, os fiéis de Deus são “convidados para o banquete do casamento do Cordeiro!”
Simplificando, no contexto do santuário celestial, o juízo é a ação de Deus no sentido de responsabilizar os autores do mal e da injustiça neste planeta e no cosmos; limpar de Seu nome a mancha, calúnia e o estigma universal que lhe foram lançados por causa do pecado e da maldade no mundo, pelas maquinações de Satanás e seus anjos. Finalmente, para vindicar o nome e o povo de Deus.
O clamor por justiça se torna mais alto a cada dia que passa. Mas, com esse clamor, também aparece a crescente compreensão da insuficiência da justiça humana. Qual tribunal humano poderia julgar as bestas humanas que têm maquinado os horrores e massacres sangrentos através dos séculos? Alguns crimes cometidos são muito complexos e intrincados para ser esclarecidos pela justiça humana. E alguns dos criminosos são tão poderosos e bem conectados com tribunais humanos, o que dificulta a ação penal. É por isso que necessitamos de um juiz suficientemente grande para julgar o sistema, por mais bem estabelecido que seja, e grande o suficiente para enfrentar as mais arraigadas cidadelas do crime organizado, onde quer que elas estejam. Necessitamos de um juiz absolutamente acima de corrupção ou intimidação. Esse Juiz é Cristo, diante de cujo tribunal todos nós compareceremos (Rm 14:10; 2Co 5:10).
Referências:
- 1 Roy Adams, The Sanctuary: Understanding the Heart of Adventist Theology (Hargerstown, MD: Review and Herald, 1993).
- 2 Ibid., p. 125.
- 3 Transcrito do programa 60 Minutos, 16 de fevereiro de 1997, da rede CBS de TV, Como Mandela tentou suavizar as feridas da guerra (disponível no arquivo do autor).
- 4 Ibid.
- 5 abcnews.go.com/Nightline/history?id=1&singlePage=true; acessado em 17 de junho de 2014.