Ainda hoje historiadores há que se comprazem em afirmar que a Idade Média foi “uma longa noite de trevas”. O amor das artes e das letras teria se extinguido totalmente nesse período da história da humanidade. Com um pouco de atenção, porém, vê-se quão falsa é tal suposição. O facho imortal da ciência, das artes e do belo jamais se extinguiu totalmente. Houve, isto sim, um declínio. De fato, a cultura greco-latina sofreu um abatimento considerável sob a agitação produzida pelas invasões bárbaras; a partir desse momento, o mundo começou a organizar-se levando em conta o fator germânico. Com suas fortes qualidades de raça, o teutão contribuiu para a florescência da civilização de que se apropriou e na qual modelou a sua mentalidade. Nas formas latinas, já tradicionais, inoculou o espírito germânico, o sentimento de liberdade pessoal que desaparecera sob o despotismo do Estado romano. Já no fim da Idade Média, a crescente prosperidade dos povos, a liberdade das cidades mais importantes da Europa, os benefícios de um espírito mais liberal acabaram, por fim, por criar, ao lado da cultura eclesiástica — a única existente na baixa Idade Média — uma cultura secular. Aí está o germe do espantoso desenvolvimento da Idade Moderna. Fatos múltiplos prepararam o movimento característico que pôs fecho à Idade Média (1453): a tomada de Constantinopla pelos turcos, a imprensa, a descoberta da pólvora e da bússola e, por fim, as vitórias sobre mares “nunca dantes navegados”. Surgiu, com esses elementos em estado de fermentação, o chamado Renascimento: um novo renascer (pois já houvera, na Idade Média, outros Renascimentos) das artes, ciência e belas-letras.

A nova era — o Renascimento — foi aberta na Itália, tendo Dante como precursor, seguido de Petraca e Bocácio. O Papa Leão X logo começou a proteger os artistas e os escritores, juntamente com os demais membros da família dos Médicis. Da Itália o movimento passou para a Alemanha e de lá generalizou-se, penetrando em todos os países europeus, inclusive em Portugal.

A Idade Média foi um período eminentemente teocrático. A idéia de Deus estava firmemente arraigada em todos os espíritos. A Igreja Católica, detentora de privilégios ímpares, dominava as consciências e os espíritos. O papado, ao lado do feudalismo, completava o binômio “poder-espiritual versus poder-secular”. Era uma época de fé. Depois que o suave misticismo de São Bernardo, no século XII, iniciou um trabalho admirável sobre a Paixão de Cristo, a sensibilidade religiosa da alma medieval não mais cessou de desenvolver-se. Referem os cronistas da época que o povo, em massa, chorava quando ouvia a leitura da Paixão e Morte de Cristo, feita por um leitor que tinha boa dicção e capacidade fônica. O espírito popular estava impregnado dos conceitos de Cristo e da Cruz. Desde a mais tenra idade, a imagem da Cruz implantava-se no sensível coração infantil. Quando Jean Gerson era criança, viu o pai encostar-se a uma parede, abrir os braços em cruz e exclamar: “Foi assim, meu filho, que crucificaram o teu Deus, aquele que te criou e te salvou.” O povo não sabia ler, mas era freqüente encontrar-se em plena Idade Média (do século IX ao XIII) pessoas que sabiam a Sagrada Escritura de cor, ou ao menos substanciosos trechos. O povo tinha preferência pelos textos que relatavam o nascimento e a morte do Salvador; do Antigo Testamento — sempre segundo os cronistas medievais — gostavam de recitar as histórias de Davi, de Tobias, de Judite, Ester e Jó. Os Salmos eram conhecidos apenas em pequenos trechos, ao passo que os profetas, Isaías, Jeremias, Daniel e outros eram recitados de cor, pelo menos nas suas partes mais importantes. Não havia quem não conhecesse a tocante história dos Macabeus. O pobre povo medieval não só conhecia as Sagradas Escrituras, mas as vivia. Referem os cronistas da época que um pregador interrompeu o sermão por um quarto de hora e permaneceu silencioso com os braços em cruz; os fiéis, choravam. Uma pobre freira que levava lenha para a cozinha do mosteiro, imagina-se transportando a Cruz do Salvador. Uma cega que lava a roupa toma a selha pela manjedoura, e a casa de lavar pelo presépio. Os pregadores, sempre, começavam e terminavam seus sermões com citações das Sagradas Escrituras. Não raro, o pregador limitava-se a relatar um fato bíblico, e, ao fim, aplicava-o à sua comunidade. Como se vê, era uma época em que a Palavra de Deus gozava de grande prestígio.

Nos albores do século XVI, outro era o aspecto da Europa.

O Renascimento e o Humanismo trouxeram novas idéias. Já agora não Deus, mas o Homem era o centro do Universo.

Surge a escola chamada Clássica, que toma como modelo as obras imortais gregas e latinas. É um neo-paganismo que se insinua na Europa cristã. Em lugar da Bíblia, as obras de Cícero.

Os prelados da Cúria Romana negam-se a ler a Bíblia na versão da Vulgata (feita por São Jerônimo), porque o Latim em que é vazada lhes fere a sensibilidade do ouvido acostumado com o Latim dos poetas e prosadores da Idade Áurea da Literatura Latina. Cardeais recusam-se a ler em Latim as Epístolas de São Paulo, porque elas não foram redigidas com pureza ciceroniana. Os novos modelos são os clássicos da latinidade: Cícero, Vergílio, Ovídio, Horácio . . .

É a época do grande desprestígio da Bíblia no seio das comunidades católicas.

Mas Lutero, que fizera a tradução da Sagrada Escritura para o alemão (uma atitude sem precedentes, considerada audaciosa), incita os seus seguidores a lerem a Bíblia. É ela a palavra de Deus, o alimento da alma. Percebe-se, então, esta coisa singular: Lutero e os protestantes, ardentes adeptos da leitura da Bíblia; os católicos, esquecidos da Palavra do Senhor.

Veio a corrupção, a imoralidade, o esquecimento das leis divinas. É a época dos grandes excessos.

Humanistas como Erasmo de Roterdão, Guillaume Bidet, Sículo, Mateus de Pisano, Baldino e outros mais, além dos portugueses Aires Barbosa, Pedro Nunes, Lourenço de Cáceres, Jorge Coelho, Diogo Sigeo, Pedro Sanches, Pedro Margalho, André de Resende, Jerônimo Cardoso, Damião de Góis e mais uma plêiade que seria ocioso enumerar, pouco ligavam à Bíblia, voltados que estavam para as obras mestras da Literatura Latina pagã. É verdade que Erasmo fez uma edição crítica das Sagradas Escrituras, mas não por espírito de fé; apenas para exercitar seu senso crítico. Todos esses autores, latinistas de alto coturno (e alguns eminentes helenistas), escreviam suas obras geralmente em Latim. Usavam o Latim clássico, não o popular das Escrituras.

xXx

O petrarquismo, de algum modo ligado à cortesia trovadoresca, à qual se acrescentou uma dimensão metafísica, tem início, em Portugal, com Sá de Miranda.

O petrarquismo, do qual decorrem numerosas implicações ideológicas e formais, articula-se sobretudo, na criação de um tipo idealizado de mulher, objeto inacessível, porque divinizado, de uma paixão jamais satisfeita, porque humana. Ela caracteriza-se por condensar todas as perfeições espirituais que podem justificar o êxtase e a contemplação do poeta — amor só realizável através da fusão do espírito dos dois amantes: “Transforma-se o amador na coisa amada”, dirá Camões.

Neste contexto clássico-petrarquista não há lugar para o “amor divino do bom Salvador que por nós morreu na Cruz.” A estética clássica cria uma imagem “teórica” da Vênus ideal. É o amor carnal, platônico ou não do petrarquismo clássico. Há um novo enfoque na concepção da Mulher. O episódio camoneano da “Ilha dos Amores” é significativo. Em linhas gerais, pode-se dizer que a Mitologia superou a Bíblia.

Camões não fugiu à regra dos poetas quinhentistas. Está inteiramente voltado para a Mitologia greco-latina. O seu Humanismo é visceralmente renascentista, assim como a reflexão filosófica que informa tanto a lírica como a epopéia camoneana.

Mas, não obstante, Camões serviu-se abundantemente da Bíblia na sua vastíssima obra. Conhecia profundamente as Sagradas Escrituras. Sabemos que o nosso Homero Português tinha sólidos conhecimentos de Teologia. Onde os adquiriu, ignoramos. Toda a obra camoneana está cheia de citações e reminiscências bíblicas, em geral com tom suavemente afetivo, o que bem indica o caráter religioso de Camões.

Nas suas Cartas aparecem expressões bíblicas, em Latim, como era costume no tempo: Et vinum laetificat cor hominis, “E o vinho alegra o coração do homem”; Cum Gladiis et fustibus, “Com espadas e varapaus” (episódio da Paixão de Cristo); In vanum laboraverunt, “Em vão trabalharam …” In circuitu impii ambulant, “Os ímpios andam à roda”, isto é, os caminhos do vício são tortuosos, frase do Salmo XI; Pater peccavi in caelum et coram te, “Pai, pequei contra o Céu e contra ti”. . .

Nas Líricas, são sem número as citações bíblicas. Todos conhecem o formoso soneto camoneano,

“Sete anos de pastor Jacó servia Labão, pai de Raquel, serrana bela; Mas não servia ao pai, servia a ela, Que ela só por prêmio pretendia. Os dias, na esperança de um só dia, Passava, contentando-se com vê-la; Porém o pai, usando de cautela, Em lugar de Raquel lhe dava Lia. Vendo o triste pastor que com enganos Lhe fora assim negada a sua pastora, Como se a não tivera merecida, Começa a servir outros sete anos, Dizendo: — Mais servira, se não fora Para tão longo amor tão curta a vida!”

Este soneto refere-se ao episódio bíblico que vem narrado no Gênesis, 29:1-30.

São, também, conhecidas as redondilhas

“Sobolos rios que vão Por Babilônia, me achei Onde sentado chorei As lembranças de Sião E quanto nela passei. Ali, o rio corrente De meus olhos foi manando; E, tudo bem comparado, Babilônia ao mal presente, Sião ao tempo passado . . .

E se eu cantar quiser,

Em Babilônia sujeito,

Hierusalém, sem te ver,

A voz, quando a mover,

Se me congele no peito …”

Temos, aqui, a paráfrase do formoso Salmo CXXXVI.

No soneto 113, Camões, de modo enigmático, refere-se à corrupção do seu tempo, usando de expressões bíblicas:

“Cá nesta Babilônia, donde mana Matéria a quanto mal o mundo cria, Cá onde o puro Amor não tem valia, Que a Mãe, que manda mais, tudo profana;

Cá, onde o mal se afina e o bem se dana, E pode mais que a honra a tirania;

Cá, onde a errada e cega Monarquia Cuida que um nome vão a Deus engana; Cá neste labirinto, onde a nobreza Com esforço e saber pedindo vão Às portas da cobiça e da vileza;

Cá neste escuro caos de confusão,

Cumprindo o curso estou da Natureza. Vê se me esquecerei de ti, Sião!”

Mas onde mais se percebe o amor de Camões pelas Sagradas Escrituras é no poema épico “Os Lusíadas”, publicado pela primeira vez em 1572. De feito, para começar, o nome de Cristo vem citado 21 vezes no decurso da epopéia. O nome de Jesus, 3 vezes:

“Que assim dos Vates foi profetizado,

E depois por Jesu certificado” (III, 117)

“Olha que de Narsinga o senhorio Tem as relíquias santas e benditas Do corpo de Tomé, barão sagrado, Que a Jesu Cristo teve a mão no lado” (X, 108)

“Viram todos o moço, erguido,

Em nome de Jesu crucificado …”

(X, 155).

Estes últimos versos, do Canto X, relatam, a partir da oitava 109, a história de Tomé, o apóstolo, que, no Oriente, pregou a palavra do Senhor, deu saúde aos doentes e vida aos mortos, e praticou inúmeros milagres, segundo a tradição.

São sem conta as expressões bíblicas que usa em toda a sua obra, notadamente no poema épico. Citarei, apenas, uma, que é a versão do Salmo 8, versículo 3:

“Da boca dos pequenos sei, contudo,

Que o louvor sai às vezes acabado”

(X, 154).

O referido Salmo traz: “Da boca das crianças e dos pequeninos sai um louvor …” Conforme o texto da Vulgata: Ex ore infantium et lactentium perfecisti lauden . . .

O nome de Davi aparece no poema 2 vezes:

“Que o filho de Davi nos ensinou …” (I, 71).

“Do pecado tiveram sempre pena Muitos, que Deus o quis e permitiu: Os que foram roubar a bela Helena, E com Ápio também Tarquino o viu. Pois por quem Davi santo se condena? Ou quem a tribo ilustre destruiu

De Benjamim? Bem claro no-lo ensina Por Sarra Faraó, Siquém por Dina” (III, 140).

Esta oitava exige algumas explicações. Primeiramente, no verso 71 da I estrofe, por “filho de Davi” entende-se o Cristo. Na oitava 140, Camões mistura Mitologia com textos bíblicos. Refere-se ao tocante episódio que vem relatado em II Samuel, 11:1-27. “Benjamim” diz respeito à tribo (no tempo de Camões este substantivo era do gênero masculino) de Benjamim, que foi chacinada em virtude de alguns homens dela terem praticado atos lascivos numa mulher da tribo de Levi; “Sarra” é Sara, mulher de Abraão, que o faraó quis seduzir; Deus puniu-o; “Siquém” é filho de Hemor; raptou Dina e violentou-a; “Dina” é filha de Jacó e Lia; seus irmãos, Simeão e Levi, mataram Siquém.

O legislador Moisés também comparece no poema:

“Olha as águas, nas quais abriu patente Estrada o grão Mousés na antiga idade” (X, 98).

São Pedro, o chefe dos Apóstolos, vem no Canto IV, oitava 13:

“Podendo o temor mais, gelado, inerte, Que a própria e natural fidelidade,

Negam o Rei e a Pátria, e, se convém, Negarão, como Pedro, o Deus que tem.”

O episódio tocante da “negação de Pedro” está em S. Mateus 26:69-75; S. Marcos 14: 66-72; S. Lucas 22:55-62; e S. João 18:15-27.

Saul aparece no poema no Canto III, estrofe 111:

“Qual o membrudo e bárbaro Gigante,

Do rei Saul, com causa tão temido …”

O patriarca Abraão figura no Canto I, estrofe 53:

“O claro descendente de Abraão”, isto é, Maomé, que teve a “mãe hebréia e o pai gentio”.

Hagar aparece 3 vezes: III, 26; III, 110; e VIII, 47.

Já Babel, símbolo da confusão, que aparece inúmeras vezes nas poesias líricas, figura, apenas, 3 vezes nos Lusíadas:

“Entram no Estreito Pérsico, onde dura Da confusa Babel inda a memória …” (IV, 64).

“Os ventos eram tais, que não puderam Mostrar mais força de impito cruel, Se pera derribar então vieram

A fortíssima torre de Babel…” (VI, 74)

“……… mas, no tempo já passado,

Na Torre de Babel lhe foi vedado” (VII, 45).

O nosso pai Adão figura em 2 excertos:

“Que, desque Adão pecou aos nossos anos,

Não as romperam nunca pés humanos” (IV, 70).

“Na geração de Adão, co a falsidade . . .” (VIII, 65).

Benjamim, o filho mais jovem de Jacó, chamado Benoni, isto é, “filho-da-minha-dor”, figura no Canto III, estrofe 140. Ismael aparece no Canto IV, 63.

Os anjos são citados 3 vezes:

“Dos Anjos, que tão longe nos guiou” (V, 60).

“Que os Anjos de celeste companhia” (X, 84).

“Mas os Anjos do Céu cantando e rindo . . .” (X, 118).

Também o inimigo do gênero humano, o demônio, é citado 3 vezes:

“A segundo o Demônio lhe fingia” (VII, 47).

“A quem tem o Demônio leis escritas (X, 108).

“Demônios infernais, negros e ardentes” (X, 148).

Uma só vez o Poeta usa a forma reduzida eufêmica: “Sinal lhe mostra o Demo verdadeiro” (VIII, 46).

Por último, Maria, mãe de Jesus, aparece no poema uma vez:

“Quando na Cruz o filho de Maria . . .” (III, 45).

O patriarca Noé vem citado no Canto VII, 75, e Gabelo, que acolheu Tobias, no Canto V, 78:

“. . . Um padrão nesta terra alevantamos Que, pera assinalar lugares tais, Trazia alguns; o nome tem do belo Guiador de Tobias a Gabelo”.

O “guiador de Tobias é o Arcanjo São Rafael. Guiou Tobias filho a casa de Gabelo, a fim de receber a importância que Tobias pai lhe emprestara.

Dos topônimos, além de Babel, já mencionada, Camões alude a Belém (X, 12); Jerusalém (III, 27; VII, 6); Judéia (III, 27; III, 72; III, 86 e IX, 34); Samaria (VII, 39); Jordão (III, 27) e Paraíso (IX, 5; IX, 57).

Para concluir este rápido apanhado das influências bíblicas em Camões, quero registrar que o nosso Poeta não se esqueceu dos Reis Magos:

“Trazia o Sol o dia celebrado

Em que três Reis das partes do Oriente Foram buscar um Rei, de pouco nado, No qual Rei outros três há juntamente . . .” (V, 68).

Os versos camoneanos referem-se aos que relata S. Mateus 2:1-12. Eram os magos (palavra iraniana, em Latim magnus, magi, mágos em Grego) os sacerdotes da antiga religião de Zoroastro. Segundo Mateus, 3 magos vindos do Oriente e conduzidos por uma estrela, vieram adorar o menino Jesus em Belém. A tradição cristã fez desses magos reis poderosos, cujos corpos estão conservados na catedral de Colônia, na Alemanha. Chamavam-se, ainda segundo a tradição, Baltasar, Gaspar e Melchior. A perífra-se camoneana diz respeito ao Dia dos Reis, isto é, 6 de janeiro. “Um Rei” é Cristo; “de pouco nado”, recém-nascido; o último verso citado alude ao mistério e dogma da Santíssima Trindade: Um só Deus em 3 pessoas realmente distintas, Pai, Filho e Espírito Santo.