Muitos leem a Bíblia, mas nem todos a reconhecem como a Palavra autoritativa e inquestionável de Deus. A história mostra que sempre existiu quem a vê como um texto comum, fantasioso, contraditório, ou como a palavra de uma divindade que comunica sua mensagem em linguagem alegórica, figurativa e obscura.1 As formas como o texto bíblico é lido, interpretado e visto diversificaram-se muito, e isso tem se acentuado ao longo do tempo,2 como resultado da multiplicação de pressupostos e métodos hermenêuticos.

Como vários autores indicam, essas mudanças se devem ao surgimento do Iluminismo, racionalismo, secularismo, naturalismo ateísta, dos avanços das ciências humanas e da filosofia, sendo esta última a que teve maior impacto na hermenêutica bíblica.3 Friedrich Schleiermacher, Wilhelm Dilthey, Martin Heidegger, Hans Georg Gadamer, Paul Ricoeur, Jacques Derrida, entre outros, originaram formas de interpretação da Bíblia que produziram um cristianismo sem valores e cada vez mais polarizado em sua teologia. Como exemplo, pode-se citar a teologia da libertação, ecumênica, queer, feminista, política, antropológica, socialista, moral, dogmática, mística, entre tantas outras.

Esse pluralismo de abordagens e métodos hermenêuticos é apreciado por alguns e preterido por outros. No entanto, antes de fazer um julgamento, o estudante da Bíblia deve responder à seguinte pergunta: “Sei bem o que estou julgando?” O problema não é julgar, mas fazê-lo sem o conhecimento necessário do que está sendo avaliado. Por outro lado, não julgar o método ou a estratégia que está sendo usada para interpretar o texto bíblico é ainda mais perigoso, porque inadvertidamente pode violar a integridade, autoridade e relevância da Palavra de Deus.

Assimilação hermenêutica

É importante esclarecer que, normalmente, o que se julga no processo de interpretação bíblica não é a metodologia, mas as conclusões. Mark Allan Powell, 
referindo-se apenas aos estudos que são feitos no Novo Testamento, mencionou 12 métodos ou abordagens possíveis que o exegeta pode usar consciente ou inconscientemente em sua atividade acadêmica.4 Se forem adicionadas a estes outras metodologias aplicadas ao Antigo Testamento e aquelas menos conhecidas, a variedade de métodos e pressuposições torna-se difícil de numerar.

Consequentemente, um dos maiores perigos que o estudioso da Bíblia enfrenta é assimilar conclusões que pareçam corretas, sem uma avaliação prévia do método e dos pressupostos que acompanharam seu desenvolvimento, podendo ser enganados e confundidos. Além disso, é importante estar ciente de que é possível usar algum método para estudar a Bíblia sem saber disso, o que pode ser chamado de uso metodológico de segunda mão.

O risco de assimilar conclusões sem avaliar pressupostos e metodologias não se restringe a certos tipos de conclusões, pois mesmo os estudos semânticos dependem de suas metodologias e pressupostos. Um exemplo disso poderia ser o significado dado à palavra hebraica bābel, que tem sido interpretada como “confusão”, “porta de Deus”, “Deus Pai” e, ainda, a junção de tudo isso.

Apenas para ilustrar o que foi dito, Jacques Derrida, considerado o pai da desconstrução, concluiu que bābel significa “Deus Pai”. O desconstrucionismo utiliza ferramentas linguísticas e filosóficas, como o estudo do hebraico em profundidade e do desenvolvimento do pensamento humano, para chegar a suas conclusões. Seus pressupostos são (1) a relatividade do mal e do bem; (2) a inexistência de Deus; (3) o fim do cristianismo atual; (4) a escritura ilumina e esconde; (5) o desafio do logocentrismo; e (6) a primazia do ser humano no Universo. Assim, o desconstrucionismo vê a Bíblia como um texto com alto valor literário e profunda sabedoria, mas que não deve reivindicar superioridade sobre outros, uma vez que sua interpretação está aberta a novas possibilidades, que podem diferir ou contradizer as anteriores.

Diante dessas pressuposições, é difícil para um pastor adventista aceitar o significado proposto por Derrida para bābel. Mas outra afirmação menos problemática, como “a fé é um ato sem atestado”, poderia não suscitar ceticismo, se não se soubesse que surge como resultado da mesma metodologia e dos mesmos pressupostos desconstrutivistas.5

Considerando essa complexa realidade hermenêutica, o pastor, teólogo e exegeta adventista deve estar ciente de três questões: (1) nem toda proposta e conclusão alcançada por um trabalho de pesquisa, por mais bíblico que possa parecer, deve ser assimilada sem avaliação prévia dos métodos e pressupostos sobre os quais foi construída; (2) é necessário conhecer, tanto quanto possível, os métodos usados para realizar um determinado estudo bíblico ou religioso; e (3) antes de usar um determinado método em uma pesquisa bíblica e religiosa, o intérprete deve conhecê-lo bem e estar ciente dos pressupostos que o acompanham.

Tarefa hermenêutica

O grande desafio para o adventismo é cumprir sua tarefa hermenêutica com êxito e de acordo com a vontade de Deus. Para tanto, o maior problema que o adventismo enfrenta é o distanciamento que alguns de seus membros têm mantido das pressuposições de fé fornecidas pela revelação escrita, para adotar métodos e pressuposições críticas, científicas, evolucionistas, sociais ou políticas, entre outras. Isso tem levado ao pluralismo teológico6 e ao questionamento das crenças adventistas, algo que poderia ser encontrado entre críticos externos, mas que infelizmente tem sido a ocupação de alguns críticos internos bastante contundentes.

Isso mostra que o adventismo não apenas enfrenta o método histórico-crítico e seus pressupostos, mas uma infinidade de novas hermenêuticas7 que estão entrando em seu meio quase imperceptivelmente. Outro problema diretamente relacionado à hermenêutica adventista gira em torno da compreensão da revelação e inspiração, uma questão que também divide o adventismo em vários setores e é decisiva para a interpretação bíblica.8

Embora a hermenêutica adventista tenha enfrentado desafios em todos os períodos de sua história, nos últimos anos isso se intensificou. Leituras ecumênicas, cristológicas, canônicas, retóricas, pós-
modernas ou subjetivas representam um grande desafio para a teologia adventista.9 Além disso, teólogos da igreja não definiram um método específico de abordagem ao texto bíblico,10 de maneira que os resultados em termos de interpretação tornam-se diversos. O crescimento da igreja também é um desafio para a hermenêutica adventista,11 uma vez que a entrada massiva de pessoas com formação universitária secular, sem maturidade doutrinária, favorece a proliferação de diversas metodologias hermenêuticas que, com o tempo, são colocadas em prática.12

Frank Hasel destaca que a Bíblia não deve ser submetida à norma da razão humana, e muito menos à crítica, pois isso poderia produzir outro adventismo.13 A verdade é que para o adventismo não parece haver um método perfeito de interpretação, mas existem métodos melhores e mais respeitosos que, bem usados, levam a melhor compreensão do texto bíblico.14 Portanto, a avaliação dos métodos mais respeitosos, bem como das ferramentas hermenêuticas que eles fornecem, é uma tarefa imperativa que deve ser realizada. Somente assim a Igreja Adventista poderá manter a certeza de que sua compreensão a respeito da Bíblia não é guiada pela filosofia do momento.

Proposta hermenêutica

O adventismo, devido à sua visão particular da Bíblia e das ações de Deus no mundo, só pode valorizar um método ou estratégia interpretativa que considera ou inclui vários fatores. Esse método deve reconhecer a comunidade, sem ignorar, contudo, que a pessoa inspirada é quem fala à comunidade, e não a comunidade “inspirada” que fala às pessoas. Também deve admitir que Deus inspirou a Bíblia e os escritos de Ellen White e analisar o contexto do leitor; no entanto, sem fazer dele o fator hermenêutico decisivo quando se trata de interpretar as Escrituras.

Deve ainda considerar seu contexto literário e histórico, retórica, gramática, veracidade, condição canônica e autoria divino-humana. Por outro lado, deve favorecer também uma leitura bíblica baseada na fé, com a firme convicção de que é possível saber o significado que o texto teve para o autor e seus primeiros leitores.

Ao mesmo tempo, esse método deve aceitar que Deus Se comunica de maneira proposicional e intervém na história produzindo eventos naturais e sobrenaturais. Além disso, deve considerar seus temas centrais em uma relação harmoniosa e colaborativa, sem fazer de nenhum deles o juiz hermenêutico dos demais, devendo assim promover uma leitura sinfônica, e não monofônica da Bíblia.

Esse método também deve tomar as Escrituras como um todo, e Cristo como seu personagem central, enquanto se afasta de fazer uma crítica cristológica da Bíblia, para evitar a criação de um cânon dentro do cânon. Da mesma forma, deve promover uma leitura intrabíblica, que compare um texto com outro dentro do cânon, com discernimento, prudência e imparcialidade.

Finalmente, esse método, ainda inexistente, deve considerar que a Bíblia não existe para satisfazer curiosidades intelectuais, não foi dada a especialistas, comunica a obra e a vontade de Deus, transforma o ser humano, e que sua compreensão é uma obra sobrenatural, não meramente resultado do esforço humano.15 Tendo em mente todos esses fatores, a proposta deste artigo é que a prática interpretativa correta do texto bíblico, ou o método tão procurado, poderia depender mais de um padrão espiral e não tanto de uma metodologia específica.

Espiral hermenêutica adventista

Esse padrão começa com Deus como Mestre, e a Bíblia, como livro-texto. Ler a Bíblia ou ouvi-la é o primeiro grande passo, e Deus é o emissor da mensagem. A segunda etapa, o estudo, consiste na utilização de vários métodos hermenêuticos, tão simples como o estudo sistemático da Lição da Escola Sabatina, ou complexos como a aplicação de princípios semióticos, retóricos ou intertextuais ao texto bíblico. Esse é o quadrante em que há maior participação humana e que poderia eliminar por completo a participação divina, realidade amplamente demonstrada em contextos acadêmicos. O quadrante seguinte, que corresponde ao entendimento, depende de Deus em sua totalidade,16 pois quem ignorou Deus na fase de estudo nunca conseguirá entender o texto bíblico. 
No último quadrante, a ação humana volta a prevalecer, pois o que se entende deve ser ensinado e praticado e, para que isso se torne realidade, deve-se usar a vontade humana. Aqui é necessário esclarecer que, se o processo não chegar a esse quadrante, o Mestre divino não dará a próxima aula, que é mais ampla e profunda.

Portanto, embora os métodos possam auxiliar na compreensão do texto bíblico, de fato, a interpretação correta não está ligada à sofisticação do método, mas à intervenção divina e à vontade humana de ensinar e praticar o que Deus tem mostrado.

A interpretação bíblica é impossível, desafiadora e pouco animadora se for realizada sem a presença do grande Autor do texto sagrado. Sua presença muda tudo, porque “ao estudar a Palavra de Deus [sob Sua orientação], nossa mente será aguçada, e nosso entendimento, expandido. Aqueles que estudam e assimilam a Palavra, tornando-a parte de todas as suas ações e seus atributos de caráter, são fortalecidos no poder de Deus. Isso revigora a alma, tornando a experiência [interpretativa] perfeita e trazendo uma alegria que dura para sempre”.17 O adventismo pode avançar com confiança, com uma clara consciência de que o desafio hermenêutico que enfrenta atualmente é apenas uma motivação para depender mais de quem transforma desafios em vitórias.  

Referências

1 Justo L. González, Historia del Pensamiento Cristiano (Barcelona: Clie, 2010), p. 41-968.

2 Kathryn Greene-McCreight, “Interpretation, History of”, em Dictionary for Theological Interpretation of the Bible, Kevin J. Vanhoozer et al. (orgs.) (Londres; Grand Rapids, MI: Baker Academic, 2005), p. 331.

3 Colin Brown, Christianity & Western Thought (Nashville, TN: Broadman & Holman, 1990), p. 19-336.

4 Powell refere-se à (1) crítica textual; (2) abordagem arqueológica; (3) crítica científica social; (4) crítica histórica; (5) crítica das fontes; (6) crítica das formas; (7) crítica à escrita; (8) crítica narrativa; (9) crítica retórica; (10) estética da recepção; (11) crítica ideológica; e (12) abordagem desconstrucionista. Mark Allan Powell, “How do Biblical scholars study the New Testament?”, Bible Odyssey. Disponível em <link.cpb.com.br/b427f1>, acesso em 3/5/2021.

5 Benjamin Rojas Yauri, “Presuposiciones del acercamiento desconstruccionista derridiano y su influencia en la aproximación al texto bíblico” (dissertação de mestrado, Universidade Peruana Unión, 2012).

6 Kenneth Wood, “The Mother of us All: Mainstream Adventist”, Adventist Today, v. 2, n. 1, 1994, p. 4, 5.

7 Gerhard Hasel, La Interpretación de la Biblia (Buenos Aires: Aces, 1986), p. 92.

8 Fernando Canale, “Revelación e inspiración”, em Entender las Sagradas Escrituras: El enfoque adventista, George W. Reid (org.) (Buenos Aires: Aces, 2009), p. 87.

9 Alberto R. Timm, “Las Escrituras y la experiencia”, Ministerio Adventista, set-out 2009, p. 31.

10 Richard M. Davidson, “Interpretación bíblica”, em Tratado de Teología Adventista del Séptimo Día (Buenos Aires: Aces, 2009), p. 108.

11 Samuel Koranteng-Pipim, Recibiendo la Palabra ¿Cómo Afectan a Nuestra Fe los Nuevos Enfoques Bíblicos? (Buenos Aires: Aces, 1997), p. 18, 19.

12 Ángel Manuel Rodríguez, “Polarización Teológica: Causas y tendencias”, Ministerio Adventista, set-out, 2011, p. 13-19.

13 Frank M. Hasel, “Recent Trends in Methods of Biblical Interpretation”, em Biblical Hermeneutics (Silver Spring, MD: Biblical Research Institute, 2020), p. 461.

14 S. Teófilo Correa, “Intertextualidad y Exégesis Intrabíblica: ¿Dos Caras de la Misma Moneda? Breve Análisis de las Presuposiciones Metodológicas”, DavarLogos, v. 5, n. 1, 2006, p. 11.

15 Em 1906, Ellen G. White publicou 21 artigos na Signs of the Times sobre o tema, e muito do que estou sugerindo reflete o estudo desses documentos, bem como de outras publicações adventistas.

16 Em artigo publicado em 4/4/1906 na Signs of the Times, Ellen G. White afirmou que, no caso dos discípulos, foi o Grande Mestre ressurreto quem lhes abriu o entendimento, permitindo que compreendessem aquilo que, de outra maneira, permaneceria incompreensível para eles.

17 Ellen G. White, “The Incarnate Word”, Signs of the Times, 4/4/1906, p. 8.