A relação entre o princípio Sola Scriptura e os escritos de Ellen White

Os adventistas do sétimo dia acreditam que Ellen White recebeu o dom de profecia (1Co 12:10), e que Deus a designou como uma mensageira especial para chamar atenção para as Escrituras Sagradas. “Desde os 17 anos, até morrer 70 anos depois, Deus lhe deu cerca de 2.000 visões e sonhos. As visões variavam em duração de menos de um minuto a quase quatro horas. Ela escreveu o conhecimento e os conselhos recebidos por meio dessas revelações a fim de compartilhá-los com outras pessoas.”1

Este artigo considera a relação entre os escritos de Ellen White e as Escrituras. Os pioneiros adventistas tiveram que lidar com essa questão logo após ela receber suas primeiras visões. Tiago White aceitou as revelações desde o início. A respeito da relação delas com a Bíblia, ele disse: “A Bíblia é uma revelação perfeita e completa. É nossa única regra de fé e prática. Mas isso não é motivo para que Deus não mostre o cumprimento passado, presente e futuro de Sua Palavra, nestes últimos dias, por sonhos e visões, de acordo com o testemunho de Pedro. As verdadeiras visões são dadas para nos conduzir a Deus e à Sua Palavra escrita; mas aquelas que são dadas como uma nova regra de fé e prática, separadas da Bíblia, não podem ser de Deus e devem ser rejeitadas.”2

Quando o argumento “a Bíblia, e a Bíblia somente” foi apresentado em oposição ao ministério de Ellen White, Urias Smith declarou: “Quando afirmamos crer na Bíblia, e na Bíblia somente, nos comprometemos a aceitar, inequívoca e plenamente, tudo o que a Bíblia ensina.”Ele então citou Joel 2:28: “E acontecerá, depois disso, que derramarei o Meu Espírito sobre toda a humanidade.” Isso, disse Smith, começou a se cumprir no dia de Pentecostes. E seguindo o derramamento do Espírito, Joel predisse que “os filhos e as filhas” também profetizariam (v. 28), ao que Smith comentou: “O próximo anúncio após o fato de que o Espírito deveria ser dado é que o dom de profecia seria exercido. Uma vez que uma parte da profecia foi cumprida, e Deus concedeu Seu Espírito ao Seu povo, é certo que a outra parte será cumprida, e profecias, sonhos e visões serão manifestados no meio dele; pois eles estão juntos, unidos e inseparáveis.”4

Apocalipse 12:17

Em Apocalipse 12, João esboçou a história da igreja cristã desde o tempo de Jesus, o Filho no verso 5, até o tempo do fim, no versículo 17. O texto afirma que “o dragão ficou irado com a mulher e foi travar guerra com o restante da descendência dela, ou seja, os que guardam os mandamentos de Deus e têm o testemunho de Jesus”. De acordo com essa profecia, a igreja remanescente seria reconhecida por duas marcas específicas: (1) guardar os mandamentos de Deus; e (2) ter o testemunho de Jesus.

Quaisquer que sejam os mandamentos que queiramos incluir na primeira marca, certamente devemos incluir os Dez Mandamentos. Assim, o primeiro sinal de identificação da igreja remanescente é sua lealdade aos mandamentos de Deus – todos, incluindo o quarto, que se refere à observância do sábado. Em outras palavras, em Apocalipse 12:17, o Senhor diz: “No fim dos tempos terei uma igreja visível – a igreja remanescente – que será reconhecida pelo fato de guardar os mandamentos como lhes dei no princípio, incluindo o mandamento do sábado.” Na igreja apostólica isso não teria sido um sinal especial, porque todos guardavam o sábado. Contudo, atualmente, quando a maioria dos cristãos guarda o domingo, o sábado, de fato, tornou-se uma marca distintiva.

A segunda marca de identificação é “o testemunho de Jesus”. Mas o que significa essa frase? A expressão “testemunho de Jesus” (marturia Iesou) ocorre seis vezes no livro do Apocalipse (1:2, 9; 12:17; 19:10 [duas vezes]; 20:4). Duas explicações gramaticalmente possíveis sobre seu significado foram apresentadas. A primeira considera marturia Iesou como um genitivo objetivo e a interpreta como o testemunho da humanidade a respeito de Cristo. A segunda toma marturia Iesou como um genitivo subjetivo e entende o testemunho de Jesus como a autorrevelação Dele, Seu próprio testemunho.5 Um estudo da palavra marturia na literatura joanina, na qual ocorre 21 vezes, indica que “testemunho de
Jesus” é claramente um genitivo subjetivo – refere-se ao testemunho do próprio Jesus, não ao testemunho das pessoas sobre Ele.

Assim, quando afirmamos crer na Bíblia, e na Bíblia somente, devemos aceitar o que a Bíblia profetizou a respeito da igreja remanescente do tempo do fim. Urias Smith ilustrou isso com a seguinte parábola:

“Suponha que estejamos prestes a iniciar uma viagem. O dono do navio nos dá um livro de orientações, dizendo-nos que contém instruções suficientes para toda nossa jornada e, se as atendermos, chegaremos em segurança ao nosso destino. Partindo, abrimos o livro para conhecer seu conteúdo. Descobrimos que o autor apresenta princípios gerais para nos orientar e nos instrui, na medida do possível, abordando as várias contingências que podem surgir até o fim. Ele também nos diz que a última parte do trajeto será especialmente perigosa, pois as características da costa estão sempre mudando por causa da areia movediça e das tempestades. Contudo, ‘para essa parte da viagem’, diz ele, ‘eu providenciei um piloto que irá encontrá-los e dar a vocês as instruções que as circunstâncias e perigos possam exigir. Vocês devem prestar atenção nele’. Com essas indicações chegamos ao perigoso ponto especificado, e o piloto, conforme a promessa, aparece. Mas enquanto oferece seus serviços, alguns membros da tripulação se levantam contra ele. ‘Temos o livro de instruções original’, dizem, ‘e é o suficiente para nós. Nós nos apoiamos nisso, e somente nisso; não queremos nada de você!’ Afinal, quem deu atenção ao livro
de instruções original? Aqueles que rejeitaram o piloto, ou aqueles que o receberam, conforme instruía o livro? Julgue você.”6

O posicionamento de Ellen White

Ellen White estava bem ciente do princípio sola Scriptura. Seus escritos “contêm a frase ‘a Bíblia, e a Bíblia apenas’ quarenta e cinco vezes, e a ‘Bíblia, e a Bíblia somente’ quarenta e sete vezes”.7 Por exemplo, “há necessidade de um retorno ao grande princípio protestante – a Bíblia, e apenas a Bíblia, como regra de fé e prática”.8 Aconselhando os professores da Escola Sabatina, ela escreveu: “Não tornem secas e desanimadoras as lições da Escola Sabatina. Gravem nas mentes que a nossa regra de fé é a Bíblia, e a Bíblia somente, e não as palavras e os feitos humanos.”9

Embora Ellen White tivesse certeza de que Deus havia Se comunicado com ela em sonhos e visões, ela encorajou seus leitores a julgar seus escritos pelas Escrituras. Ela afirmou: “Se os Testemunhos não falarem de acordo com a Palavra de Deus, podem rejeitá-los. Cristo e Belial não se unem.”10 Claramente, isso indicava que ela “valorizava a autoridade da Bíblia acima de qualquer outra, incluindo seu ministério profético”.11

Alberto Timm distingue entre autoridade autoral e autoridade funcional. Da perspectiva da autoria divina, ele não vê distinção entre os escritos bíblicos e os escritos de Ellen White, porque ambos foram inspirados pelo Espírito Santo, “mas a autoridade funcional dos escritos de Ellen White não é a mesma das Escrituras”.12 A razão para isso é que os 66 livros do cânon bíblico foram reunidos sob a orientação do Espírito Santo. Com a adição do Apocalipse, esses livros tornaram-se o cânon fechado das Escrituras, ao qual nenhum outro livro inspirado poderia ser acrescentado. Se, no próximo mês, os arqueólogos encontrassem o livro do profeta Natã (1Cr 29:29), seu livro não seria acrescentado ao cânon. Seria considerado um livro inspirado fora da Bíblia. O cânon bíblico é o padrão pelo qual todos os outros escritos inspirados devem ser avaliados.

Essa distinção entre a autoridade funcional dos escritos de Ellen White e a autoridade das Escrituras “nos ajuda a evitar tanto (1) a dicotomia artificial entre profetas canônicos e não canônicos, quanto (2) a falsa generalização de conceder status canônico a todos os verdadeiros profetas, incluindo Ellen White”.13 Essa diferenciação também explicaria a relutância dela em colocar seus escritos em destaque: “No trabalho público, não tornem proeminente nem citem o que a Irmã White tem escrito como autoridade para apoiar suas posições. Fazer isto não aumentará a fé nos testemunhos. Apresentem suas provas, claras e simples, da Palavra de Deus.”14 Ela não queria que seus escritos tomassem o lugar da Bíblia, pois Deus “não deu alguma luz adicional para tomar o lugar de Sua Palavra”.15

O dom profético na vida e obra de Ellen White tem sido uma grande bênção na vida da Igreja Adventista. Os 70 anos de seu ministério mostraram que Deus a usou repetidamente para guiar a igreja em meio a muitos perigos e dificuldades.

As Escrituras são a mensagem de Deus para todos os tempos, a todas as pessoas e em todos os lugares. É a régua que deve medir todas as coisas. É a diretriz suprema para todo cristão. Os escritos de
Ellen White, por sua vez, são mensagens de Deus para Sua igreja remanescente. Seus escritos não são um padrão de doutrina novo ou adicional, mas uma ajuda para a igreja no tempo do fim. Portanto, eles têm um propósito específico: são “uma luz menor para guiar homens e mulheres
à luz maior”,16 que é a Bíblia. 

Nota: Publicado originalmente em Perspective Digest, volume 27, número 3, 1/7/2022.

Gerhard Pfandl, ex-diretor associado do Instituto de Pesquisa Bíblica da Igreja Adventista do Sétimo Dia

Referências

1 Ellen G. White, “About the Author”, Our Father Cares (Silver Spring, MD: Ellen G. White Estate, 1991), p. 5.

2 James White, “A Word to the Little Flock”, 30/5/1847, p. 13.

3 Uriah Smith, “Do We Discard the Bible by Endorsing the Visions?” The Advent Review and Sabbath Herald, 13/1/1863, p. 52, 53.

4 Smith, “Do We Discard the Bible by Endorsing the Visions?”

5 James Moffat, “The Revelation of St. John the Divine”, W. R. Nicoll (ed.), The Expositor’s Greek Testament (Grand Rapids, MI: Eerdmans, 1956), v. 5, p. 465.

6 Smith, “Do We Discard the Bible by Endorsing the Visions?”, p. 52.

7 Merlin Burt, Ellen G. White and Sola Scriptura (Louisville, KY: Office of the General Assembly PC, 2007), p. 6.

8 Ellen G. White, O Grande Conflito (Tatuí, SP: Casa Publicadora Brasileira, 2021), p. 173.

9 Ellen G. White, Conselhos Sobre a Escola Sabatina (Tatuí, SP: Casa Publicadora Brasileira, 2021), p. 52.

10 Ellen G. White, Testemunhos Para a Igreja (Tatuí, SP: Casa Publicadora Brasileira, 2021), v. 5, p. 584.

11 Frank Hasel, “O Uso das Escrituras por Ellen G. White”, em Quando Deus Fala, Alberto R. Timm e Dwain N. Esmond (eds.) (Tatuí, SP: Casa Publicadora Brasileira, 2017), p. 352.

12 Alberto R. Timm, “The Authority of Ellen White’s Writings”, em Understanding Ellen White, Merlin D. Burt (ed.) (Nampa, ID: Pacific Press, 2015), p. 56, 57.

13 Timm, Understanding Ellen White, p. 57.

14 Ellen G. White, Mensagens Escolhidas (Tatuí, SP: Casa Publicadora Brasileira, 2007), v. 3, p. 29.

15 White, Mensagens Escolhidas, v. 3, p. 29.

16 White, Mensagens Escolhidas, v. 3, p. 30.

As Escrituras são a mensagem de Deus para todos os tempos, a todas as pessoas e em todos os lugares. Os escritos de Ellen White, por sua vez, são mensagens de Deus para Sua igreja remanescente.