Lições da triste história de dois sacerdotes e seu descaso pelas coisas sagradas 

Nadabe e Abiú, filhos de Arão, tomaram cada um o seu in-censário, e puseram neles fogo, e sobre este, incenso, e trouxeram fogo estranho perante a face do Senhor, o que lhes não ordenara. Então, saiu fogo de diante do Senhor e os consumiu; e morreram perante o Senhor” (Lv 10:1, 2). 

Esse texto descreve a experiência de dois jovens sacerdotes de Israel abatidos mortalmente por Deus diante da multidão. Nadabe e Abiú foram mortos pelo fogo, logo depois de serem ungidos sacerdotes. Por quê? Estudiosos têm especulado durante séculos a respeito das razões para essas mortes. Esta é a essência da teodicéia – as questões recorrentes sobre justiça e morte. Teodicéia é um termo cunhado, no século 18, por Gottfried Leibniz, ao discorrer sobre um Deus poderoso que permitiu a existência do mal. 

A história de Nadabe e Abiú era conhecida pelos judeus que ouviram o profeta Malaquias no século 5 a.C.1 Eles se identificaram com o relato por que também tinham voltado recentemente de uma terra estranha, num “êxodo” menos glorioso. Haviam inaugurado um santuário, mas sem qualquer dos fogos de artifício com que inauguraram o primeiro, e tinham ministros irreverentes que não foram mortalmente feridos como Nadabe e Abiú. 

Assim, no início do século 5 a.C., os leitores dessa história tinham perguntas sobre a justiça de Jeová (Ml 2:17). Em resposta, Malaquias apresenta um “diálogo” entre Jeová e os judeus. Imagino que o profeta tinha o livro de Levítico em mente quando proclamou seus oráculos. Malaquias trata da santidade no contexto de teodicéia e tenta conquistar seus ouvintes a fim de que estivessem preparados para o Yom Kippur escatológico, o Dia da Expiação.

“Líderes que não diferenciam entre o sagrado e o comum sofrerão consequências fatais”

Nadabe e Abiú são os principais caracteres das quatro passagens narrativas de Levítico. Esses homens deviam estar familiarizados com a santidade. Eles foram ao Sinai com os 70 anciãos (Êx 24:1), tiveram o privilégio de ver as maravilhas do Êxodo (Êx 13; 14) e até estiveram na presença de Jeová (Êx 24:9-11). Em contraste, os judeus que tinham retornado à terra não haviam testemunhado tais maravilhas. Alguns, na audiência de Malaquias, tinham experimentado o “segundo êxodo”, mas esse não foi nada diante do primeiro, e, então, eles estavam cultuando em um templo menos glorioso, que não teve nenhuma demonstração sobrenatural na época da inauguração. Talvez, por isso, eles não viam motivos para ser cuidadosos no culto a Jeová, e Malaquias clamou contra eles por causa de suas ordinárias práticas religiosas (Ml 1:6-10).

O porquê das mortes

Aos olhos de muitos contemporâneos de Malaquias, a morte de Nadabe e Abiú foi provavelmente um assassinato. No tempo do profeta, os sacerdotes estavam fazendo coisas piores e, como não foram destruídos, o povo estava sendo irreverente em seu culto a Deus.

Assim, por que o “assassinato” desses dois sacerdotes? Na experiência dos judeus, Jeová não parecia tão preocupado com os detalhes do culto. Eles até haviam sugerido que “qualquer que faz o mal passa por bom aos olhos do Senhor, e desses é que Ele Se agrada” (Ml 2:17; cf Sl 73; Hb 1:2). Essa mesma ideia estava presente nos lábios dos sacerdotes. Entretanto, Malaquias fez ecoar um solene chamado e advertência sobre a importância da santidade.

Nadabe e Abiú morreram devido ao relacionamento impróprio com o sagrado. O autor de Levítico estabelece que eles ofereceram fogo estranho diante do Senhor (Lv 10). O livro de Números também apresenta a mesma razão para a tragédia (Nm 3:4; 26:61). Na verdade, a Bíblia descreve Nadabe e Abiú agindo independentemente de ter recebido qualquer ordem. Por sua própria iniciativa, eles avançaram na realização do culto, sem uma ordem clara de Jeová. Existem mandamentos relacionados ao culto no templo, dados a Moisés (Nm 8:2) e Arão (Nm 9:2), que contrastam com o desafio de Nadabe e Abiú. Os irmãos mais velhos receberam autorização para agir, enquanto os dois irmãos mais novos agiram independentemente.

Que dizer dos incensários que eles utilizaram para conduzir seu “fogo”? Arqueólogos têm encontrado tachos de vários estilos e modelos que são associados a atividades cúlticas.2 Em Levítico 10:1, o termo originalmente significa “prato de vela” ou “bandeja”, e pode se referir a um tacho utilitário ou a um mais sofisticado vaso ritual. O Pentateuco menciona itens usados no tabernáculo israelita (Êx 25:38; 37:23; Nm 4:9) que eram destinados principalmente a transportar carvão ou remover cinzas, à parte de atividade ritual.

Alguns desses vasilhames encontrados no antigo Oriente Próximo estão em forma de mãos; outros têm forma de animais, enquanto alguns são pás lisas. Representações iconográficas em selos, quadros e entalhes proveem mais variedades às possibilidades de modelos. Porém, nem toda bandeja decorada tem que ser ligada a atividades rituais; elas podem ser apenas exemplos da criatividade humana. Além disso, decorações em bandejas necessariamente não eram problema. A extrema proibição de imagens por certos grupos que hoje seguem o judaísmo não devia ser inserida na história bíblica.

O santuário israelita não pode ser classificado como desprovido de toda imagem, pois naquele tabernáculo existiam várias representações da natureza. Apesar disso, uma ofensiva bandeja de fogo que estivesse ligada a outras divindades ou a um culto rival poderia ser razão suficiente para punição, pois tal atitude era considerada blasfêmia. Mesmo um simples incensário que não tivesse sido consagrado para uso ritual considerado santo poderia ser razão para rejeição do fogo ou incenso nele contidos. Por outro lado, em nenhum relato sobre esse evento na Bíblia hebraica existe qualquer ênfase sobre bandejas de fogo; o problema era “fogo desautorizado”, não “incensário desautorizado”.

O problema pode ter sido a origem do fogo. A palavra traduzida como “fogo” não é específica. Uma das formas como o fogo era conduzido de um lugar para outro, na antiguidade, era em forma de brasas. O problema com o fogo usado por Nadabe e Abiú podia ter sido o fato de que eles não levaram as brasas do fogo que Jeová acendia no altar (Lv 16:12). Aqui, a palavra “fogo” é derivada de um termo traduzido como “estranho”, mas tinha o significado mais preciso de “incabível”, ou “impróprio”. O texto aponta a fonte do fogo como sendo o principal problema; eles não usaram fogo santo. Não fizeram diferença entre o sagrado e o profano.

Paralelos textuais

Quaisquer que tenham sido as razões específicas das duas mortes, quando proclamou seus oráculos, Malaquias tinha Levítico em sua mente. Então, ele convidou sua audiência, especialmente o clero, a se lembrar do Pentateuco (Ml 4:4). A história de Nadabe e Abiú, central no livro de Levítico, ecoa em Malaquias, que focaliza a infidelidade dos sacerdotes de seu tempo.

Malaquias descreve os sacerdotes oferecendo animais cegos, coxos e doentes para sacrifício (Ml 1:8; cf Lv 22:19, 20). Os sacerdotes, que supostamente deviam inspecionar os animais, eram culpados por justamente permitir que animais defeituosos fossem sacrificados. J. Berquist nota que “Malaquias 1:6- 2:9 expressa graves preocupações a respeito da condição prevalecente dos sacrifícios e ofertas dos sacerdotes, e os chamou à renovação do compromisso com sua tarefa vital”.3 O profeta advertiu sacerdotes e povo de que eles sofreriam destino igual ao de Nadabe e Abiú.

Alguns fios dos oráculos de Malaquias os ligam a Levítico. Estruturada ao redor do “diálogo” entre Jeová e os judeus, a discussão termina com a escritura de um livro de memórias (Ml 3:16), que é um tema recorrente no Pentateuco (Êx 12:14; 13:9; 17:14; 28:12, 29; 30:16; 39:7; Lv 23:24; Nm 5:15,18; 10:10; 17:5; 31:54). Além disso, existe a expectativa do grande dia (Ml 4:5) que virá e que “funcionará como advertência e conforto, dependendo do que alguém aprendeu da história”.4

O tema do fogo, tão intimamente associado às aparições de Jeová (Êx 3:2; Lv 10:6), tem continuidade em Malaquias. O fogo pode revelar a presença ou o julgamento de Jeová. Como em Levítico 9:24, Seu fogo purifica. Por outro lado, Malaquias se referiu à imagem do fogo quando advertiu sobre o julgamento iminente (Ml 4:1). Nesse contexto, os ímpios são reduzidos a cinzas e acabam sob a planta dos pés (Ml 4:3), da mesma forma como Nadabe e Abiú foram consumidos (Lv 10:1).

No livro de Levítico, há instruções detalhadas sobre a disposição das cinzas (Lv 6:11), incluindo a disposição dos restos mortais queimados de Nadabe e Abiú (Lv 10:5, cf 4:12). Essa descrição está intimamente relacionada à disposição de esterco ao lado do campo mencionado na acusação que Malaquias fez aos sacerdotes (Ml 2:3).

Os oráculos de Malaquias revelam preocupação com o culto apropriado a Deus, no Judá pós-exílio. Existem alusões a diferentes aspectos do culto: altar (Ml 1:7,10; 2:13), o fogo que era aceso (Ml 1:10) e o incenso (Ml 1:11). Tudo isso ecoa linguisticamen- te a experiência de Nadabe e Abiú. Além disso, Malaquias enfatizou que Jeová devia ser honrado (Ml 1:6; cf Lv 10:3). Aos olhos do profeta, os sacerdotes O desonraram aceitando sacrifícios que não estavam de acordo com as tradições sobre santidade (Lv 22:17025).5 Aqui, a honra é enfatizada no contexto do culto, e os sacerdotes não cumpriram esse papel (Ml 1:6). Honra e temor são inseparáveis (Lv 10:3).

Com a história de Nadabe e Abiú, o autor de Levítico inspira temor ao Senhor. Malaquias também menciona algumas vezes que Jeová deve ser temido (Ml 1:14; 2:5; 3:5, 16). Entretanto, a base do relacionamento entre Deus e Seu povo é o amor declarado já no início do livro: “Eu vos tenho amado, diz o Senhor” (Ml 1:2), e igualmente reafirmado no fim do livro: “Eles serão para Mim particular tesouro, naquele dia que prepararei, diz o Senhor dos Exércitos; poupá-los-ei como um homem poupa a seu filho que o serve” (Ml 3:17). As questões da teodicéia serão respondidas quando “então, vereis outra vez a diferença entre o justo e o perverso, entre o que serve a Deus e o que não O serve” (v 18).

Sacerdócio sob fogo

Os judeus deviam reconhecer que eles estavam em um processo de purificação com o sacerdócio sob fogo. Precisavam se tornar santos para servir a um Deus santo. Os sacerdotes, descendentes de Levi, tinham um concerto a cumprir. Malaquias apresenta os mais ternos convites de Deus a Seu povo.

O Senhor ainda espera receber o mais apropriado louvor, que não é sinônimo de legalismo. Wellhausen se refere à adoração depois do exílio como institucionalizada e muito artificial,6 com a presunção de que a religião do segundo tabernáculo era separada da vida diária. Alguns tendem a diferenciar o Deus do Antigo Testamento de Jesus, no Novo Testamento. Entretanto, a história de Ananias e Safira, em Atos 5, e as parábolas de Cristo questionam essa ideia. Deus espera coração sincero da parte do Seu povo, não apenas preocupação com rituais mecânicos e atividades rituais sem vida.

“Então, saiu fogo de diante do Senhor e os consumiu; e morreram perante o Senhor” (Lv 10:2). Sim, o fogo veio de Deus. Em Malaquias, encontramos a expectativa de que mais fogo virá sobre aqueles que não têm experimentado santidade nem têm sido purgados pela remoção de suas iniquidades.

A mensagem é clara: sacerdotes que falham em diferenciar o comum do sagrado sofrerão terríveis consequências. O castigo de Nadabe e Abiú não foi assassinato, mas morte merecida; e todos os que seguirem suas pegadas serão igualmente condenados. Sua atitude em realizar as coisas independentemente da ordem do Senhor e o fato de que apresentaram outro fogo, não santificado, revelaram arrogância. Lamentavelmente, muitos outros experimentarão a mesma retribuição por seu comportamento. Todavia, ainda existe oportunidade para tomar um rumo diferente. O convite divino está aberto a todos: “Tornai-vos para Mim, e Eu Me tornarei para vós outros” (Ml 3:7). 

Referências:

  • 1 E. Velazquez, An Archaeological Reading of Malachi (Tese de PhD, Universidade Andrews, 2008), cf. J. L. Berquist, Judaism in Persia’s Shadow: A Social and Historical Approach (Mineápolis: Fortress, 1995), 138.
  • 2 L. F. DeVries, Biblical Archaeology Review 13, 1987, p. 4.
  • 3 J. L. Berquist, Op. Cit., p. 95.
  • 4 P. L. Redditt, “Haggai-Zechariah-Malachi”, Interpretation 61, n°2, abril de 2007, p. 136.
  • 5 B. Glazier McDonald, Malachi, the Divine Messenger (Atlanta: Scholars, 1987), p. 68-80; J. M. O’Brien, Priest and Levite in Malachi (Atlanta: Scholars, 1990), p. 104-106.