I. Ideias Acerca do Juízo

No Antigo Testamento a Santidade de Deus torna-se explícita para nós por meio de Sua justiça (Gên. 18:25; Sal. 94:2) e a Soberania de Deus é manifestada na adminidtração da justiça em que juízo retribuidor e honradez na administração do juízo se evidenciam como próprios de Sua natureza, de Sua majestade e de Sua santidade (Isa. 5:16; Deut. 32:4).1 No Antigo Testamento a idéia de juízo, que se delineia a partir dos verbos mischpat e din, tem um sentido jurídico diferente do que lhe damos hoje, pois o ato de julgar está unido à noção de aliança. Julgar é proceder para que a aliança perdure, e juízo, neste caso, significa para Israel salvação, vitória e libertação alcançadas pela intervenção do “Supremo Juiz”, O qual julga a Seu povo no duplo sentido de vindicá-lo perante seus inimigos e de castigá-lo quando for necessário. (Deut. 32:36; Isa. 30:18; Jer. 30:11; Sal. 135:14; 7:7; 9:4; 110:6.)2

Há quatro aspectos gerais do Juízo Divino que chamam nossa atenção e que descreveremos sucintamente:

  • 1. A justiça que denominaremos administrativa é realizada por Deus, usando como intermediários a juizes humanos. Esta justiça é princípalmente de natureza investigativa. tenças. Neste caso o juízo é principalmente de natureza executiva.
  • O juízo sobre as nações que o “Supremo Juiz” efetua utilizando a líderes pagãos ou nações pagãs para executar Suas sentenças. Neste caso o juizo é principalmente de natureza executiva.
  • 3. A revisão no juízo da conduta exterior e da atitude interior dos filhos de Deus, que Ele mesmo realiza.
  • 4. As três instâncias ou momentos que ocorrem sucessiva ou simultaneamente em todo julgamento divino.
II. A Justiça Administrativa

Há duas palavras hebraicas que atualizam as idéias de juízo (mishpat) e justiça (din). (O verbo shapat expressa a idéia de “governar”, “julgar”.) Estudos semânticos recentes parecem confirmar a idéia de que din, na maioria dos casos de sua ocorrência, indica o ato de julgar do Juiz, ao passo que mishpat é a decisão ou o veredicto emitido pelo Juiz.3 As duas palavras hebraicas mencionadas são igualmente exaradas a respeito de Deus como Juiz de Israel e de todo o mundo. (Sal. 36:6; Gên. 18:25; Sal. 94:1-15; I Crôn. 16:33.)

Pois bem, é de Deus, o Supremo Juiz, que os juizes humanos derivam seus poderes para julgar. (II Crôn. 19:4-6; Deut. 1:17.) A ação de julgar não foi prerrogativa exclusiva de determinada classe de homens e mulheres. Sacerdotes, profetas e funcionários se assentaram para julgar o povo. Os primeiros governadores de Israel eram conhecidos como “juizes” e o fizeram como instrumentos de Deus. (I Sam. 28:6; Juí. 3:9 e 10; 4:4 e 5.)

Cumpre observar que os juizes humanos que administram essa justiça não são títeres executando mecanicamente as decisões divinas. Eles fazem uso de sua própria inteligência em atos de reflexão e interpretação, e apelam para a investigação e para o julgamento, a fim de chegar a sentenças que depois são executadas em forma de sentenças judiciais. (Êxo. 18:13-16; Lev. 24:10-16; Núm. 12:1-15; Jos. 7:1-26.)4

  • III. Juízo Executado Sobre as Nações

Os exemplos bíblicos são suficientes para sustentar o princípio de que Deus “remove reis e estabelece reis” (Dan. 2:21) e fixou para as nações “os tempos previamente estabelecidos e os limites da sua habitação” e “estabeleceu um dia em que há de julgar o mundo com justiça” (Atos 17:26 e 31). Por meio da Assíria puniu a Jerusalém e Samaria (Isa. 10:5); por meio de Nabucodonosor castigou a Judá (Jer. 25:4-12); e por meio de Ciro, o qual é “pastor” e “ungido” de Deus, castiga a Babilônia (Isa. 44:28; 45:1). Estes poderes pagãos provavelmente desconheciam que foram os agentes divinos para executar o juízo inapelável da justiça divina. A execução do juízo sobre as nações nem sempre é realizado por intermédio de meios políticos; às vezes Deus destrói as nações por meios sobrenaturais.

IV. Revisão em Juízo da Conduta dos Filhos de Deus

Temos provas indubitáveis da relação soberana que Deus manteve para com o homem e de Suas intenções de visitar em juízo toda rebelião do ser humano. A expulsão de Adão do Éden, o extermínio quase total da raça humana no Dilúvio e a destruição das cidades de Sodoma e Gomorra demonstram a existência de uma Lei divina. Em todos esses casos, como em outros posteriores, a graça reinou por meio da justiça, e a justiça se tornou explícita na forma de juízo. É com base na contínua revelação de Deus que em Seu juízo os pecadores são indesculpáveis (Rom. 1:18-20).

A Escritura insiste em que a atitude interior do homem crente e suas ações visíveis serão revisadas no juízo por Deus (Ecles. 12:13 e 14). A asseveração de Paulo: “Quem me julga é o Senhor” (I Cor. 4:3-5) confirma a declaração de que “importa que todos nós compareçamos perante o tribunal de Cristo” (II Cor. 5:10), no dia em que o Senhor “julgar os segredos dos homens” (Rom. 2:16) e “as obras de cada um” (I S. Ped. 1:17).

As Escrituras, como acabamos de ver, ratificam a esperança do juízo introduzindo nele um fator moral, mas a base essencial de todo juízo divino é o zelo do Senhor que olha por Sua glória e pela santificação é vindicação de Seu Nome (Isa. 48:9-11 e 18). A responsabilidade individual se baseia no caráter moral do castigo e da retribuição. (Amós 5:14 e 15; Isa. 5:8-25; S. Mat. 12:36 e 37.)

Um exemplo que não deve ser olvidado e no qual é patenteada a atitude divina em revisar a conduta, é o de Davi, que, com frases cheias de patético colorido, descreve no Salmo 139 o que ele conseguiu captar da revisão de sua vida no juízo efetuada pelo “Juiz de toda a Terra”.

V. As Três Instâncias no Juízo

Demorada observação nos permite identificar três instâncias ou momentos judiciais em toda revisão em juízo, quando Deus julga a conduta do crente. Por motivos de conveniência usaremos a terminologia sugerida por Berkhof ao descrever essas instâncias. Chamaremos a primeira de juízo investigativo ou cognitio causae, visto ser ali que Deus toma conhecimento da história do homem, incluindo seus pensamentos e as intenções mais íntimas do coração. Não é que Deus mesmo necessite da investigação para estar informado. Ele é onisciente; no entanto, em Seu trato com os seres humanos, tem usado e usa uma metodologia que parece ser mais adequada e se torna mais clara para o homem.

O caráter do juízo investigativo que atribuímos ao tribunal divino de Daniel 7:7-14, convocado para tomar conhecimento da causa que’ envolve o povo de Deus, se justifica. Os muitos exemplos do Antigo Testamento em que Deus mesmo faz um “juí zo investigativo” constituem um admirável antecedente para justificar a posição que estamos descrevendo. O primeiro “juízo investigativo” mencionado na Bíblia é o de Adão e Eva, e embora, como já mencionamos, Deus seja onisciente, desceu para investigar a conduta do primeiro casal (Gên. 3:8-19)

Notai a sucessão de perguntas feitas por Deus, tendentes a investigar a conduta do primeiro par: “Onde estás?” “Quem te fez saber que estavas nu?” “Que é isso que fizeste?” (Gên. 3:9-13). Esta “investigação” divina da conduta de Adão se torna paradoxal quando a esquadrinhamos a partir de uma lógica humana que afirma a onisciência, mas não é paradoxal se procurarmos, justificá-la a partir da expiação. Depois da investigação vem o julgamento em que Deus mesmo proclama a sentença e então a executa (Gên. 3:13-19). Outro juízo investigativo com aspectos semelhantes ao anterior ocorreu por motivo da criminosa conduta de Caim (Gên. 4:8-15).

5Tanto no Dilúvio como no caso da torre de Babel, Deus “desceu para ver” (Gên. 6:9-22; 11:5-9). O caso de Sodoma e Gomorra é concludente. Observe-se que Jeová disse; ‘ Descerei, e verei se de fato o que têm praticado corresponde a esse clamor que é vindo até Mim; e, se assim não é, sabê-lo-ei.” Gên. 18:21. Depois, no diálogo com Abraão, este diz ao Senhor: “Destruirás o justo com o ímpio?… Não fará justiça o Juiz de toda a Terra?” Gên. 18:23 e 25.

A existência de “livros” em relação com o juízo testifica em favor de uma investigação, e embora a expressão “juízo investigativo” não apareça nas Escrituras, o próprio conceito permanece firme. É digno de nota que as únicas sete referências a livros relacionadas com o juízo, que aparecem no Antigo Testamento, se aplicam ao povo de Deus. (Êxo. 32:32; Sal. 56:8; 69:28; 139:16; Dan. 7:10; 12:1; Mal. 3:16.)

A sucessão temporal que ocorre entre o cognitio causae ou “juízo investigativo” e a sententiae executio ou “execução do juízo”, em alguns casos específicos de revisão em juízo da conduta, se dramatiza na liturgia do Santuário com o Dia da Expiação ou Yom Kippur. (Lev. 23:27-32; 16:30-34; Heb. 10:25-30; Dan. 8:14.)

Entre as duas últimas instâncias mencionadas — juízo investigativo e juízo executivo — há uma instância intermediária que chamaremos de “juízo judicativo” ou sententiae promulgatio. Berkhof não se equivoca quando afirma que haverá uma “promulgação da sentença”, e esta promulgação tem caráter universal, de modo que a justiça divina, o caráter de nosso Deus, fique vindicado em sua totalidade, e então a justiça e a graça de Deus brilharão em todo o seu esplendor por toda a eternidade.

A restauração final que Deus realiza em Cristo é o resultado do amor eterno e infinito do Criador, cuja expressão culminante é a Cruz. A morte de Cristo foi o argumento irrefutável do amor divino em favor do homem, porque a penalidade da Lei divina caiu sobre o próprio Deus, e assim ficou demonstrado perante o Universo que Deus é justo e que justifica a todos os que crêem em Jesus.5 Portanto, a promulgação cósmica da sentença judicial em que se condena o pecado, se justifica o pecador e se vindica a Deus, ocorre inauguralmente na Cruz do Calvário, ao passo que se consumará no fim dos tempos, como o antecipa a Revelação, começando em 1844 com o juízo investigativo, durante o milênio com o judicativo e culminando com o executivo no fim do milênio. (S. Mat. 19:28; I Cor. 6:2 e 3; Colos. 2:13-15: Dan. 7:7-14; Apoc. 20:11-15.)6

Referências

  • 1.  Ver Artur Wainwright, La Trinidad em el Nuevo Testamento, Secretariado Trinitário, Salamanca, pág. 129 e seguintes.
  • 2. Ver Juan Jacques von Allmen, Vocabulário Bíblico, Edición Marova, Madri, 1968, Art. Juicio.
  • 3. Ver G. J. Botterweck e Helmer Ringgren, Theological Dictionary of the Old Testament, Wm. B. Eerdmans Publ. Co., Grand Rapids, Mi., 1978, vol. 3, págs. 187-194.
  • 4. Ver J. M. Furness, Vital Words of the Bible, Wm. B. Eerdmans Publ. Co., Grand Rapids, Mi., 1966. págs. 79 e 80.
  • 5. Ver Salim Japas, Cristo en el Santuário, PPPA, Mountain View, Califórnia, 1980, págs. 93-114.
  • 6. Ver L. Berkhof, Teologia Sistemática, Wm. B. Eerdmans Publ. Co., Grand Rapids, Mi. 1974, pág. 880.