Alguns estudiosos têm visto uma relação muito importante entre Adão e Cristo, propondo que “Adão é um tipo de Cristo, e Cristo é o antítipo de Adão”.1 Na carta de Paulo aos cristãos romanos (5:12-21), o apóstolo faz um contraste entre Adão e Cristo. Enquanto a condenação é ligada ao primeiro, a justificação do pecador depende do segundo personagem (vs. 12, 17 e 19).

Para Paulo, Adão “é a figura daquele que havia de vir” (vs. 14), a saber, Cristo. A palavra grega traduzida como figura, nesse texto, é tipos, que contém a idéia de “imagem, ‘impressão’, um ‘modelo’ que reproduz o aspecto do instrumento usado para fazer tal impressão. Mais tarde, porém, essa palavra veio a ser usada para indicar meramente cópia”.2

Entretanto, o sentido da palavra tipos aqui não é de apenas comparação. Em sua primeira carta aos cristãos de Corinto, o mesmo apóstolo, referindo-se a Adão e Cristo, declarou: “Pois assim está escrito: O primeiro homem, Adão, foi feito alma Vivente. O último Adão, porém, é espírito vivificante” (I Cor. 15:45).

Em ambos os casos, Cristo corres-ponde a Adão por contraste. Enquanto por Adão a morte veio para todos os indivíduos, Cristo foi o autor da vida para todos os que crêem. Adão e Cris-to tornaram-se representantes antitéticos da humanidade. Eles realizaram dois atos: Adão cometeu pecado (Rom. 5:12, 17-19). Cristo fez um ato de justiça na cruz (v. 18).

Dois “Adões”

Em decorrência desses atos, surgiram dois resultados: Através de Adão, vieram condenação, culpa e morte (vs. 15, 18 e 19). Cristo trouxe justificação, vida e reinado (vs. 17-19). Paulo apresenta três tipos de contraste entre a obra de Adão e a de Cristo. Primeiro, há um contraste de qualidade. A obra de um é toda de pecado; e a do outro, de munificência e graça. Há também o contraste de quantidade no modo de atuar. No caso de Adão, a sentença pronunciada deveu-se à ação de um só homem e teve como resultado uma sentença de conde-nação. No caso de Cristo, Sua obra teve origem em muitas faltas e teve como resultado uma declaração de perdão e justiça. O terceiro contraste é de épocas. Como Adão, por seu pecado, determinou o caráter da presente época, Cristo tem determinado o caráter da época porvir. Essa mesma ênfase escatológica é indicada na descrição de Cristo como “Aquele que havia de vir” (Rom. 5:14).

“Em sua relação com o primeiro Adão o homem nada recebe dele senão culpa e sentença de morte. Mas Cristo dá um passo à frente e passa pelo terreno em que Adão caiu, suportando cada prova em favor do homem. Ele redime a infeliz queda e o fracasso de Adão, saindo ileso da prova. Esse fato coloca o homem em posição de vantagem diante de Deus, coloca-o onde, mediante a aceitação de Cristo como seu Salvador, ele se toma participante da natureza divina. Desse modo, o homem fica ligado com Deus e com Cristo.”3

“O segundo Adão [Cristo] era um Agente moral livre, responsável por Sua conduta. Cercado por influências intensamente sutis e enganadoras, Sua situação era muito menos favorável para viver uma vida santa sem pecado, do que a do primeiro Adão. Todavia, em meio a pecadores, Ele resistiu a toda tentação ao pecado e manteve Sua inocência. Ele permaneceu sem pecado.”4

“Pelo que, como por um homem entrou o pecado no mundo, e pelo pecado a morte, assim também a morte passou a todos os homens porque todos pecaram.” (v. 12). Tem-se debatido muito essa passagem bíblica. A diferença de opinião entre os comentaristas é explicada, principalmente, em virtude de procurarem usar essa passagem para um fim diferente daquele pretendido por Paulo. A principal meta do apóstolo parece que foi destacar os abarcantes resultados da obra de Cristo, comparando e contrastando as conseqüências de seu ato de justificação com o efeito do pecado de Adão”.5

Três principais posições a respeito da afirmação paulina de que todos os homens pecaram merecem nossa atenção.

Posição pelagiana

Primeiramente, existe a posição pelagiana. Pelágio, teólogo das Ilhas Britânicas, no início do século 5, cria que Romanos 5:12 mostra que todo ser humano nasce sem pecado, mas torna-sem pecador porque imita a queda de Adão. Segundo ele, “crianças recém-nascidas são sem pecado”.6 Parafraseando a idéia do monge britânico, Herbert Kiessler, Pelágio escreveu que “ninguém nasce espiritualmente decaído ou culpado. A pessoa só se torna culpada quando resolve pecar. Todos os seres humanos têm o poder de decidir não pecar, e de pôr essa decisão em prática. A graça facilita a escolha do que é correto, mas as pessoas têm o poder, em si e por si mesmas, de fazer o que Deus ordena”.7 Assim, ainda segundo Pelágio, “embora Adão tenha encabeçado a rebelião humana, seu pecado em nada afetou nossa capacidade de decidir segui-lo ou não em nossa rebelião”.8

Os escritores bíblicos não participam dessa visão a respeito da natureza humana. O pecado é apresentado não apenas como ato, mas como um estado de cada indivíduo desde o seu nascimento. “Eu nasci na iniqüidade, e em pecado me concebeu minha mãe”, diz Davi (Sal. 51:5). Tal situação não melhora por si mesma, pois “enganoso é o coração, mais do que todas as coisas, e desesperadamente corrupto; quem o conhecerá?” (Jer. 17:9).

Conceito agostiniano

Por outro lado, Agostinho de Hipona (354-430) apresentou outro extremo de interpretação, afirmando que Adão, sendo o cabeça da raça humana, ao pecar, deixou todos os homens culpados de seu próprio pecado. Ele via a expressão “porque todos pecaram” como sendo “porque todos pecaram em Adão” e, portanto, são culpados do pecado de Adão. Sua teologia a esse respeito é bem sintetizada por Clifton Allen, segundo quem Agostinho “desenvolveu a sua doutrina do pecado original entendida co-mo culpa herdada, e o resultado foi um quadro lúgubre de infantes não batizados no limbo”.9

Nesse assunto, a igreja Católica Romana segue a doutrina de Agostinho, mas não sem discordâncias internas: “A idéia de que os descendentes de Adão são automaticamente pecadores por causa do pecado de seu antepassado, e que já são pecadores quando vêm ao mundo é estranha às Sagradas Escrituras”.10

Para o erudito Kari Kertelge, “a idéia de um pecado herdado é antes excluída que sugerida por esta frase (Rom. 5:12), pois, sob o ponto de vista gramatical, ela também não pode ser referida diretamente a Adão. No que concerne a todo o versículo doze, seria preferível falar de uma ‘morte herdada’ a falar de um ‘pecado herdado’”.11

O conceito agostiniano influenciou Lutero e Calvino, no século 16. Este último desenvolveu o conceito da culpa original, ensinando que a única solução seria a graça irresistível de Cristo; uma predeterminação para a salvação.

A doutrina da culpa herdada por causa do pecado de Adão é também estranha às Escrituras (ver Deut. 24:16; Jó 19:4; Prov. 9:12; Heb. 31:30; Eze. 18:20). Esses e outros textos afirmam que a responsabilidade é pessoal, “assim, pois, cada um de nós dará contas de si mesmo a Deus” (Rom. 14:12).

O pensamento de Paulo

Evitando o extremo pelagiano que afirma em nada ter sido afetada a natureza humana pela queda de Adão; igualmente evitando o extremo agostiniano que sobrecarregou a humanidade com as culpas de Adão, não podemos ignorar as palavras do apóstolo Paulo: “Porque, como, pela desobediência de um só homem, muitos se tomaram pecadores, assim também, por meio da obediência de um só, muitos se tornaram justos” (Rom. 5:19).

Segundo Champlin, “o que é indiscutível é que o apóstolo Paulo pelo menos ensinava aqui que a tendência para o pecado é uma característica herdada; e sem se importar se a morte é considerada como conseqüência da culpa herdada, ou como pena imposta contra nossa própria transgressão individual, o fato é que isso se deve a Adão, pois nele todos morrem, conforme também lemos em I Cor. 15:22”.12

Mais do que tratar da origem do pecado, o apóstolo aponta as suas conseqüências universais. Dessa forma se estabelece um paralelo muito forte, um só homem – todos os homens. O verso 19 apresenta o fato de que pelo pecado de um muitos foram feitos pecadores, pela razão dada no verso 12.

O contraste está em que, pela obediência de Cristo, muitos serão feitos justos. A primeira classificação é genérica, a segunda é individual. Todos são natural e vitalmente um com Adão; mas apenas o crente é moral e espiritualmente um com Cristo.

Solidariedade

Uma colaboração é dada ao assunto sob o tema da solidariedade humana. Há duas espécies de solidariedade no contexto. A primeira, é no primeiro Adão, em quem “todos morrem” (I Cor. 15:22). Não somos culpados do pecado de Adão, mas todos somos envolvidos nas conseqüências desse peca-do. Isso quer dizer, não culpa original, mas conseqüência do pecado.

E necessário, porém, enfatizar a distinção entre condenação e culpa. Kiessler vai ao ponto, dizendo: “Há importante distinção entre condenação e culpa. A criança que nasceu com Aids está condenada a morrer da doença que herdou dos pais, mas não é culpada de algum pecado cometido por eles. Nós nascemos com a decaída natureza de Adão, que não pode viver na presença de Deus. Nesse sentido, nós nascemos sob condenação. Mas não nascemos culpados do pecado de Adão. Só nos tornamos culpados quando resolvemos pecar.”13

De acordo com esse pensamento, Ellen White já afirmara ser “inevitável que os filhos sofram as conseqüências das más ações dos pais, mas não são castigados pela culpa deles, a não ser que participem de seus pecados”14

Percebe-se claramente que há um estreito vínculo entre Adão e o resto da humanidade. Segundo Bruce, “para o apóstolo Paulo, Adão era sem dúvida um indivíduo histórico, o primeiro homem. Mas era mais; era o que o seu nome significa em hebraico: humanidade. A humanidade inteira é vista como tendo originalmente pecado em Adão”.15

A idéia de Adão ser o representante da humanidade é bíblica; porém, há o perigo de diluir sua culpa e dividi-la com cada indivíduo. A tentativa de dizer que as conseqüências do pecado de Adão sobre seus descendentes “foi efeito de nossa união corporativa com o primeiro Adão, cabeça física e moral da raça humana”,16 tem seu aspecto correto, mas deve ser tratada com cuidado, pois facilmente desemboca no conceito da transferência da culpa do pecado original. O conceito de culpa corporativa só é válido quando o corpo está completo, e não apenas quando há a cabeça, pois embora Adão fosse a humanidade em potencial, ele não era a humanidade. O aspecto positivo do conceito de solidariedade é o mais atraente.

A obra de Cristo

Jesus Cristo inaugurou a nova solidariedade humana, “porque, assim co-mo, em Adão, todos morrem, assim também todos serão vivificados em Cristo” (I Cor. 15:22). “Adão não poderia transmitir à sua posteridade aquilo que não possuía; e não poderia haver esperança alguma para a raça decaída, se, pelo sacrifício de Seu Filho, Deus não houvesse trazido a imortalidade ao seu alcance. Ao passo que ‘a morte passou a todos os homens, por isso que todos pecaram’, Cristo trouxe à luz a vida e a incorrupção pelo evangelho”.17

Adam Clark lembra que Paulo estava alertando para o fato que “agora, se os judeus não permitissem aos gentios algum interesse em Abraão, por não serem descendentes naturais dele, precisavam aceitar que os gentios são os descendentes de Adão, como também eram eles mesmos, e sendo todos igualmente envolvidos nas conseqüências de seu pecado… e ambos foram envolvidos nas conseqüências do livre dom de Deus em Cristo”.18

A obra de Cristo foi um ato de amor da parte de Deus (João 3:16; Rom. 5:8; I João 3:16), mas não pode ser definida apenas como um ato. “Foi a revelação do ‘mistério encoberto desde tempos eternos’. Foi um desdobramento dos princípios que têm sido, desde os séculos da eternidade, o fundamento do trono de Deus.”19

Para ser o legítimo representante dos homens perante o Universo, revelar o Pai à humanidade e redimir os pecadores, o Filho de Deus tomou-Se carne e habitou entre nós (João 1:14). “Cristo foi tratado com nós merecíamos, para que pudéssemos receber o tratamento a que Ele tinha direito. Foi condenado pelos nossos pecados, nos quais não tinha participação, para que fôssemos justificados por Sua justiça, na qual não tínhamos parte. Sofreu a morte que nos cabia, para que recebêssemos a vida que a Ele pertencia.”20

Temos apenas duas escolhas: pertencer ao grupo da humanidade cujo destino é determinado por Adão, ou pertencer ao grupo cujo destino é determinado por Cristo.

Ao oferecer o primeiro sacrifício, Adão tremeu com o pensamento de que seu pecado deveria derramar o sangue do Cordeiro de Deus.

Devemos lembrar que o próprio Adão se arrependeu do seu pecado. Ele aceitou a Cristo como Senhor e Salvador. “As ofertas sacrificais foram ordenadas por Deus a fim de serem para o homem uma perpétua lembrança de seu pecado, e um reconhecimento de arrependimento do mesmo, bem como seriam uma confissão de sua fé no Redentor prometido. Destinavam-se a impressionar a raça decaída com a solene verdade de que foi o pecado que causou a morte. Para Adão, a oferta do primeiro sacrifício foi uma cerimônia dolorosíssima. Sua mão de-veria erguer-se para tirar a vida, a qual unicamente Deus podia dar. Foi a primeira vez que testemunhava a morte, e sabia que se ele tivesse sido obediente a Deus não teria havido morte de homem ou animal. Ao matar a inocente vítima, tremeu com o pensamento de que seu pecado deveria derramar o sangue do imaculado Cordeiro de Deus. Esta cena deu-lhe uma intuição mais profunda e vivida da grandeza de sua transgressão, que coisa alguma a não ser a morte do amado Filho de Deus poderia expiar. E maravilhou-se com a bondade infinita que daria tal resgate para salvar o culpado. Uma estrela de esperança iluminou o futuro tenebroso e terrível, e o aliviou de sua desolação geral.”21

Graças a Cristo, Adão será reintegrado ao jardim de onde foi expulso. Ele e uma inumerável multidão de seus descendentes viverão eternamente em glória, na Nova Terra. Eis como Ellen White descreve as cenas finais do drama do pecado: “Os dois Adões estão prestes a encontrar-se. O Filho de Deus Se acha em pé com os braços estendidos para receber o pai de nossa raça — o ser que Ele criou e que pecou contra o seu Criador, e por cujo pecado os sinais da crucifixão aparecem no corpo do Salvador. Ao divisar Adão os sinais dos cruéis cravos, ele não cai ao peito de seu Senhor, mas lança-se em humilhação a Seus pés, exclamando: ‘Digno, digno é o Cordeiro que foi morto!’… A família de Adão associa-se ao cântico e lança as suas coroas aos pés do Salvador, inclinando-se perante Ele em adoração.”22

Referências:

  • 1. Anders Nygren, Commentary in Romans, pág. 128.
  • 2. Russel Normam Champlin, O Novo Testamento Interpretado, vol. 3, pág. 658.
  • 3. Comentario Bíblico Adventista del Septimo Dia, vol. 6, pág. 1.074.
  • 4. Ibidem.
  • 5. Idem, pág. 525.
  • 6. Herbert Kiesler, A Carta aos Romanos, Casa Publicadora Brasileira, pág. 61.
  • 7. Ibidem.
  • 8. Aecio Cairus, La Epístola a los Romanos, Universidade Adventista del Plata, pág. 53.
  • 9. Comentário Bíblico Broadman, vol. 10, pág. 233.
  • 10. Jack W. Mac Gorman, Romanos el Evangelio Para Todo Hombre, pág. 82.
  • 11. Kari Kelterge, A Epístola aos Romanos, vol. 6, Edito-ra Vozes, pág. 111.
  • 12. Russel Norman Champlin, Op. Cit., pág. 656.
  • 13. Herbert Kiesler, Op. Cit., pág. 63.
  • 14. Ellen G. White, Patriarcas e Profetas, pág. 306.
  • 15. F. F. Bruce, Romanos, Introdução e Comentário, Edi-ções Vida Nova, pág. 108.
  • 16. Mattew Henry, Hechos, Romanos, I Coríntios, Edito-ra Terrasa, Barcelona, pág. 277.
  • 17. Ellen White, O Grande Conflito, pág. 533.
  • 18. Adam Clark, Clark’s Commentary Romans-Revela-tion, vol. 6, pág. 69.
  • 19. Ellen White, O Desejado de Todas as Nações, pág. 22.
  • 20. Idem, pág. 25.
  • 21. Ellen G. White, Patriarcas e Profetas, pág. 68.
  • 22. _____________, O Grande Conflito, págs. 647 e 648.