Houve tempo em que o espiritismo combatia tenazmente as Escrituras Sagradas, procurando, com subtilezas dialéticas, minimizar-lhes a autoridade em matéria religiosa. Hoje, no entanto, percebendo o prestígio irremovível e crescente do Livro Santo, procura êle encaixar-se na Bíblia como um micróbio num organismo são. E um dos passos escriturísticos muito citado, em abono da tese espírita, é o relato da consulta de Saul à feiticeira de En-Dor. Insistem os corifeus do espiritismo que Samuel apareceu em espírito naquela sessão de invocação, conforme o registo de I Samuel 28:7-19. E conclui que “queremos à viva fôrça demonstrar que Samuel era espírito das trevas, espírito êsse que, apesar dessa sua qualidade, teria dito: ‘Já que não obedeceste à voz do Senhor’ (verso 18). Esquisito êsse falar se partisse deveras de um espírito maligno! Não vos parece também? Pergunto agora: Qual o critério a adotar para discernir os espíritos? Seria pela figura como se apresentam, ou por suas palavras e atos?”

Equivoca-se o espiritismo em dizer que queremos à viva fôrça demonstrar que o Samuel que se apresentou à necromante de En-Dor, há 2.900 anos, era um espírito da legião do arquienganador. Não somos nós quem quer prová-lo. É a própria Bíblia que nos dá os indícios inequívocos do embuste. E o fato de o suposto Samuel ter dito: “Já que não obedeceste à voz do Senhor …” nada prova em favor da legitimidade da aparição de Samuel. E nem ficamos espantados com isso, pois a própria Bíblia afirma categoricamente que isso “não é de admirar, porque o próprio Satanás se transfigura em anjo de luz” e que “os seus próprios enviados se transfiguram em enviados de justiça.” II Cor. 11:14 e 15. É importante reler e reter êsses versículos. É muito lógico que quem se apresenta como “anjo de luz”, não o sendo, e como “emissário de justiça”, não o sendo, deverá necessàriamente ter uma linguagem de respeitabilidade à altura do personagem que simulou. Do contrário não conseguiría seus objetivos . . .

Sim, aquêle espírito das trevas em En-Dor pronunciou várias vêzes o nome de Deus. Diz a Bíblia que os demônios (ou espíritos imundos) “crêem em Deus e estremecem” (S. Tiago 2: 19). Certa vez um demônio (ou espírito das trevas) disse a Jesus: “Bem sei quem és: és o Santo de Deus” (S. Mat. 1:24). Outro espírito maligno disse: “… Jesus, Filho de Deus Altíssimo” (S. Mat. 5:7). Sim, os espíritos maus, às vêzes, dizem belas verdades. Houve um (Atos 16:16 e 17) que disse esta verdade maravilhosa: “Êstes homens [Paulo e Barnabé] que vos anunciam o caminho da salvação, são servos do Deus Altíssimo”. Apesar desta grande verdade, o tal espírito das trevas foi expulso sumàriamente. Outro espírito maligno disse: “Conheço a Jesus…” (Atos 19:15).

Donde se conclui, que não se deve ir pela “conversa” de quem se apresenta . . .

Sim, Satanás, o chefe dos espíritos imundos, às vêzes fala até pela bôca de nossos amigos mais chegados (S. Mat. 16:22 e 23), assume forma humana e fala diretamente (S. Mat. 4: 1-11), e chega a citar as Escrituras (S. Mat. 4:16).

Aquêle “Samuel” que “falou” no sombrio casebre de En-Dor, era, de fato, um espírito das trevas. E há ainda o seguinte: se eu fôsse espírita, teria motivos sérios para desconfiar dêsse “Samuel”. O próprio ensino espírita me poria em guarda contra essa pretensa entidade do outro mundo que iludiu a Saul. Na longa introdução ao “Livro dos Espíritos”, o Sr. Allan Kardec — chamado o codificador do espiritismo — diz algumas coisas interessantes sôbre a identidade dos espíritos. Eis algumas de suas expressões: “. . . os Espíritos inferiores se adornam muitas vêzes com os nomes mais conhecidos e venerados. Quem pode, pois, assegurarnos que aquêles que dizem ter sido Sócrates, Júlio César, Carlos Magno, Fenelon, Napoleão, Washington, etc., tenham realmente animado os corpos dêstes personagens?”

Ora, se eu fôsse espírita, isso me faria pensar muito. E noutro lugar, diz o codificador: “. . . se às vêzes nos dizem coisas boas e VERDADEIRAS, na maioria dos casos só proferem falsidades e absurdos . . E ainda à pág. 26 da edição que tenho há êste trecho, referindo-se aos espíritos: “muitas vêzes adotam nomes venerandos para melhor nos levarem ao êrro”. Isto foi exato no caso de Saul. No “O Livro dos Médiuns” — outra obra básica do espiritismo — no capítulo 24 há êsse trecho: “Dirão sem dúvida que, se um espírito pode imitar qualquer assinatura, PODE TAMBÉM IMITAR A LINGUAGEM. ASSIM É. Vimos alguns que utilizavam com descaramento o nome de Cristo, e para iludir melhor, simulavam o estilo evangélico, prodigalizando a torto e a direito as palavras bem conhecidas: ‘Em verdade, em verdade vos digo’”. Ainda no citado livro, pág. 273, lemos: “Quanto mais venerável fôr o nome com que um espírito se apresente, tanto maior desconfiança deve inspirar …” Estas são as advertências do codificador! E adiante conclui: “Não se deve tomar ao pé da letra tudo o que dizem”. (Grifos, versais e versaletes supridos.)

Basta. Sumariando estas importantes admissões espíritas, vemos que: (1) é freqüente a simulação nas manifestações de espíritos; (2) que os espíritos inferiores, ao simularem, falam coisas boas e até verdadeiras; (3) que imitam com perfeição a voz e a linguagem da pessoa que dizem ser, e (4) que não devemos aceitar como legítimas essas palavras . . .

Aí está o que se pode, com propriedade, aplicar ao incidente de En-Dor. Agora, vamos analisá-lo para ver o embuste. Primeiramente consideremos as pessoas envolvidas no incidente: Samuel, o profeta de Deus; Saul, o rei ímpio e rejeitado; a feiticeira proscrita e fora da lei, e a aparição que se apresentou como Samuel.

Samuel, o Profeta de Deus

Êste servo de Jeová, em cumprimento a ordens divinas, recriminara Saul. E nessa reprimenda, definiu êle que a necromancia (prática de evocar mortos) era um pecado gravíssimo, altamente ofensivo a Deus! I Sam. 15:22. Ora, Samuel não se prestaria a animar com sua presença uma prática pecaminosa que êle próprio condenara com tanta veemência. Não é claro, amigo? Samuel não era ignorante sôbre o assunto. Sabia que Deus ordenara a morte aos necromantes. Lev. 20:6. Íntegro como era, Samuel não ensinaria uma coisa e depois praticaria outra diametralmente contrária. E o seu caráter? Poderia haver duplicidade num profeta de sua estatura moral e espiritual? Não, não era Samuel, o profeta, aquêle personagem nebuloso que apareceu em En-Dor. E a isto alguém poderia objetar:

— Mas a Escritura não diz no verso 15: “Samuel disse . . .”?

— Sim, mas isto não significa que se tratava efetivamente de Samuel. O escritor do Livro de Samuel descreve os fatos como lhe pareceram ocorrer, o que, aliás, é a maneira comum de narrar as coisas. A mesma Bíblia descreve, por exemplo, o Sol, como nascendo e se pondo, como também dizemos. Na realidade isto não se dá porque a Terra é que gira em tôrno do Sol. Mas é uma forma aceita de expressar o que é aparente.

Não, não era Samuel, o profeta, aquêle “per-sonagem” . . .

O verdadeiro Samuel fôra sepultado em Rama, localidade distante de En-Dor (I Sam. 28: 3). Não podia ter ressuscitado para aparecer nesta última localidade.

Podia Samuel, o verdadeiro, obedecer à invocação de uma mulher ímpia, condenada e proscrita por crime definido pelo próprio Deus?

Era, sim, “Samuel” — contrafação produzida por solerte espírito maligno.

Saul, o Rei Ímpio e Rejeitado

Saul já era um fracassado na vida espiritual. Não tinha mais o Espírito Santo, o Espírito de Deus, e estava nas malhas dos espíritos das trevas. Diz a Bíblia: “E o Espírito do Senhor se retirou de Saul, e o assombrava um espírito mau ‘por permissão do Senhor’” (ver trad. Matos Soares). Ler I Sam. 16:14-16. Estava êste homem formalmente rejeitado por Deus. E Deus, de maneira nenhuma, quis comunicar-Se com êle. Nem por Urim, nem por profetas, nem por sonhos. DE FORMA NENHUMA. (I Sam. 28:6.)

Isto é importante. Quer dizer que a “comunicação” de En-Dor não foi de Deus. E isto, por si, liqüidaria a questão.

Mas diz o relato sagrado que Saul procura então, em desespêro de causa, um recurso ilícito e condenado: a necromancia, a pretensa evocação de espíritos dos mortos. E foi ao que diriamos hoje uma “sessão prática” de espiritismo. É o que lemos em I Sam. 28:7, na tradução inglêsa Revised Standard Version: “Então Saul disse aos seus servos: ‘Procurai para mim uma mulher que seja médium, para que eu a visite e a consulte’. E os seus servos disseram: ‘Eis que há uma médium em En-Dor”’. E essa tradução não está errada, porque ‘ob em hebraico é necromante, médium, o que evoca mortos.

Saul tornou-se crédulo na feitiçaria, pois pela leitura dos versículos 11, 13 e 14, se evidencia que êle nada vira. Sòmente a mulher viu a aparição. Por ser médium, e Saul não? Ora, se Deus realmente Se quisesse comunicar com o rei fracassado, certamente lhe concedería tal mediunidade para que não pairasse nenhuma dúvida quanto a autenticidade da comunicação. Notemos a credulidade tôla de Saul. Perguntou êle: “o que vês?” . . . “como é a sua figura?” Em vez de confiar em Deus, confiava numa mulher desclassificada. Diz a Bíblia: “ENTENDENDO Saul que era Samuel …” (verso 14). Nada claro. Nada convincente. Nada que transpareça intervenção divina. Tudo nebuloso . . . Deus não Se manifestaria dessa forma. Deus “não é Deus de confusão, mas de paz”.

Notemos que tão reprovável e indigno era o ato de Saul, que precisou mascarar-se, disfarçar-se para fazê-lo e inda na calada da noite . . . Deus é luz, e não aprova as obras infrutuosas das trevas.

E se o amigo me diz que se deve reconhecer o bom espírito pelos frutos, pelo resultado (como diz também Kardec), então lhe digo, que tudo aqui foi desastroso e maligno. O incidente, em vez de melhorar a sorte de Saul, agravou-a, distanciou-a mais de Deus, levando-o mais depressa ao suicídio. Quer ler pausadamente I Crôn. 10:13 e 14?

A Feiticeira Proscrita

Esta mulher ímpia, arredada da comunidade israelita, exercia atividade ilegal. Não que os homens a considerassem como tal, mas o próprio Deus a proibira formalmente. (Lev. 20: 27; Deut. 18:11; Isa. 8:19 e 20.) E o próprio Saul, quando vivia debaixo do favor divino, expulsara da Palestina todos os evocadores de mortos. E entre êles achava-se, como elemento indesejável, esta feiticeira. Seria curial admitir que Aquêle que Se recusou a comunicar-Se com Saul, pelos meios normais e admissíveis, Se utilizasse de uma mulher ímpia, feiticeira, condenada e proscrita para revelar Sua vontade a Saul? Que se pode pensar do caráter de Deus? Notemos que tanto Saul como a feiticeira eram rejeitados por Deus. Podia uma pessoa rejeitada por Deus resolver a situação de outra pessoa também rejeitada por Deus?

Responda quem puder.

A Aparição

A aparição, que Saul aliás não viu, mas que foi descrita pelo “senso de vidência” da mulher, era de início: “deuses que sobem da terra”. A seguir, foi descrita como “um ancião envolto em sua capa”. A concepção de “deuses que sobem da terra” era virtualmente pagã, dos povos vizinhos dos israelitas. Não era ensino dos profetas de Deus. Ora, Deus não iria revelar uma falsidade! Não, a aparição, ou manifestação, não provinha de Deus.

Diz-se hoje que “os espíritos baixam do espaço”, mas na contraditória e desastrosa sessão de En-Dor, êles “subiram da terra.” Interessante!

Muito pretensiosa esta aparição: pretendendo ser o íntegro profeta Samuel (e portanto um espírito superior que, segundo as idéias imor-talistas correntes, deveria estar num plano superior) contenta-se em ficar num lugar inferior e lôbrego na companhia do ímpio e perdido Saul. Pois disse: “Amanhã, tu e teus filhos estareis comigo”. Que acha disto amigo? Se o espírito de Samuel ainda estava no mesmo grau de erraticidade em que Saul e seus filhos estariam dali a momentos, então a encarnação de Samuel não o elevou e o deixou tão degradado como Saul!

Mas o incidente de En-Dor tem a sua pá de cal nestas palavras: “Assim morreu Saul por causa da sua transgressão, com que transgrediu contra o Senhor, por causa da palavra do Senhor, a qual não havia guardado; E TAMBÉM PORQUE BUSCOU A ADIVINHADORA PARA A CONSULTAR, E NÃO BUSCOU AO SENHOR …” I Crôn. 10:13 e 14.

Note-se êsse “e não buscou ao Senhor”. É significativo. Quer dizer que lá, na escura sessão de En-Dor, não estava buscando ao Senhor. Estava buscando outra coisa . . .