O Prof. Leo Oppenheim, da Universidade de Chicago, em seu livro A Mesopotâmia Antiga, dedica um interessante capítulo à medicina como era praticada na antiga Babilônia. Um tal capítulo não poderia ser escrito antes das escavações arqueológicas levadas a efeito em diferentes pontos da Mesopotâmia no último século. Impelidos pela curiosidade de melhor conhecer o berço da civilização, dezenas de investigadores patrocinados por museus e universidades da Europa e dos Estados Unidos trabalharam nas ruínas de Nínive, de Babilônia, de Nipur, de Ur, para só mencionar algumas das cidades mais importantes. Estas escavações cada vez mais meticulosas trouxeram à luz cidades e cemitérios, templos e palácios dos vários povos que se sucederam no palco histórico da Mesopotâmia.

De igual interesse foi a descoberta em arquivos públicos e particulares de milhares de tabletes de argila cobertos de inscrições, que forneciam toda espécie de informações não só sobre o comércio, práticas religiosas, a vida de todos os dias, conquistas militares, correspondência entre vários soberanos, mas também sobre a medicina. Fora os poucos textos estritamente médicos que consistem de coleções de prescrições, é preciso colher fragmentos de informações em cartas, nos códigos de lei, como o código de Hamurabi, e nos textos literários de diferentes épocas.

Os textos médicos de natureza “científica”, se assim podem ser chamados, apresentam-se na forma de prognósticos, e são arranjados em coleções. Cada série começa, em geral, pela fórmula: “Se um homem sofre de uma dor na cabeça (ou outra parte do corpo)…” A enumeração dos sintomas é bastante detalhada e é seguida por instruções quanto ao tratamento: preparação, tempo a ser observado, aplicação, etc. Normalmente a instrução termina com a garantia: “O paciente se restabelecerá…”, mas ocasionalmente o médico é advertido de que o paciente não sobreviverá à enfermidade.

Certos textos datam de meados do segundo milênio antes de Cristo, e foram encontrados em Hatusa, a capital do império hitita, onde escribas fizeram cópias dos textos originais babilônicos. Outros documentos foram encontrados em Assur e Nínive, e datam de 1000 a 612 A.C., quando o império assírio chegou a seu fim. É evidente ao investigador que todos os documentos, não importa a data, refletem a prática médica e o estado de conhecimento médico no tempo da antiga Babilônia, a única época verdadeiramente criativa neste domínio. As gerações seguintes se contentaram em preservar a tradição, quando não introduziram, o que é pior, noções supersticiosas que degradam a medicina ao nível da magia ou feitiçaria.

A título de comparação, pode-se dizer que a medicina na Mesopotâmia não ultrapassou jamais o estado da medicina popular corrente na Europa na Idade Média, por exemplo. Os medicamentos consistiam sobretudo de ervas nativas de toda espécie, de produtos animais tais como gordura, sebo, sangue, leite, osso, e um pequeno número de substâncias minerais. As ervas — raízes, hastes, folhas, frutos, segundo o caso — eram empregadas secas ou frescas, pulverizadas, molhadas ou fervidas. Eram misturadas com cerveja, vinagre, mel e sebo, como excipiente, substância neutra que leva o princípio ativo. Certos medicamentos deviam ser engolidos, ou aplicados sobre o corpo como loções ou pomadas. Como se pode imaginar, algumas ervas eram empregadas como laxativos, diuréticos ou expectorantes. Às vezes o emprego mostra que as qualidades e os efeitos destas ervas eram bem conhecidos. Em outros casos a superstição desempenhava um papel importante.

Instrumentos médicos são raramente mencionados nestes textos. Pode-se ler no entanto de espátulas e tubos, bem como de bisturi, que é chamado “faca de barbeiro”. É interessante notar que em muitas culturas a profissão médica era exercida por barbeiros, sem nenhuma instrução preliminar. O bisturi era usado para escarificar a pele com o fim de provocar uma sangria. Sua finalidade seria semelhante ao emprego de ventosas e sanguessugas por médicos de uma época não muito distante da nossa.

Considerando a natureza elementar destes conhecimentos médicos, não é de admirar que não se recorresse à cirurgia, salvo em situações extremas. Práticas mágicomédicas, tais como a extração de dentes ou a trepanação, não são atestadas em Babilônia. Mas a trepanação era praticada na Palestina antiga, como atestam crânios encontrados por J. L. Starkey numa fossa nas ruínas de Lakis, bem como entre os Incas do Peru. Os numerosos exemplos da trepanação constados aqui e acolá se explicam pelo uso da maça nos combates com o resultado de muitos combatentes tombarem com crânios fraturados. Era preciso fazer algo para salvá-los da morte certa, e o remédio heróico era a trepanação. A prova de que alguns feridos sobreviviam a esta operação delicada, é que a janela retangular aberta no crânio com o auxílio de uma serra, mostra, em vários casos, sinais de cicatrização. Se os ângulos da janela são ainda nítidos nos crânios operados, é sinal de que o paciente deve ter morrido logo depois da trepanação.

Não é verdade, afirma o Dr. Leo Oppenheim, que se praticavam operações de catarata em Babilônia. A referência à intervenção no globo ocular feita no Código de Hamurabi deve ser compreendida como uma simples escarnificação com o fim de aliviar alguma enfermidade dos olhos. Exigia muita coragem ser cirurgião no tempo de Hamurabi (1728-1686 A. C.), pois o célebre código que leva seu nome prescreve que o cirurgião que provocasse a perda do olho de um membro da aristocracia teria sua mão amputada.

O que é lamentável é que a medicina na Mesopotâmia permaneceu no mesmo baixo nível de desenvolvimento através dos séculos. Pode-se mesmo dizer que ela se degradou progressivamente pela contaminação de certos conhecimentos médicos válidos adquiridos pelos antigos com noções supersticiosas. A medicina degenerou-se em feitiçaria com grave prejuízo para todos. O historiador grego Heródoto, que visitou Babilônia cerca de 450 A. C., consigna que os babilônios tinham o hábito de trazer seus doentes ao mercado a fim de perguntar aos transeuntes que remédios poderiam sugerir. Se bem que esta observação de Heródoto tenha sido contestada pelos assiriólogos, é indiscutível que o visitante grego não mostra a mesma admiração pela medicina e os médicos de Babilônia que ele mostra pelos do Egito.

O alto prestígio que Heródoto atribui à medicina praticada no Egito é justificada pela excelente qualidade das observações médicas contidas no papiro Edwin Smith, que data do Antigo Império, ou pelo grau de especialização na prática médica que Heródoto tanto admirou, ou pela rica farmacopéia de que fala o autor da Odisséia (IV, 229, 231). Infelizmente, o estudante imparcial deve pronunciar o mesmo juízo sobre a medicina egípcia que sobre a babilônica. Começando num nível admirável em que as observações e prescrições médicas são feitas com bastante objetividade e lucidez, esta medicina se degenerou irremediavelmente pelo efeito deletério da magia e da feitiçaria. O conceito expresso pelos egiptólogos alemães Ermann e Ranke com respeito à religião egípcia se aplica igualmente à medicina. Ambas sofreram a ação devastadora da magia que reduziu uma e outra a superstições grosseiras.

De outro lado, a opinião do Prof. Leo Oppenheim quanto à causa do prestígio da medicina no Egito antigo e seu relativo desprestígio em Babilônia, não parece resistir a um exame cuidadoso. Oppenheim atribui o prestígio ao fato de que os egípcios criam numa vida eterna, e esta crença os levava a combater a enfermidade e a morte pela competência médica elevada ao mais alto grau. Em contraste, o desinteresse dos povos da Mesopotâmia pela vida no além os inclinaria também a se desinteressarem pela preservação da vida presente. O ilustre professor chega a dizer que a resignação em face da morte no Antigo Testamento explicaria de igual modo a falta de interesse na medicina em Israel. É neste contexto que Oppenheim cita II Crônicas 16:12: “Caiu Asa doente dos pés; a sua doença era em extremo grave contudo na sua enfermidade não recorreu ao Senhor, mas confiou nos médicos.”

Não se pode, entretanto, concluir deste verso que os escritores bíblicos fossem, em princípio hostis à medicina. Asa é condenado não necessariamente por consultar os médicos, mas por não buscar ao Senhor. A crença religiosa em Israel era perfeitamente compatível com o uso de recursos médicos. A aversão às práticas médicas correntes na época do rei Asa se explica pelo fato de que a medicina de então era de tal modo misturada com a feitiçaria e a superstição que nenhum israelita podia em boa consciência buscar seu socorro. O “médico” de então não passava de um curandeiro, ou encantador, como é o caso ainda hoje em muitas culturas primitivas.

É natural que quando seis ou sete séculos mais tarde a medicina se tinha desembaraçado da magia e havia atingido um nível mais “científico”, com as devidas reservas, os israelitas podiam considerá-la com mais respeito. É esta situação que se reflete no livro apócrifo de Ben Sirach, escrito cerca de 200 A. C.:

“Honra o médico com a honra que lhe é devida…

“pois Deus também o criou;

“pois a cura vem do Altíssimo.” (Ben Sirach, cap. 38:2 e 4)

O uso da palavra rophê, “médico”, é raro no Antigo Testamento. Encontra-se uma só vez no singular em Jeremias 8:22: “Acaso não há bálsamo em Gileade? ou não há lá médico”? No plural a palavra é encontrada em Gênesis 50:2 duas vezes, onde parece ser sinônimo de “embalsamador”. Uma outra referência se encontra em Jó 13:4, onde Jó acusa seus amigos de serem “médicos que não valem nada”, pois não lhe traziam nenhum conforto. Este verso pressupõe a existência de bons médicos, que contrastavam com a qualidade dos amigos de Jó. Em todo o caso, o país em que Jó habitava não era a Palestina.

O que é certo é que no tempo de Ben Sirach o Oriente Próximo experimentava a influência esclarecida da cultura grega. O novo clima intelectual foi um dos resultados das conquistas de Alexandre, o Grande (366-323), cujo sonho fora amalgamar o Oriente e o Ocidente numa forma superior de civilização. Um dos gestos mais duradouros do jovem conquistador foi a fundação da cidade de Alexandria no Egito, que suplantou dentro em pouco Atenas como o maior centro cultural da época. Em Alexandria o impulso científico de Hipócrates, o pai da medicina, e de Aristóteles, o fundador da história natural, haveria de conhecer sua mais bela floração. Uma verdadeira plêiade de sábios como Eratóstenes e Arquimedes conferiu ao centro de estudos que era o museu de Alexandria uma glória imperecível.


Convenha-se que noções médicas mais objetivas, no estilo dos aforismos de Hipócrates, tornaram-se pouco a pouco o patrimônio de muitos homens cultos que exerciam a profissão médica. A Palestina, que ocupava uma posição chave entre o Egito e a Síria (dois focos da cultura grega), não podia deixar de ser beneficiada pelo clima mais científico que prevalecia neste mundo helenístico nascido das conquistas de Alexandre. Como resultado, o sábio Ben Sirach deve ter conhecido na Palestina de seus dias, médicos cuja competência profissional impunha respeito. Daí suas palavras elogiosas impensáveis na época do rei Asa: “Honra o médico com a honra que lhe é devida…”

O apóstolo Paulo, cuja cidade natal foi Tarso, um centro universitário, e que passou anos em Antioquia, a cidade mais culta do Oriente Próximo em seus dias, do mesmo modo em que Ben Sirach tinha os médicos em alto preço, ele que afirmara, sob a inspiração divina, que nosso corpo é o “santuário do Espírito Santo”, e que nos incumbe glorificar a’ Deus “no vosso corpo” (I Cor. 6:19 e 20), sabia quão importante é a preservação da saúde. É compreensível, pois, que o apóstolo Paulo, que em suas viagens missionárias desfrutara a companhia de Lucas “o médico amado” (Col. 4:14), nutrisse por este seu colega a mais alta estima.