Tentação e sempre uma experiência constante na vida humana. É um fato aceitável e não envolve maiores questionamentos. Mas a elaboração deste artigo não foi motivada pelo pensamento de analisar as tentações que assaltam os seres humanos, nem seus atos pecaminosos resultantes. Nosso objetivo é focalizar sobre a tentação essencial que rondou Jesus Cristo, durante o Seu ministério terrestre. Como sabemos, a Seu respeito é dito haver sido “tentado em todas as coisas, à nossa semelhança, mas sem pecado” (Heb. 4:15).
Qual foi a maior tentação enfrentada por Jesus? Antes de prosseguirmos, devemos lembrar que, em se tratando de questões relacionadas com a Encarnação, precisamos estar submissos ao conselho de Ellen White quando afirma ser esse tema um dos grandes mistérios a serem desvendados na eternidade. Dessa forma, encaramos nossa limitação humana e temos de nos conscientizar do fato de que nem tudo poderemos entender plenamente. Contudo, isso não significa que não possamos extrair o máximo do que está revelado nas Sagradas Escrituras.
Não podemos penetrar na questão da maior tentação de Cristo sem antes examinar um dos textos mais significativos e profundos da Bíblia: “Tende em vós o mesmo sentimento que houve também em Cristo Jesus, pois Ele, subsistindo m forma de Deus não julgou como usurpação o ser igual a Deus: antes a Si mesmo Se esvaziou, assumindo a forma de servo, tornando-Se em semelhança de homens; e, reconhecido em figura humana, a Si mesmo Se humilhou, tornando-Se obediente até à morte, e morte de cruz.” (Fil. 2:5-8).
Divindade renunciada
A primeira questão que desejamos ressaltar nessa declaração do apóstolo Paulo é a expressão “em forma de Deus”. Percebemos aqui que o interesse do autor é revelar a natureza de Cristo: mostrar Sua essência divina. Cristo não era apenas aparência de Deus, mas possuía as características essenciais e os atributos de Deus. Je-sus não era apenas como Deus, Ele era Deus (João 1:1 e 14). Evidentemente mais que um ser humano, e mais elevado que um anjo, Ele era o agente do Pai na criação do Universo. Sua natureza divina é explicitamente confirmada para aqueles que duvidam de Sua participação como membro da Trindade.
Porém, chegamos ao versículo sete e nos deparamos com o fenômeno mais impressionante do plano da salvação. Lemos que Cristo “a Si mesmo Se esvaziou, assumindo a forma de servo”. Essa declaração é uma pérola da literatura paulina. Neste momento, o leitor, conduzido pela inspiração apostólica, penetra na intimidade do processo da Encarnação. O que se vê aí é a realidade de um Deus onipotente esvaziando-Se de Si próprio a fim de tomar a forma humana e Se identificar com Suas criaturas. Podemos nos aprofundar um pouco mais se analisarmos as expressões aqui utilizadas.
A expressão original, traduzida por “Se esvaziou” é o termo grego kenoo, que também significa “tornar sem efeito”, “anular”, ou “privar-se de”. Cristo deixou de lado Seus atributos divinos. Ele privou-Se de agir como Deus, o que está longe de significar que em algum momento Ele tenha deixado de ser Deus. Afinal, não poderia perder aquilo que Ele é na Sua essência. No entanto, a fim de submeter-Se a todas as condições da vida humana, Ele privou-Se temporariamente de Seus atributos divinos. Não Se despojou de Sua divindade; apenas decidiu não utilizá-la.
Isso não é tão simples como pode parecer, pois existe algo mais incrível por trás deste gesto de esvaziamento, que é a intencionalidade do processo. Ele foi voluntário. Essa autolimitação do Deus criador foi uma decisão Sua. Algo de iniciativa própria. Deus escolheu voluntariamente ignorar Suas qualidades celestiais criadoras. Recusou a utilização do Seu próprio poder intrínseco, para que pudesse ser como nós.
Para o cumprimento do plano da salvação, o Messias, que resgataria o homem do pecado, teria de vir como o homem antes do pecado, isto é, como Adão. Ao decidir por uma divindade apenas potencial, Cristo compartilharia plenamente da condição humana em sua fraqueza e sorte.
Essa identificação de Cristo com o homem nos ajuda a entender a sinceridade das Suas palavras, segundo João 5:30, quando disse: “Eu nada posso fazer de Mim mesmo.” A vida de Jesus aqui na Ter ra foi uma vida de dependência do Pai. Cristo “não veio para viver como Deus, mas para viver em obediência a Deus co-mo ser humano e vencer onde Adão e Eva caíram” (George Knight, My Gripe With God. pág. 80).
A comunhão que Jesus Cristo manteve com Deus serve de exemplo para todos nós e nos mostra que é possível obter o mesmo poder. Foi assim com os discípulos que, após a ascensão, cheios do Espírito Santo, curavam doentes e ressuscitavam mortos, como Jesus fazia.
A grande luta
Podemos agora penetrar na essência do esvaziamento realizado por Cristo. Como ninguém esvaziou Jesus, o que torna Seu gesto um ato voluntário, Ele poderia reaver Seu poder a qualquer momento. Bastava querer e todo o poder divino estaria pronto para ser colocado em ação. Aqui encontramos mais uma diferença entre Jesus e nós. Nossa única fonte de poder se encontra fora de nós; enquanto no que diz respeito a Cristo, essa fonte também estava dentro dEle. Poderia utilizar Suas potencialidades divinas no primeiro impulso de vontade. O único problema é que se isso fosse feito, o plano da salvação cairia por terra. Ele deixaria Sua condição de homem obediente, e Satanás estaria certo da acusação de que é impossível ao homem obedecer a Lei de Deus.
É aqui que encontramos o foco maior das tentações que Jesus sofreu. Caso Satanás simplesmente conseguisse levá-Lo a desistir da condição de esvaziamento, apenas uma vez, persuadindo-O a usar Seu próprio poder, venceria a batalha. O mundo estaria perdido para sempre. Essa foi a grande luta de Cristo: “a batalha da fraqueza”. Nesse ponto, Satanás concentrava todas as suas forças. Foi “sobre o voluntário auto-esvaziamento de Cristo que estavam fundamentadas todas as Suas tentações”. (Ibidem).
Nesse ponto, descortina-se diante de nossos olhos uma nova realidade acerca da vida do Filho de Deus – a negação própria. Quando refletimos a respeito do auto-esvaziamento de Deus na Encarnação, temos de admitir que Sua vida inteira na Terra foi uma vida de morte. Manter-se no nível da humanidade débil e fraca e, ao mesmo tempo, rejeitar usar Sua divindade foram o peso da cruz que carregava diariamente. Sua vida foi uma constante rendição do Eu e submissão a Deus pela obediência. Satanás tentou devorar Jesus em cada respiração, e a cada passo cancelar Sua missão.
Uma dessas tentativas que, embora muito economicamente, foi relatada pelos evangelhos, aconteceu logo após Sua unção para o ministério público. Ele acabara de ser batizado e foi para o deserto onde passou 40 dias e 40 noites em comunhão com o Pai. E o inimigo aproveitou a chance para Lhe fazer algumas sugestões.
“Então o tentador, aproximando-se Lhe disse: Se és Filho de Deus, manda que estas pedras se transformem em pães.” (Mat. 4:3). Depois de um período superior a um mês sem alimento, Jesus em Sua humanidade estava sentindo a necessidade mais básica do ser humano: a fome. A sugestão era oportuna. Confesso que em minha infância eu não conseguia entender muito bem a importância dessa tentação, e chegava até a duvidar da sanidade do tentador. O que é compreensível, pois aquela situação nunca foi uma tentação para mim. Eu não posso extrair pão das rochas. Mas Jesus podia, e aí estava a diferença. Ele não somente havia criado aquelas pedras, mas todo o Planeta. Sequer precisaria de pedras para fazer um pão. Com a fome que seguramente sentia, essa era sem dúvida uma sugestão atraente.
Mas não podemos ser ingênuos a ponto de resumir todo o problema a uma simples tentação para satisfazer o apetite, ou para provar algo a um anjo incrédulo. A verdadeira questão que estava em jogo era a utilização do poder divino em benefício próprio. O interesse do diabo era que Cris-to revertesse o auto-esvaziamento, usando Seu divino poder para satisfazer Suas próprias necessidades, agir independentemente do plano de Deus.
Mas ainda existe algo além disso. Numa região como a Palestina, abundante em gente faminta e rochas inúteis, fundar uma padaria milagrosa seria uma forma bem mais atraente de estabelecer um reino do que pela cruz. Distribuir pães quentinhos para todo mundo seria um gesto mais indolor que ostentar uma coroa de espinhos. Essa intenção evasiva é a inspiração para o próximo ataque:
“Então o diabo O levou à cidade santa, colocou-O sobre o pináculo do templo. E Lhe disse: Se és Filho de Deus atira-Te abaixo, porque está escrito: Aos Seus anjos ordenará a teu respeito: que te guardem. Eles Te sustentarão nas suas mãos, para não tropeçares nalguma pedra.” (Mat. 4:5 e 6). Pode-ríamos nomear essa situação de “o salto para a fama”. Naquele momento, o inimigo vale-se das Escrituras para levar Jesus a provar Sua divindade através de um salto mortal.
Se a sugestão é um absurdo para nós, para Cristo talvez não fosse uma má idéia. Afinal, os judeus não estavam ansiosamente esperando por sinais que identificassem o verdadeiro Messias? Esse seria o ideal, uma fantástica aparição dAquele que viria purificar o templo e o mundo. Um su-per-herói que os libertaria da vergonha e opressão impostas pelo regime romano.
O salto do pináculo do templo foi uma real tentação para Cristo, porque seria, inquestionavelmente, a mais popular maneira de ganhar seguidores. Qualquer pessoa que quisesse instituir um novo reino saberia ser este um caminho bem mais fácil do que por meio de pregos e horrores sofridos na cruz. Jesus sabia disso; porém, mantinha claros diante de Si os reais propósitos da Sua mis-são: obediência até à morte de cruz.
“Levou-O ainda o diabo a um monte muito alto, mostrou-Lhe todos os reinos do mundo e a glória deles, e Lhe disse; Tudo isto Te darei se, prostrado, me adorares.” (Mat. 4:8 e 9). Deparamo-nos agora com a última tentação desta investida satânica contra Jesus. Essa tentação envolvia Seu caráter santo com a ambição humana. O “príncipe do mundo” promete a Cristo todo o poder do mundo se Ele apenas seguir o seu programa maligno. Satanás havia seqüestrado o mundo e agora propõe um meio mais simples e fácil de resgate que a entrega da vida e o derramamento de sangue no Calvário.
Novamente a tentação envolvia um atalho para o cumprimento da missão de Cristo. Numa tentativa bem planejada, o adversário tenta convencê-Lo de que Sua jornada na Terra poderia ser bem mais suave; o caminho percorrido não precisaria ser manchado de sangue e dor. As propostas tinham como objetivo persuadi-Lo a ignorar a necessidade da cruz. Por trás das promessas de futuro brilhante estava a afiada lâmina da intenção satânica de romper o propósito divino de submissão, obediência e humilhação.
Cristo não poderia desligar-Se em mo-mento algum do Pai, ou então o plano da redenção estaria inutilizado.
Entrega absoluta
Como vimos, todas as tentações de Je-sus tinham como objetivo levá-Lo a agir indepentendemente do Pai, através do uso do poder divino em benefício próprio. Os ataques inimigos foram desferidos com um só propósito: afastá-Lo do plano de Deus. As oportunidades de mudanças para um plano mais suave foram constantes.
As tentações do deserto foram uma amostra da totalidade de ciladas que ele enfrentou durante Sua vida terrestre. Nos relatos sagrados, são encontradas outras situações igualmente tentadoras, embora perigosamente até mais sutis. Certa vez, por exemplo, o Mestre viu-Se confrontado com a possibilidade de estabelecer o “reino do lanche”, após alimentar milhares de famintos com a merenda de uma criança (João 6:14). Noutra ocasião, podemos encontrá-Lo recebendo um conselho sincero de Seu bem-intencionado discípulo Pedro. Aos olhos daquele pescador, um homem que desejava instituir um novo reino não podia ter crises de auto-estima e autopiedade, com pensamentos de mártir (Mat. 16:22). A reação de Cristo nos alerta acerca do perigo que envolvia aquela sugestão.
A maior luta de Cristo deve ser a nossa luta: permanecer submissos aos propósitos divinos.
O mesmo que Ele enfrentaria mais tarde quando fosse majestosamente introduzido pelas ruas de Jerusalém (João 12:12) e que seria abertamente revelado através das gotas de sangue no conflito do Getsêmani: o recusar permanecer divinamente rendido. Aquele grito suplicante “faça-se a Tua vontade” (Mat. 26:42) era revelador do propósito mais intenso e ameaçado da vida de Jesus. Na submissão permanente de Sua vontade à do Pai, concentrava Satanás os ataques mais duros. Essa foi a maior tentação enfrentada pelo nosso Salvador.
Por fim, encontramos o clímax de Seu ministério de obediência, quando visualizamos a imagem materializada do Deus esvaziado de Si mesmo sendo esticada e pregada no patíbulo. Ao mesmo tempo em que a Natureza silencia numa escuridão assustadora, percebemos o supremo exemplo de submissão à vontade de Deus que se revela pelo próprio Deus, na pessoa do Seu Filho, pendurado numa cruz.
O que mais impressiona é que a vida de Cristo não foi como a dos perseguidos cristãos primitivos. Sua morte não foi, à semelhança dos mártires, como a de uma vítima indefesa. Esses não tinham condições de luta nem poder para evitar a dor. Mas com Jesus foi diferente. Ele poderia ter escapado. Desde as pedras do deserto até à montanha do Calvário Ele poderia agir poderosamente. Poderia ter matado a fome, assim como poderia ter descido da cruz. Mas esse não era o plano do Pai. Essa não era a condição do nosso resgate. Da luta de Sua própria força divina contra a Sua vida humana de esvaziamento Ele completou o plano da salvação.
Impressiona-nos tamanho espetáculo de amor e submissão. Quando observamos esta realidade de limites práticos na vida de Cristo, somos levados a aceitar Seu imenso exemplo de autocontrole e humildade. Também nos sentimos envergonhados diante do tamanho de nosso desprezo por Ele. Porém esse Cristo Salvador, que nos impressiona, não deve ser apenas admirado. Precisamos voltar à Bíblia e descobrir a complexidade envolvente desta obra de salvação.
A vida de sacrifício que Jesus viveu na Terra não pode ser tomada como exemplo a ser aclamado. Mais do que isso, Seu exemplo precisa ser imitado. Diante do esvaziamento divino, somos impulsionados a reagir e viver como Ele viveu. A maior luta de Cristo tem de ser a nossa luta: permanecer rendidos aos propósitos divinos. Aceitar os planos de Deus e jamais buscar a independência dEle. O abandono de Si mesmo, exemplificado por Jesus, deve ser o modelo para o abandono do nosso próprio eu.
Diante da humilde obediência vivida pelo nosso Salvador, devemos permitir despertar em nós um sentimento de entrega total e absoluta. É a realidade de uma vida dependente de Deus. Um ser humano que vê sua própria vontade ser dissolvida perante o divino Salvador. Como cristãos e ministros do Senhor, não podemos permanecer iludidos de que estamos crescendo espiritualmente, enquanto continuamos satisfazendo nossos impulsos naturais.
O que Deus requer de nós é a mesma atitude de Cristo quando trilhou o mesmo caminho pelo qual passamos agora. O Senhor requer uma entrega total e uma re-núncia incondicional de nosso próprio eu. Enquanto permanecermos confiantes, nos braços divinos, vazios de nossa auto-suficiência egoísta, o Senhor cumprirá em nós e através de nós, o Seu plano salvador.