PRIMEIRA PARTE
A Fonte da Inspiração Agostiniana
Embora Agostinho não fôsse o primeiro pai da igreja a falar na imortalidade da alma, êle é sem dúvida alguma um dos que melhor define essa doutrina para o catolicismo. A fonte de sua inspiração não está, como seria de esperar, na Bíblia, mas sim na filosofia pagã, e especialmente em Platão. O próprio Agostinho nos informa que confiava em “achar entre os platônicos a doutrina mais conforme com nossa revelação,”1 pois sua “filosofia” é a que mais se aproxima da verdade” cristã.2 Chegou até a perguntar se porventura não teria Platão “ouvido o profeta Jeremias,” e se não teria “em suas viagens, lido a Sagrada Escritura.”3 Chega mesmo a falar nas “sacrossantas doutrinas de Platão.”4 Tal era o esforço e o desejo de conseguir uma harmonização do pensamento cristão com o pagão, o que se vê claramente ao estudar o tema da imortalidade da alma. E neste ponto é significativo o fato de que já “antes de sua conversão ao cristianismo havia escrito um livro dando 16 razões para a imortalidade da alma.”5
Que é a Alma?
A definição que Agostinho dá da alma é simples: “É uma substância dotada de razão, destinada a reger o corpo”;6 é um “princípio receptor e universal das sensações.”7
Como podemos notar, tem êle um conceito dualista quanto ao homem, no qual uma das naturezas que o compõem é subjugada à outra. Distingue, além disso, dentro da alma humana duas qualidades essenciais, para poder entender a morte da alma imortal, ou a imortalidade “a seu modo.” Estas são a alma superior ou interior, que está unida a Deus e que se assemelha portanto a Êle, e a alma inferior ou exterior,8 que está destinada a informar os corpos, e se acha condenada a morrer depois do pecado. Esta última governa dois corpos, não segundo sua vontade, mas de acordo com as leis universais.9
Origem e Essência da Alma Humana
Disse Agostinho que Deus criou a primeira alma a Sua imagem, dotada de razão e de inteligência. Criou-a superior à dos animais e inferior aos anjos.10 A natureza da alma não se converte na natureza do corpo, tampouco na de alma irracional, nem delas provém. Tampouco se converte em natureza ou essência de Deus, nem tem nela origem. Deus a criou do nada, ou de uma criatura espiritual.11 A alma tem uma natureza especial e própria, a que Deus lhe conferiu.12 É uma criatura mortal, porquanto se deteriora depois de desprender-se da vida de Deus, mas ao mesmo tempo é imortal, porquanto não pode perder o sentir, pelo que lhe há de ir bem ou mal depois desta vida. É importante, também saber que não mereceu ser encerrada na carne por atos realizados antes da carne.13
Agostinho não sabe se Deus faz as almas dos homens por propagação ou criando-as cada vez, como da primeira vez. Conquanto a idéia que mais lhe agrada seja a criação de cada alma ao nascer, inclina-se pela idéia da propagação. A razão está em que, se Deus cria cada alma no momento de nascer, segue-se então ser inútil o batismo de crianças. Pois a alma é criada sem pecado, e ao batizar uma criança faz-se isso com a finalidade de liberar sua alma do pecado original.14 Contudo, encontra dificuldade em achar na Escritura Sagrada uma afirmação clara quanto a qualquer destas duas possibilidades.15
A alma, continua Agostinho, foi adotada na linhagem de Deus por graça, quanto ao espírito, e não quanto à natureza. Não foi encerrada neste corpo mortal.16 Podemos notar aqui estas duas qualidades da alma, das quais falamos anteriormente. Sòmente a qualidade espiritual da alma foi adotada na linhagem de Deus, e não a inferior. Por meio do espírito a alma remonta a Deus, e esta sua qualidade, segundo Agostinho, foi criada ao mesmo tempo que o corpo.17 Não sabe, porém, se a alma (e pensamos que se refira à alma inferior) antes de sua união com o corpo viveu ou não sàbiamente.18 O homem foi criado com possibilidade de fruir uma imortalidade feliz e eterna ou, pela desobediência, de sofrer um suplício eterno.19 Agostinho nunca soube qual a origem da alma quanto à substância, tampouco se se poderá isso saber nesta vida terrena.20
Aspectos Gerais da Imortalidade da Alma
Como já vimos, Agostinho tem um conceito dualista quanto ao homem. “O homem é alma, é espírito e corpo.”21 Dissemos também que o espírito, em sentido geral, é a qualidade da alma pela qual esta se eleva a Deus. Pois bem: tanto a alma como o corpo viverão eternamente depois da ressurreição. A alma é imortal, e contudo pode morrer. Por esta razão Agostinho fala da imortalidade da alma “a seu modo.” O corpo morre, mas será ressuscitado ao fim do mundo. Daí por diante não morrerá.22 A alma teve comêço, pois foi criada por Deus,23 mas foi dotada de uma fôrça de vida inextinguível, de tal maneira que não possa morrer.24 Depois da morte do corpo a alma tem capacidade de conhecimento, e permanece em lugares ocultos, segundo o disponha Deus.25
“Também os perdidos,” diz Agostinho, “têm corpo, cuja sorte é uma perpétua morte e corrupção. Esta é a segunda morte. A condenação é graduada segundo a medida da culpa, sendo mais leve para as crianças.” De maneira que tanto os bons como os maus terão uma existência sem fim. É claro que a sorte de uns não será a sorte de outros, pois “não se pode duvidar da duração eterna. . . dos castigos do inferno” que terão os maus.26
Imortalidade da Alma “a seu modo”
Agostinho admite que “a Sagrada Escritura se refere com freqüência à morte da alma; por exemplo: ‘Deixai aos mortos que enterrem os seus mortos.’ E contudo, do mesmo modo que morre ao desprender-se da vida de Deus, não deixa de continuar vivendo em sua própria natureza.”27 Se não pudesse morrer, como disse o Senhor, quando nos atemorizava: ‘Temei a quem pode dar à alma e ao corpo a morte do inferno’?… Só uma alma pode contradizer a vida. O Evangelho é vida; a impiedade e infidelidade são morte para a alma. . . Como, pois, morre? Não deixando de ser uma vida, mas sim perdendo a vida. Com efeito, para uma coisa, o corpo, a alma é a vida; mas também, ela, a alma, tem sua vida própria. Observai a ordem das criaturas; a vida do corpo é a alma, a vida da alma é Deus.”28
Vemos aqui outra vez a divisão da alma que supõe Agostinho. A vida do corpo seria a alma inferior, e a vida da alma seria a alma superior. “Por que está morto o corpo? Porque se ausentou a alma, sua vida. . . Por que está morta a alma? Porque a deixou sua vida, Deus.” ‘ É a alma um ser tão excelente, que, mesmo morta ela, todavia é capaz de comunicar ao corpo a vida. . ., mesmo morta pode vivificar a carne.”29 De maneira que a idéia da mortalidade da alma em Agostinho se refere à sua separação de Deus, e não a uma verdadeira morte. Sabemos que vive porque move o corpo, e sabemos que por sua vez está morta porque peca e se separa de Deus.
Demonstração da Imortalidade da Alma
O principal de todos os argumentos de Agostinho para demonstrar a imortalidade da alma de um ponto de vista filosófico é o argumento da verdade. Serve-se também do argumento das artes, que nêle não é original. Em Cícero há pelo menos uma alusão a elas como evidência indireta da imortalidade da alma. Basta saber que é semelhante ao argumento da verdade. Além disso, pretende demonstrar dita imortalidade pela felicidade eterna, e pela fé no Filho de Deus, argumentos que são de ordem teológica. Analisemos três de seus argumentos:
- I. A verdade não pode deixar de existir: “A verdade não pode deixar de existir. . . porque ‘se perece a verdade, não será verdade que a verdade pereceu?’. . . Ora, a verdade imutável e indestrutível está unida à alma como a sujeito próprio. Logo a alma é imortal.”3” Vemos claramente aqui que para Agostinho existe uma unidade inseparável da alma com a verdade. Em que se baseia, para êsse raciocínio? Vejamos:
- 1. Unidade razão-alma: “A razão certamente, ou é a alma, ou está na alma. A razão não é o nada, porque é melhor que o corpo, que tem substância, e portanto não pode ser nada.”31
- 2. Unidade razão-verdade: “A razão é um aspecto da alma pelo qual se intui o verdadeiro por si mesmo, não pelo corpo.”32
- 3. Unidade alma-verdade: “De qualquer modo que se encontre a verdade, não a poderia contemplar a alma por si mesma, senão por uma espécie de união com ela.”33
(Continuará.)
- 1. Santo Agostinho “Contra os Acadêmicos” (CD) Obras Completas de Sto. Agostinho. (Madri, Biblioteca dos Autores Cristãos, 1950-1959), III, 221.
- 2. Santo Agostinho “Cidade de Deus,” (CD), op. cit., Vols. XVI-XVII, 532 e 533.
- 3. Ibid., XVI-XVII, 536.
- 4. Santo Agostinho (CA), op. cit. III, 215.
- 5. Le Roy E. Froom, The Conditionalist Faith of Our Fathers (Washington, Review and Herald Association, 1966). 1072 e 1073.
- 6. Santo Agostinho, “Quantidade da Alma” (CUA), op. cit., III, 215.
- 7. Santo Agostinho, “Santíssima Trindade,” (T), op. cit., V, 517.
- 8. Ibid., V, 653.
- 9. Santo Agostinho, “Do Livre Arbítrio” (LA), op. cit., III, 457.
- 10. Santo Agostinho, (CD), op. cit., 837, 839.
- 11. Santo Agostinho, “Do Gênesis à Letra” (GLE), op. cit., XV, 1059.
- 12. Santo Agostinho, (CUA), op. cit., III, 535.
- 13. Santo Agostinho, “Epístolas” (E), op. cit., XI, 939.
- 14. Santo Agostinho, (GLE), op. cit., XV, 1101.
- 15. Ibid., XV, 1071.
- 16. Santo Agostinho, (E), op. cit., XI, 763.
- 17. Santo Agostinho, (GLE), op. cit., XV, 715.
- 18. Santo Agostinho, (LA), op. cit., III, 287.
- 19. Santo Agostinho, (CD), op. cit., XVI-XVII, 837.
- 20. Santo Agostinho, “Da Alma e Sua Origem,” op. cit. III, 911, 971.
- 21. Ibid., III, 837.
- 22. Santo Agostinho, (T), op. cit., V, 823.
- 23. Santo Agostinho, (CD), op. cit., XVI-XVII, 697.
- 24. Santo Agostinho, “Sermões,” op. cit., X, 193-199.
- 25. Santo Agostinho, “Enquiridião,” op. cit., IV, 617.
- 26. Reinhold Seeberg, Manual de História das Doutrinas, (El Paso, Texas, Casa Bautista de Publicaciones, 1963), I, 358.
- 27. Santo Agostinho, (E), op. cit., XI, 166.
- 28. Santo Agostinho, “Sermões,” op. cit., X, 193-199. 29. Ibid.
- 30. Luís Rey Altuna, A Imortalidade da Alma à Luz dos Filósofos, (Madrid, Editorial Gredos, 1959), 134, 135.
- 31. Ibid., 136.
- 32. Ibid., 136.
- 33. Ibid., 136.