Diz-se que a eclesiologia ou a doutrina da Igreja é a “pedra de toque” ou a prova decisiva do dispensacionalismo.1 Carlos C. Ryrie afirma que a Igreja é distinta e separada de Israel em dois aspectos: 1) na Igreja os gentios são colocados em pé de igualdade com os judeus; e 2) Cristo habita na Igreja como Seu corpo espiritual.

Ele infere que a Igreja era desconhecida nos tempos do Antigo Testamento, pois o apóstolo Paulo a chama de “mistério” (ver Efés. 3:4-6; Colos. 1:25-27) e se refere explicitamente à Igreja de Cristo como “um novo homem” (Efés. 2:15), uma criação que constitui o resultado da morte de Cristo. A Igreja é edificada sobre a ressurreição e a ascensão de Cristo (ver Efés. 1:20-23; 4:7-13) e só se tornou atuante no dia de Pentecostes (ver Atos 2). Por conseguinte, a Igreja não faz parte das profecias do Antigo Testamento e “não está cumprindo as promessas de Israel”. Conseqüentemente, “Israel mesmo precisa cumpri-las, e isso no futuro”.2 A Igreja será arrebatada do mundo antes de Deus lidar novamente com Israel. Ryrie deduz: “A essência do dispensacionalismo, então, é a distinção entre Israel e a Igreja.”3 Ele recorre a I Coríntios 10:32 para confirmar sua tese de que “o Israel natural e a Igreja também são postos em contraste no Novo Testamento”.4

No entanto, a questão não é: O Novo Testamento estabelece um contraste entre a Igreja e o “Israel natural”?, e, sim: É a Igreja chamada “o Israel de Deus” no Novo Testamento, e é apresentada aí como o novo Israel, o único herdeiro de todas as bênçãos do concerto prometidas por Deus para o presente e para o futuro? Outras questões que devem ser examinadas são as seguintes: Quando, exatamente, começou a Igreja de acordo com Cristo? E como Cristo e os escritores do Novo Testamento aplicam realmente os antigos concertos de Deus com Abraão, com Israel e com Davi?

O Conceito do Remanescente no Antigo Testamento

A teologia dispensacional aceita o fato de que o Antigo Testamento faz distinção entre o Israel nacional e o Israel espiritual dentro dessa nação. Ryrie declara: “Esta espécie de distinção dentro da nação foi feita muitas vezes no Antigo Testamento.”5 Esta é realmente uma distinção bíblica de profunda significação teológica. Os profetas expressaram essa distinção em sua idéia acerca do “remanescente”, o âmago e centro de suas perspectivas escatológicas.

Amós foi o primeiro profeta que rejeitou a idéia popular de que Israel como um todo nacional seria salvo no Dia do Julgamento do Mundo por Yahweh (ver Amós 3:2; 9:1-4, 9 e 10). Ele realçou a condição fundamental da resposta religiosa de Israel às promessas do concerto: “Buscai ao Senhor, e vivei, para que não irrompa na casa de José como um fogo que a consuma.” Amós 5:6.

Só um “remanescente” do Israel nacional sobreviveria ao futuro juízo de Deus (ver Amós 3:12; 5:15). Esse “restante de José” seria portanto um remanescente religiosamente fiel.

Em Jerusalém, o profeta Isaías anunciou igualmente que Israel, assim como outras nações, incorreria na justiça punitiva do Senhor por causa de sua apostasia religiosa de Yahweh e devido a sua injustiça social (ver Isa. 10). No entanto, Deus salvaria misericordiosamente “o remanescente de Israel”, “a santa semente” em Sião nos fogos purificadores do juízo (ver Isa. 1:24-26; 4:2 e 3; 6:13; 10:20-22). Este remanescente santo está inscrito “para a vida” (Isa. 4:3), como o herdeiro das promessas de eleição, porque é um remanescente que confia e crê inteiramente em Yahweh (ver Isa. 10:20 e 21; 30:15).

Tanto Amós como Isaías revelam um surpreendente mas essencial característico das promessas ao “remanescente” de Israel: Um remanescente de gentios de todas as nações que cressem em Yahweh também seria atraído para o círculo do remanescente escatológico de Israel e da casa de Davi: “Naquele dia levantarei o tabernáculo caído de Davi, repararei as suas brechas; e, levantando-o das suas ruínas, restaurá-lo-ei como fora nos dias da antiguidade; para que possuam o restante de Edom e todas as nações que são chamadas pelo Meu nome, diz o Senhor, que faz estas coisas.” Amós 9:11 e 12.

Amós predisse claramente que pela soberana vontade e determinação de Yahweh um remanescente de não israelitas, provenientes de Edom e de todas as nações, também participará da promessa do concerto de Davi.6 Tais gentios, assim como Israel, seriam chamados pelo honroso nome de Yahweh, e pertenceriam portanto ao povo de Yahweh (comparar com Deut. 28:10).

O profeta Isaías revela ainda mais como a universal procura de todos os gentios por parte de Deus finalmente se cumprirá por meio de um novo Israel cujo característico essencial não será a descendência étnica de Abraão (o sangue de Abraão), mas a fé, a adoração do Senhor em espírito e em verdade. Isaías contempla um futuro — após o exílio babilônico — em que duas classes de pessoas, estrangeiros e eunucos, que estavam proibidos de entrar na assembléia que prestava culto a Yahweh, segundo a lei de Moisés (ver Deut. 23:1-3), terão o direito de adorar no novo templo no Monte Sião, se aceitarem a Yahweh e Seu concerto com Israel. “Também os levarei ao Meu santo monte, e os alegrarei na Minha casa de oração; os seus holocaustos e os seus sacrifícios serão aceitos no Meu altar, porque a Minha casa será chamada casa de oração para todos os povos.” Isa. 56:7; comparar com 45: 20-25.

Quando os gentios, pela fé e pela obediência, se unirem ao Senhor (ver Isa. 56:3), o Deus de Israel dará a esses estrangeiros no meio de Israel “um memorial e um nome melhor do que filhos e filhas; um nome eterno” (Isa. 56:5 e 6; comparar com 56:3). Em outras palavras, os gentios que cressem desfrutariam os mesmos direitos e esperanças das promessas do concerto que os israelitas crentes. O Deus de Israel não restringirá Sua restauração de Israel ao povo judeu, mas também incluirá gentios crentes no Israel posterior ao exílio babilônico. “Assim diz o Senhor Deus que congrega os dispersos de Israel: Ainda congregarei outros aos que já se acham reunidos.” Isa. 56:8.

Em outras palavras, o Deus de Israel revela claramente que Ele também reunirá crentes gentios no aprisco de Israel.

É evidente que Isaías confere ao “remanescente” profundo sentido espiritual. O erudito em assuntos do Antigo Testamento, Edmond Jacob, explica: “Em Isaías o remanescente é essencialmente distinto de uma realidade puramente política; é essencialmente um Israel Kata pneuma [segundo o Espírito].”7

O erudito no Antigo Testamento, Claus Westermann, afirma em sua conclusão de Isaías 56: “A qualidade de membro da comunidade que adora a Yahweh agora se baseia na resolução, na livre aceitação deste Deus e de Seu culto. Não é mais considerada em termos nacionais, e, sim, individuais. O povo escolhido transformou-se na comunidade que confessa…. Já mesmo aqui encontramos importantes elementos do conceito de comunidade do Novo Testamento… Ele também ‘congrega’ Israel dentre os que até agora não podiam pertencer a ele.”8

Gerhard F. Hasel, em sua dissertação The Remnant (“O Remanescente”), considera o remanescente em Isaías como “elemento-chave da teologia” desse profeta e deduz: “[Isaías] não conhece a distinção entre um remanescente ‘secular-profano’ e ‘teológico’.” — Pág. 401.

O profeta Miquéias une a promessa de um “restante de Israel” (Cap. 2:12) — o novo povo de Deus — com a promessa do Messias que procederia de Belém (cap. 5:2). Ele congregará o remanescente de Israel “como ovelhas no aprisco, como rebanho no meio do seu pasto” (Cap. 2:12). “Ele Se manterá firme, e apascentará o povo na força do Senhor.” Cap. 5:4.

Em conclusão, sempre que os profetas do Antigo Testamento retratam o escatológico remanescente de Israel, ele é caracterizado como fiel comunidade religiosa, que adora a Deus com um coração novo e de acordo com o “novo concerto” (ver Joel 2:32; Sof. 3:12 e 13; Jer. 31:31-34; Ezeq. 11:16-21). Este remanescente fiel do tempo do fim tornar-se-á qual testemunha de Deus entre todas as nações para congregar também não israelitas, sem levar em conta sua origem étnica, no verdadeiro culto e reino do Senhor (ver Zac. 9:7; 14:16; Isa. 66:19; Dan. 7:27; 12:1-3).

O quadro total do remanescente escatológico do Antigo Testamento revela que as bênçãos do concerto de Israel como um todo cumprir-se-ão, não no descrente Israel nacional, mas somente naquele Israel que é fiel a Yahweh e confia no Seu Messias. Este remanescente de Israel incorporará os fiéis remanescentes dentre todas as nações gentílicas.

Permanece a questão: Como este Israel profético encontrará o seu cumprimento histórico? Isto só se dará depois do segundo advento de Cristo, durante o milênio? O que o Novo Testamento revela sobre o remanescente do Antigo Testamento?

O Remanescente do Novo Testamento

Quanto ao cumprimento escatológico das profecias sobre o remanescente no Antigo Testamento precisamos perguntar primeiro ao Senhor Jesus Cristo como Ele, o verdadeiro Intérprete, compreendia e interpretava as promessas do concerto de Israel.

Embora Cristo dissesse que Ele só foi enviado às ovelhas perdidas da casa de Israel (ver S. Mat. 15:24; cumpre notar, porém, que S. Mar. 7:27 diz “primeiro”) e embora Ele só enviasse primeiro Seus doze apóstolos às ovelhas perdidas da casa de Israel (ver S. Mat. 10:5 e 6), Sua perspectiva do futuro abrangia a missão deles aos gentios (ver S. Mat. 10:18; S. Mar. 13:10). Cristo até declarou explicitamente que Ele viera juntar os crentes gentios ao rebanho de Israel. Referindo-Se inequivocamente à promessa de Isaías 56:8, Ele anunciou: “Ainda tenho outras ovelhas, não deste aprisco; a Mim Me convém conduzi-las; elas ouvirão a Minha voz; então haverá um rebanho e um Pastor.” S. João 10: 16. A NSB reconhece que as “outras ovelhas” são os gentios de Isaías 56:8.

Como Pastor messiânico, Cristo declara aí que Ele foi enviado para cumprir as promessas do concerto referentes ao ajuntamento de Israel.9 Como o Messias, Ele veio reunir Israel a Si mesmo (ver S. Mat. 12:30), e, mais do que isso, reunir os gentios e todos os seres humanos a Si mesmo (ver S. João 12:32). Isto requeria uma decisão de fé nEle como o Messias de Israel. Para esta missão universal Ele chamou de Israel Seus doze apóstolos, os quais, em seu número escolhido, claramente representam as doze tribos de Israel. Ordenando oficialmente doze discípulos como Seus apóstolos (ver S. Mar. 3:14 e 15), Cristo constituiu um novo Israel, o remanescente messiânico dessa nação, e chamou-lhe Sua Igreja (ver S. Mat. 16:18). Na ordenação dos Doze, Cristo fundou Sua Igreja como novo organismo, com sua própria estrutura e autoridade, dotando-a com “as chaves do reino dos Céus” (S. Mat. 16:19; comparar com 18:17). Ele designou Seus doze apóstolos para juízes das “doze tribos de Israel” no mundo por vir (S. Mat. 19:28; S. Luc. 22:30). Disse Ele a essa Igreja: “Não temais, ó pequenino rebanho; porque vosso Pai Se agradou em dar-vos o Seu reino.” S. Luc. 12:32; ver Dan. 7:22 e 27.

F. F. Bruce afirma que “o ato de Jesus chamar os discípulos ao redor de Si para formar o ‘pequenino rebanho’ que devia receber o reino… O distingue como o Fundador do novo Israel.”10

G. F. Hasel deduz o seguinte da pregação de fé e arrependimento por parte de Jesus como condição para entrar no reino de Deus (ver S. Mar. 1:15): “Dificilmente se pode imaginar outra coisa que não seja o começo do ajuntamento de um remanescente de fé dentro do âmbito das esperanças do remanescente nas profecias do Antigo Testamento.”11

Cristo estabelece Sua Igreja, não ao lado de Israel, segundo assevera o dispensacionalismo, mas como o fiel remanescente de Israel que herda todas as promessas do concerto, incluindo a promessa da Nova Terra (não apenas a Palestina). (Ver S. Mat. 5:5; comparar com Rom. 4:13; II S. Ped. 3:13.) A Igreja, da maneira como é em Cristo, habitará finalmente junto com o verdadeiro Israel da velha dispensação numa só e mesma Nova Jerusalém (ver Apoc. 21). Os cristãos gentios entrarão nessa cidade de Deus pelas doze portas em que estão inscritos os nomes das doze tribos de Israel (ver Apoc. 21:12). Contudo, a cidade tem muros com fundamentos nos quais estão inscritos os nomes dos doze apóstolos de Cristo (ver Apoc. 21:14). “O que Deus ajuntou não o separe o homem.”

Jesus revelou a verdade apocalíptica de que Sua Igreja herdaria o reino juntamente com Abraão, Isaque e Jacó. “Digo-vos que muitos virão do Oriente e do Ocidente e tomarão lugar à mesa com Abraão, Isaque e Jacó no reino dos Céus. Ao passo que os filhos do reino serão lançados para fora, nas trevas; ali haverá choro e ranger de dentes.” S. Mat. 8:11 e 12; comparar com S. Luc. 13:28 e 29.

Da posição de Cristo aprendemos que Sua Igreja não é separada do Israel de Deus nos concertos do Senhor, porque é o verdadeiro remanescente de Israel, o Israel messiânico, o herdeiro de Deus. A Igreja de Cristo só estará eternamente separada do Israel natural que rejeita a Cristo.

A eleição e a ordenação dos doze apóstolos por parte de Cristo refuta o conceito de que Sua Igreja só começou a funcionar no dia de Pentecostes. A Igreja já existia, pois os novos crentes eram explicitamente acrescentados a ela (ver Atos 2:41). A mais clara evidência de que a Igreja não era uma entidade que não fora prevista e predita é o fato de que tudo que aconteceu no Pentecostes constituía um direto cumprimento da profecia. Pedro cita Joel 2:28-32 (ver Atos 2:16 em diante) e acrescenta: “Para vós outros é a promessa, para vossos filhos [judeus], e para todos os que ainda estão longe [gentios], isto é, para quantos o Senhor nosso Deus chamar.” Atos 2:39.

Ele explica mais adiante: “E todos os profetas, a começar com Samuel, assim como todos quantos depois falaram, também anunciaram estes dias.” Atos 3:24. Em outras palavras, desde o Pentecostes Deus estava efetuando o cumprimento de todas as profecias de Israel acerca da exaltação do Messias à destra de Deus (ver Atos 2:33) e do ajuntamento messiânico do Israel de Deus. Portanto, a Igreja está claramente profetizada nas promessas do remanescente do Antigo Testamento, segundo é confirmado por estes e outros escritos do Novo Testamento, 

Referências

1. C. C. Ryrie. Dispensationalism Today (Moody Press, 1965), págs. 132 e 133.

2. Idem. The Basis of the Premillennial Faith (Neptune. N. J.: Louizeaux Bros.. 1966). pág. 126.

3. Idem, Dispensationalism Today (Moody Press, 1965), págs. 46 e 47.

4. Idem. pág. 138

5. Ibidem.

6. Ver G. F. Hasel. The Remnant. The History and Theology of the Remnant Idea from Genesis to Isaiah (Andrews University Mon. Vol. V, 1980, 3ª ed.), págs. 207-215, para uma exposição mais pormenorizada de Amós 9:11 e 12.

7. E. Jacob, Theology of the Old Testament (Nova Iorque: Harper & Row, 1958), pág. 324.

8. C. Westermann. Isaiah 40-66. A Commentary (The OT Library. Filadélfia: The Westminster Press. 1977), págs. 313. 314 e 315.

9. Ver E. Achtemeier, The Old Testament and the Proclamation of the Gospel (Filadélfia: The Westminster Press, 1973), págs. 93 e 94.

10. F. F. Bruce, em The New Bible Dictionary (Grand Rapids. MI: Eerdmans. 1979), pág. 588.

11. G. F. Hasel, no artigo “O Remanescente”, que será publicado em The International Standard Bible Encyclopedia. Seção III C 2. Alguns artigos desta série se baseiam no livro do autor, Christ in Armageddon, publicado em 1982 pela Pacific Press. Mountain View. Califórnia.

Dr. Hans K. LaRondelle, professor de Teologia na Universidade Andrews.