Devem os cristãos dedicar-se à proclamação de salvação para o mundo ou às questões paramente sociais?
Diante de nós, há uma questão que precisa ser discutida. Para uns, ela é básica; para outros, ilusória. A questão é a seguinte: Deveria a missão da igreja focalizar a evangelização e a salvação das pessoas ou tratar dos problemas da sociedade aqui e agora? Estabelecida dessa forma, essa pergunta só tem uma resposta: a missão deve focalizar a salvação, não a sociedade.
Entretanto, há um cheiro de falácia quando estabelecemos a questão nesses termos, ou seja, colocando salvação e sociedade em lados opostos. Elas devem ser colocadas em justaposição, porque a missão de Cristo, o que Ele realiza no mundo, deve tratar com salvação e sociedade. “O único remédio para os pecados e sofrimentos dos homens é Cristo. Unicamente o evangelho de Sua graça pode curar os males que amaldiçoam a sociedade.”1 Assim, devemos focalizar a salvação e a sociedade.
Existem dois equívocos populares. O primeiro deles é a idéia de que moralidade está limitada aos assuntos comportamentais, pessoais e privados. O segundo é o pensamento de que os cristãos não necessitam se preocupar seriamente com questões públicas, seculares, políticas ou econômicas.
Os cristãos acreditam em valores morais, sendo que a dignidade e a valorização de cada ser humano criado à imagem de Deus são os mais importantes. Acaso, não flui dessa crença algum tipo de responsabilidade e moralidade social? Assim, não devem as decisões governamentais ter pelo menos alguma ligação com princípios morais, ou estar fundamentadas neles? Além disso, não vivemos nós em um mundo no qual seus componentes têm se tornado cada vez mais interdependentes em sua natureza comum? E interdependência não envolve uma dinâmica moral?
O exemplo de Cristo
Nesse assunto, o exemplo de Jesus é de importância típica. Por um lado, Ele jamais formulou uma plataforma sociopolítica sobre a qual a igreja deveria se levantar e realizar seu programa. As tentações no deserto foram, em alguma extensão, de natureza política, mas Ele as resistiu. Em pelo menos três oportunidades, Ele teve chance de Se tomar líder, por meio de uma espécie de golpe de estado: ao alimentar a multidão na Galiléia (Lc 9:13-17), na entrada triunfal em Jerusalém (Lc 19:30-44) e ao advertir Pedro sobre o uso da espada, no Gestsêmani, dizendo ter legiões divinas à Sua disposição (Mt 26:51-53). Contudo, rejeitou o populismo e o reinado zelota.
Por outro lado, os ensinamentos de Jesus têm um significativo formato social. Naquele que algumas pessoas têm considerado ser o discurso inaugural de Seu ministério (Lc 4:16-21), Cristo, citando Isaías 61, apresenta a tarefa do Messias como sendo social (ademais, o evangelho deve ter uma dimensão social): evangelização dos pobres, liberdade para os cativos e oprimidos, dar vistas aos cegos. E Seu ministério deixa bem claro que Ele não estava falando exclusivamente de pobreza, cegueira e opressão espirituais.
Então, não é surpreendente que os pioneiros adventistas tenham tido uma agenda social, embora um tanto limitada. Essa pequena escala de ação foi quase inevitável, por causa do tamanho da igreja e seus limitados recursos. Eles se opuseram à escravidão, promoveram reforma educacional e de saúde, defenderam a temperança, envolvendo-se nas causas antialcoólicas e antitabágicas. Também mostraram interesse pelas necessidades de crianças e mulheres.
Hoje, a igreja é muito grande; e os recursos institucionais e financeiros, maiores ainda. Em alguns países, os adventistas se tornaram um significativo segmento populacional. Alguns irmãos têm se tornado líderes de Estado. Renunciar à responsabilidade social seria uma atitude irresponsável. A Agência Adventista de Desenvolvimento e Recursos Assistenciais, Adra, tem se tornado o maior instrumento de trabalho social adventista no mundo.
Pobreza e fome são problemas diários, com milhares de crianças morrendo cada dia, por causa de desnutrição. A cada 30 segundos alguém morre de malária na África. O aquecimento global e a poluição são grandes problemas, junto com a destruição das fontes de energia renovável. Os adventistas têm adotado e defendido há muito tempo um estilo de vida simples, que ajuda a reduzir alguns desses problemas. Mas, devemos encampar vigorosamente a luta contra a aids, e assumir o devido lugar na promoção dos direitos humanos e contra a discriminação de vários grupos, incluindo mulheres e deficientes.
Sendo a pacificação outra causa essencial, escolas adventistas têm sido convidadas a estabelecer anualmente uma semana para enfatizar, através de várias atividades, a necessidade de paz, respeito, resolução de conflitos. É nossa cooperação para a cultura de harmonia social.
Não podemos tratar efetivamente com a pobreza, fome e discriminação, apenas oferecendo recursos e ajuda aos que sofrem. Também é necessário trabalhar para mudar as causas. Felizmente, a Adra tem compreendido esse ponto. Tal posição, entretanto, inevitavelmente requer contatos com a esfera política.
A criação e o homem
Em primeiro lugar, a responsabilidade social tem como sua base a doutrina da Criação. Deus voluntariamente criou, do nada, um Universo distinto dEle mesmo e estabeleceu seres humanos como Seus mordomos. Também encontramos responsabilidade inerente na doutrina do homem. Os parâmetros do serviço social da igreja residem dentro da natureza dos humanos. Com seres humanos criados à imagem de Deus e maculados pelo pecado, a dignidade dos filhos de Deus só é possível através do processo de salvação. Tal apreciação vincula ética e responsabilidade social.
O conceito cristão de que os seres humanos não são destroços jogados ao mar do tempo, mas pessoas com potencial para um futuro radiante, confere energia e propósito à sua missão. Como seu Senhor, o discípulo de Cristo deve discernir em todo ser humano “infinitas possibilidades”.2
“Os cristãos devem penetrar e permear a sociedade secular”
Enquanto a responsabilidade social repousa nas doutrinas da Criação e do homem, o princípio soteriológico provê sua teologia. Quando a igreja e seus membros se relacionam com a sociedade, a salvação, como propósito final, deve ter o domínio. A responsabilidade social cristã não resulta simplesmente de impulsos humanitários, embora isso também esteja presente. Mas, isso emerge de um nível mais profundo, o desejo de que todos “tenham vida e a tenham em abundância” (Jo 10:10).
Essa plenitude de vida envolve conversão, reconciliação e fé, ou, numa palavra, salvação. Mas também implica um viver mais saudável e mais feliz. As virtudes cristãs têm implicações sociais, e assim o cristianismo pode ser identificado como religião social. Crenças religiosas inevitavelmente modelam visões socioeconômicas e ações políticas. Valores religiosos devem ter, e sempre terão, formato religioso.
Evangelismo e responsabilidade social
Em vista da corrente tendência de envolvimento político da igreja, alguém pode perguntar: Qual é a relação entre evangelismo e responsabilidade social? Uma visão tradicional iguala missão com evangelismo. Outra visão coloca o evangelismo no fogo, dando-lhe a pejorativa conotação de proselitismo, e se concentra apenas em seu aspecto social.
A visão bíblica de missão contempla-o como serviço em palavras e ações. Nesse conceito de serviço, existe uma síntese entre evangelismo e atividade social. John Sttot apresentou três maneiras de relacionar evangelismo e testemunho social: (1) Ação social como “significado de evangelismo” (preparatória para a evangelização); (2) ação social como “manifestação”, aspecto ou parte “do evangelismo”; e (3) ação social como “parceira”, ou atividade paralela, “do evangelismo”.3
A terceira forma parece a mais correta e é apoiada por Sttot. Ela apresenta o evangelismo e a ação social como necessários. Apesar do apoio mútuo, eles são aspectos separados da missão e, em algum momento, a prioridade imediata poderá diferir. Por exemplo, pense no homem ferido na estrada de Jericó, na parábola do bom samaritano. Qual era a prioridade imediata naquela situação: cuidado médico ou estudo bíblico sobre o estado dos mortos?
A parte da salvação ou serviço é prover os seres humanos com um senso de significado e propósito, despertando-os para o fato de que não estão destinados a viajar pela vida, seja ela curta ou longa, em direção à insignificância ou lugar nenhum. Necessitamos imprimir em homens e mulheres uma razão de ser. Devemos avançar além do evangelismo individual, embora ele seja preponderante, e aplicar o poder transformador do evangelho à sociedade. A metáfora que Jesus utiliza em Mateus 5, sobre a mudança construída pela missão cristã, inclui sal e luz. Isso significa que os cristãos devem penetrar e permear a sociedade secular, isto é, não cristã. Se os cristãos permanecem no saleiro ou escondidos na segurança da fortaleza da igreja, eles são de pouca utilidade.
Acaso, não implica a metáfora do sal e luz que os cristãos podem mudar o ambiente deteriorado, decadente e escuro, melhorando a sociedade? Não estamos falando sobre o evangelho social, pois sua fragilidade e falácia é que ele reclama uma sociedade perfeita aqui e agora. Entretanto, nós podemos melhorar a sociedade e sua composição corrupta.
Os cristãos e a política
Com tais questões diante de nós, não podemos evitar o espinhoso tema dos cristãos e a política. O perigo da política é que ela tende, se não formos cuidadosos, a fazer o mundo nosso tudo. O ambiente da política raramente, talvez nunca, pode ser feito verdadeiramente cristão. Imaginar que padrões cristãos, que são mais elevados que os aceitos pela sociedade, podem ser aplicados com êxito ao governo e sociedade em geral, é algo fora da realidade.
É possível aplicar os princípios do Sermão da Montanha na área da política? O amor não pode ser legislado ou institucionalizado, nem pode o egoísmo – raiz da maioria dos males sociais – ser erradicado por projetos de lei, leis e votos, mas somente através da submissão a Cristo. No que tange à intemperança, Ellen White diz que “há uma causa para a paralisia moral” afligindo a sociedade quando leis sustentam males que jazem no próprio fundamento do sistema legal de um país. Assim, é irresponsabilidade dos cristãos simplesmente “deplorar os erros que eles sabem existir, mas considerar-se livres de qualquer responsabilidade no assunto. Isso não pode ser. Todo indivíduo exerce influência na sociedade”.4 A lógica nos permite extrapolar o pensamento de aplicá-lo através de paralelismo a outras correspondentes situações atuais.
Em se tratando de política, existem pelo menos três problemas e dois perigos. Entre os problemas estão: (1) Compromisso; (2) conveniência e (3) padrões cristãos vistos como irreais. Os dois perigos são: (1) Tentativa da Igreja em beatificar a sociedade e o Estado; e (2) tentativa da sociedade em politizar a Igreja, de tal modo que a fé cristã seja interpretada em termos de valores políticos. Assim, temos uma asa secular e socialista, e outra asa radical, facilitando a penetração de quaisquer valores na igreja e dificultando o melhor testemunho.
Aqui a separação entre Igreja e Estado entra na moldura. Seu propósito não é excluir a voz da moralidade – cristianismo, se você desejar – do debate público. Tal separação provê o contexto de liberdade religiosa, de modo que os aspectos morais da religião possam ser livremente expressos e testados sem discriminação, empecilhos ou favoritismo.
Os cristãos devem participar no fórum público, oferecendo uma significativa visão ética. Sim, a Igreja deve atuar separada do Estado, mas não alienada ou indiferente à sociedade. Os líderes religiosos devem andar cuidadosamente e de modo circunspecto na área pública. A política não pode ser identificada como evangelho; nem o evangelho, como política. Muito freqüentemente, a política é poluída; mesmo corrupta. Em seu melhor, é ambivalente. Os cristãos podem ser facilmente contaminados, e a igreja pode correr o risco de perder o respeito e a aura de virtude, quando se envolvem muito na política. A igreja pode ser vista, ou realmente se tornar, como uma facção a serviço de interesses seculares.
Ao mesmo tempo, os cristãos podem desempenhar um relevante papel, embora difícil, nos negócios públicos. Quando deveriam eles falar e agir na sociedade? Sugiro algumas situações, embora correndo o risco de errar para o lado conservador:
- • Quando as questões exijam respostas morais claras.
- • Quando direitos humanos básicos estão em jogo.
- • Quando a liberdade religiosa é ameaçada.
- • Quando está envolvida a salvação individual.
- • Quando os cristãos refletem uma visão unida, opinião bem pensada.
- • Quando há razoável expectativa de resultados positivos da intervenção, ou pelo menos de alguma melhora resultante.
Esperança e serviço
Tendo afirmado a total importância da dimensão salvífica, transcendente, necessitamos admitir que, como cristãos, às vezes temos nos comportado com se tivéssemos um olho cego às realidades de opressão, exploração de trabalhadores, mulheres e dos menos favorecidos, racismo, e outras práticas discriminatórias. Contudo, a esperança escatológica do adventismo deve aumentar nosso serviço à sociedade e nos tomar mais sensíveis às necessidades gritantes dos nossos semelhantes. Como disse o Pastor Jan Paulsen, presidente mundial da Igreja Adventista do Sétimo Dia, “ainda não somos criaturas habitando um ambiente espiritual. Devemos estar interessados em tudo o que modela o modo como vivemos, e devemos estar preocupados com o bem-estar do nosso planeta”.5
Em essência, a responsabilidade da igreja em relação ao mundo consiste em preparar homens e mulheres para o encontro com seu Deus, no breve retorno do Senhor. Isso não significa que os cristãos que aguardam o segundo advento de Cristo devem viver sonhando, alienados e inativos, com a utopia de um piquenique no Céu. Os seguidores de Jesus necessitam hoje, talvez mais do que nunca, concentrar seus esforços, sendo “solícitos na prática de boas obras … excelentes e proveitosas aos homens” (Tt 3:8). Esses “homens” representam a sociedade. Tal estilo de vida, generoso na distribuição de bênçãos, inclui proclamar salvação e promover o bem-estar social.
Referências:
- 1 Ellen G. White, Parábolas de Jesus, p. 254.
- 2 ______________, Educação, p. 80.
- 3 John Sttot, Christian Mission in the Modem World (Londres: Falcon Books, 1975), p. 26-28.
- 4 Ellen G. White, “Temperance and the license law”, Adventist Review and Sabbath Herald, 8/11/1881.
- 5 Ray Dabrowski, ed., Atatements, Guidelines, and Other Documents (Nampa, ID: Pacific Press Publishing Association, 18/4/2002), p. 78.