As impressões dos filhos de pastor em relação à espiritualidade e ao ministério
Danny Bravo
Desde minha infância, a história do dilúvio (Gn 6–9) ocupa um lugar especial no meu coração. Não só pela grandiosidade dos fatos da narrativa, mas pela variedade de aplicações derivadas de seu estudo. Talvez seja um dos episódios que melhor revelem o Deus do juízo e da graça, do castigo e da misericórdia, da destruição e da salvação. Em apenas quatro capítulos, encontramos aspectos teológicos importantes a respeito do juízo (Gn 6:5-8), da aliança (Gn 9:8-17), da porta da graça (Gn 7:10, 16), do casamento (Gn 6:1, 2) e até mesmo da alimentação correta (Gn 7:2; 9:3, 4). Além disso, é possível identificar lições aplicadas ao ministério pastoral.
Apesar de Pedro se referir a Noé como “pregador da justiça” (2 Pe 2:5), o relato bíblico parece limitar a missão do patriarca à construção da arca. Naturalmente, a enorme embarcação em terra seca anula qualquer possibilidade de indiferença ao que estava por vir. Contudo, Ellen White apresentou alguns detalhes da atividade evangelística de Noé. “Ao começar a construir aquele imenso barco em terra seca, vinham de todos os lados multidões para ver a estranha cena e ouvir as palavras sinceras e fervorosas daquele distinto pregador. Cada batida desferida na arca era um testemunho para o povo. Muitos, a princípio, pareceram receber a advertência; contudo, não se voltaram para Deus com verdadeiro arrependimento. […] Alguns ficaram profundamente convencidos e teriam atendido às palavras de aviso, mas havia tantos para zombar e ridicularizar que eles partilharam do mesmo espírito.”1
Entre marteladas e argumentos, Noé pregou e apelou ao longo de décadas. Gerações ouviram sua mensagem, mas no dia de entrar na arca, quantos deles entraram? Quantos foram convencidos? Quantos abandonaram seus pecados? Quantos aceitaram o convite? Quantos foram convertidos? Nenhum! Do ponto de vista estratégico e prático do trabalho pastoral, Noé foi o pregador mais fracassado da história. Contudo, a Bíblia o apresenta como um dos heróis da galeria da fé. Por quê?
Gênesis 7:11 a 13 narra a entrada de Noé na arca e o início do dilúvio. Um detalhe chama atenção no texto. “Nesse mesmo dia entraram na arca Noé, os seus filhos Sem, Cam e Jafé, a mulher dele e as mulheres dos seus filhos” (v. 13). Em Hebreus 11:7, há um eco desse verso que ajuda a entender o que fez de Noé um patriarca destacado na história sagrada. “Pela fé, Noé, divinamente instruído a respeito de acontecimentos que ainda não se viam e sendo temente a Deus, construiu uma arca para a salvação de sua família.”
Observe que o sucesso ministerial de Noé não foi medido por pessoas convertidas, mas pela salvação de sua família. É relevante destacar que nessa ocasião seus filhos já eram adultos, responsáveis e casados. Sem, por exemplo, tinha 98 anos (Gn 11:10). Outro detalhe pertinente é que o Senhor não falou com a família de Noé, apenas com o patriarca (Gn 6:13; 7:1). As pessoas acharam que Noé estava louco, mas por intermédio dele sua família creu em Deus. Noé converteu sua casa. Seu mundo estava na arca. Do ponto de vista divino, Noé cumpriu sua missão.
Primeiro campo missionário
Quase 400 anos depois, Deus novamente derramou Seus juízos sobre a Terra na cidade de Sodoma (Gn 18–19). A maldade humana havia se tornado insustentável, e o Criador mais uma vez buscou salvar o remanescente. Enquanto Noé ouviu a voz de Deus, Ló foi agraciado com a visita de dois anjos em forma humana. Ele foi alertado pelos mensageiros celestiais de que a cidade seria destruida e sua missão era salvar sua casa (Gn 19:12, 13). Apesar das similaridades com a experiência de Noé, a narrativa tem um desfecho tragicamente distinto. Os genros de Ló acharam que se tratava de uma brincadeira e não abandonaram a cidade (Gn 19:14); sua esposa saiu arrastada, porém manteve seu coração ligado à cidade e acabou virando uma estátua de sal (Gn 19:26); e apesar de terem sobrevivido, a conduta de suas filhas revela que elas haviam sido tão corrompidas pelo pecado que se envolveram em uma trama de incesto e estupro (Gn 19:30-36). Portanto, há uma clara diferença entre Noé e Ló: ambos receberam a revelação divina, foram escolhidos para ser instrumentos de salvação, mas somente Noé era referência espiritual em sua casa. Somente Noé viu a salvação de sua família, porque ela confiava no relacionamento que ele tinha com Deus.
Indepentendemente de nossa função na igreja, temos metas a ser cumpridas, mensagens a ser pregadas e pessoas a ser alcançadas. Temos nos capacitado cada vez mais para cumprir o honroso chamado que o Senhor nos fez. No entanto, precisamos constantemente nos perguntar: que tipo de pastores somos em casa? Que testemunho temos dado à nossa esposa? Que referência temos sido aos nossos filhos? Quem tem entrado na arca conosco?
Ellen White escreveu algumas vezes sobre esse tema. Em uma delas afirmou: “Especialmente os servos de Deus devem governar a própria família, mantendo-a em boa sujeição. Vi que eles não estão habilitados para julgar ou decidir os negócios da igreja, a menos que possam governar bem a própria casa. Devem ter primeiro ordem em casa, e então seu juízo e influência terão peso na igreja.”2
Em outra ocasião, fez uma forte advertência aos pastores: “Coisa alguma pode desculpar o pastor de negligenciar o círculo interior, pelo mais amplo círculo externo. O bem-estar espiritual de sua família vem em primeiro lugar. No dia do final ajuste de contas, Deus há de perguntar o que ele fez para atrair para Cristo aqueles que tomou a responsabilidade de trazer ao mundo. O grande bem, feito a outros, não pode cancelar o débito que ele tem para com Deus quanto a cuidar dos próprios filhos.”3
Nosso primeiro campo missionário deve ser o lar. Corremos o grave risco de presumir que nossos filhos tenham uma fé automática, pelo simples fato de terem nascido em uma família pastoral. Sabemos que não é assim. A fé não é hereditária, tampouco a vocação ministerial. Todos nós um dia escolhemos seguir a Cristo. De forma especial, um dia escolhemos aceitar o chamado e viver para o ministério. Enfatizei o verbo escolher porque essa é a maior carência de muitos filhos de pastor com quem convivi. Devo mencionar que também faço parte desse grupo, e por isso destaco a importância do tema.
Todo filho de pastor passa por cobranças e carrega grandes responsabilidades, à semelhança de seu pai. É verdade que ele também desfruta dos benefícios de pertencer a uma família pastoral. Isso, porém, com uma diferença: o filho de pastor não escolhe sua condição. Na maioria dos casos, ele apenas descobre o chamado que lhe foi imposto enquanto cresce. Como essa dinâmica afeta sua experiência de fé? Qual a visão de Deus de alguém que conhece “os bastidores da igreja” desde que nasceu? Qual é a percepção de uma criança que cresceu entendendo que a igreja rouba dela a possibilidade de estar mais tempo com seu pai?
Meu propósito não é ser sensacionalista ou impor mais uma carga à vida dos pastores. Contudo, não podemos nos iludir com a ideia de que cedo ou tarde nossos filhos tomarão naturalmente a decisão de ser batizados, como se a fidelidade a Deus já tivesse sido transmitida por herança genética. Eles precisam ser ensinados, convencidos e convertidos como qualquer outra pessoa alcançada para Cristo. Eles precisam amar Jesus, experimentar o arrependimento verdadeiro e escolher andar com Deus, servir de acordo com seus dons e ajudar a edificar a igreja. Precisamos ser sacerdotes de nosso lar.
A voz dos filhos
Em 2018 decidi fazer uma pesquisa com filhos de pastor de variados locais do Brasil. Em pouco mais de um ano, recebi 327 respostas por meio de formulários virtuais totalmente anônimos. O objetivo da investigação era compreender de que forma esse grupo lida com a espiritualidade e como vê a igreja e o ministério.
Destaco, em primeiro lugar, que 91% dos participantes afirmaram professar a fé adventista do sétimo dia. Curiosamente, ao responderem sobre sua experiência de conversão, um terço deles disse nunca ter vivido ou sequer parado para pensar sobre o assunto. Essa diferença pode expressar o perigo de nos iludirmos com a expectativa de hereditariedade da fé, sem ensinar a importância de uma experiência pessoal. O fato de nossos filhos estarem sentados nos bancos da igreja não significa necessariamente que já tiveram um encontro com Cristo. O fato de nossos filhos conhecerem as 28 crenças fundamentais não significa que escolheram vivê-las. Em um grupo acostumado a atender expectativas sociais, aparentar não significa ser.
Muitas vezes enfatizamos as oportunidades educacionais que a igreja oferece aos nossos filhos. De fato, a pesquisa mostrou que eles reconhecem esse fator como uma das principais vantagens de pertencer a esse grupo. Ainda assim, pouco mais de 30% dos participantes, se tivessem a oportunidade de escolher, não seriam filhos de pastor. Qual seria a resposta de nossos filhos? Sugiro separar um tempo e fazer-lhes essa pergunta. Certamente será um diálogo especial!
Ao fim da pesquisa, encontrava-se a pergunta que fala mais forte ao meu coração: Você considera seu pai como seu pastor? A boa notícia é que 74% afirmaram encontrar no pai uma referência espiritual. Ainda assim, eu me pergunto: Como reagiria se descobrisse que meu filho está entre os 26% que não consideram seu pai como seu pastor? Que exemplo de cristianismo temos dado em nosso lar?
Além de obter essas percepções, outro objetivo da pesquisa era dar voz a esse grupo. Por isso, dei a oportunidade de os participantes escreverem mensagens à igreja, a outros filhos de pastor e também aos pastores. Foram mais de 100 depoimentos que representam diferentes enfoques e contextos. Alguns expressaram gratidão e uma visão positiva; outros refletiram uma perspectiva negativa, dor e até mesmo raiva. Não gostaria que este artigo se limitasse a uma única opinião, por isso compartilho alguns conselhos endereçados a nós.
Querido pastor, independentemente de sua função, que sua igreja central seja seu lar. Que seu principal líder seja sua esposa, e que suas primeiras pessoas ganhas para Cristo sejam seus filhos!
“Dê responsabilidades para seus filhos. Ex: ligar o computador e projetor com os slides do sermão que você irá pregar. Eles precisam se sentir parte do ministério.” Pastor, 29 anos
“Trate sempre sua família com amor e carinho. Quando for preciso, deve repreender os filhos, mas com amor. Também não os prenda em uma gaiola, porque quando voarem, poderão não voltar. Dê a eles liberdade de escolha e mostre a eles que, às vezes, certas coisas não devem ser feitas porque simplesmente são erradas, e não porque são filhos de pastor e não podem fazer. […] E acima de tudo, façam o culto familiar, porque é ali que Deus é colocado todos os dias na vida de seus filhos.” Enfermeira, 33 anos
“Fique atento à sua família e tente estar presente o máximo que puder nas atividades aos sábados. Reserve tempo para sentar no banco da igreja ao lado de sua família e tente não perder os programas do dia dos pais que seus filhos participarem.” Dentista, 28 anos
“Pense na totalidade da igreja. Você não é tudo, você faz parte de um todo que se move para um só propósito; esse todo é de Deus, porém é administrado por mãos humanas. Então, não pense que ele deve ser perfeito. Acima de tudo, não ensine seus filhos a não gostar da igreja (mesmo como uma ‘organização’), pois isso os afastará de Deus.” Estudante, 18 anos
“Valorize sua esposa e seus filhos enquanto são pequenos; eles são a prioridade do seu ministério. Ao ter uma família feliz e que se ama, o ministério será mais agradável.” Engenheira, 24 anos
Referências
1 Ellen G. White, Patriarcas e Profetas (Tatuí, SP: Casa Publicadora Brasileira, 2021), p. 67.
2 Ellen G. White, Testemunhos Para a Igreja (Tatuí, SP: Casa Publicadora Brasileira, 2021), v. 1, p. 110.
3 Ellen G. White, O Lar Adventista (Tatuí, SP: Casa Publicadora Brasileira, 2021), p. 290, 291.
Danny Bravo, diretor espiritual do Unasp, EC